MARIA
ALICE DA CRUZ
Histórias
em comum se multiplicam na Praça da Kantuta, em São Paulo,
onde a presença de bolivianos é predominante. Muitos com
o sonho de atuar em algum grande time de futebol brasileiro,
outros com a proposta de sobreviver com os honorários de
uma confecção qualquer. O perfil desses imigrantes foi traçado
durante conversas entre 72 pessoas do grupo e o professor
de educação física Ubiratan Silva Alves. O relacionamento,
que teve início na organização de um torneio de futebol
entre equipes bolivianas, na Kantuta, resultou na tese de
doutorado: “Os imigrantes bolivianos em São Paulo: a praça
Kantuta e o futebol”.
O vaivém de “boleiros”
jovens vestindo uniformes de time de futebol chamou a atenção
do professor, que decidiu se oferecer para organizar um
torneio, a partir do qual passou a conhecer melhor os tecelões
bolivianos. As conclusões do pesquisador, depois das conversas,
não são de um povo feliz e realizado, mas de pessoas que
têm uma perspectiva de vida imediata, em que se ganha de
manhã para comer à noite e que já chega ao Brasil com um
endividamento gigantesco. Como pagar? Difícil saber, de
acordo com Alves, pois o dono da confecção é o dono da casa
e, geralmente, o dono da equipe de futebol defendida pelos
jogadores (ou seriam trabalhadores?).
O que Alves recebeu como resultado da curiosidade que o
levou ao dia a dia dessas pessoas foi um grupo de gente
sofrida, que se comporta geralmente como um cidadão ilegal,
devendo grande parte de seu salário ao próprio patrão, que
é quem coopta jovens conterrâneos com a promessa de emprego
em sua confecção em São Paulo e uma vaga em sua equipe de
futebol. Diante da realidade encontrada, o futebol passou
a ser somente a porta de chegada para a pesquisa.
O futebol em si não se inicia nem se termina dentro da quadra.
Existe uma rede de configurações que se formam a partir
do esporte, explica o professor. Como as equipes são formadas
por funcionários e trabalhadores do ramo da costura, os
jogadores têm dupla obediência diante de seu patrão, também
conhecido como “delegado”. É ele quem banca a equipe com
uniforme, pagamento de inscrição e, às vezes, uma cervejinha
ou um refrigerante após o jogo. O “delegado” é um representante
legal da equipe nas reuniões, nas votações. Diante disso,
o jogador não pode jogar onde bem entender.
“Como o boliviano nem tem condições de vir, ele já chega
com uma dívida de transporte, alimentação e passa a ter
uma dívida de moradia e de emprego. Trabalha para pagar
contas contraídas apenas para vir até o Brasil. Ele fica
praticamente algemado ao dono da confecção”, relata Alves.
R$ 0,15 por peça
O chão da fábrica é o mesmo do quarto em que se dorme para
a maioria das famílias, que se juntam num mesmo galpão.
“A máquina está de um lado e, atrás da cortina, estão o
berço e a cama”, revela Alves. Já que acordam no ambiente
de trabalho, o dia começa cedo, com a expectativa de finalizar
o maior número de peças, pelas quais recebem, em média,
R$ 0,15 a unidade. São quase 16 horas diárias na máquina
de costura. “Nem dá para dizer que tiram emprego de alguém.
Que brasileiro dedicaria 16 horas de seu dia numa máquina
de costura para ganhar R$ 0,15 por peça de roupa?”, pondera
Alves.
O
receio da deportação faz com que sejam submissos ao patrão,
segundo o pesquisador, e por isso fazem tudo o que lhes
é imposto. “Jogam bola em seu time, trabalham no fim de
semana e pagam a dívida. Eles preferem não trabalhar com
bolivianos, mas sim com os coreanos. Eles acham o coreano
mais sério no que diz respeito ao pagamento. Sem documentos,
temem ser denunciados à Polícia Federal e, em seguida, deportados,
caso resolvam reclamar seus direitos trabalhistas ao empregador
boliviano”, explica Alves.
A partir de suas conversas, Alves descobriu que não há interesse
dos bolivianos em voltar para seu país. Poucos guardam dinheiro
para retornar à Bolívia de forma definitiva. Praticamente,
todos querem juntar dinheiro para constituir família no
Brasil e mudar de casa. A discordância com algumas atitudes
do governo boliviano é um dos motivos. Nas eleições, são
enviadas urnas para que os bolivianos votem no país onde
estão instalados, principalmente na América do Sul. Além
de não oferecerem gastos ao governo, os emigrantes da Bolívia
ainda mandam dinheiro para os parentes que usam esta renda
dentro do país.
De acordo com a Polícia Federal, há cerca de 500 mil bolivianos
vivendo no Brasil de forma ilegal. Atualmente, na capital
de São Paulo, estão espalhados por toda a cidade, principalmente
pelo centro, zona norte e zona leste, mas com muitas ramificações
por cidades da Grande São Paulo, de acordo com Alves.
Mesmo tendo uma quantidade crescente de adeptos das anistias
concedidas pelo governo brasileiro aos imigrantes, os números
estão bem aquém da realidade existente no Brasil. Nas quatro
últimas anistias, foram beneficiados 27 mil estrangeiros
em 1981, 30 mil em 1988, em torno de 39 mil em 1998 e mais
de 40 mil em 2009, sendo mais de 40% bolivianos (16.881),
seguidos de chineses (5.492), peruanos (4.642), paraguaios
(4.135) e coreanos (1.129).
Em 2009, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou
a chamada Lei da Anistia Migratória, a qual autoriza a residência
provisória de cidadãos estrangeiros em situação irregular
no Brasil. A nova lei permite que todos os estrangeiros
que estejam em situação irregular e tenham entrado no Brasil
até o dia 1º de fevereiro de 2009 regularizem sua situação
e tenham liberdade de circulação, direito de trabalhar,
acesso à saúde e à educação públicas e à Justiça. Porém,
a adesão não foi unânime.
Cidadania
Para ter qualquer tipo de direito, um dos caminhos dos bolivianos
era gerar um cidadão brasileiro e assim ser tornarem legalizados.
Já as crianças que vinham ilegais, permaneciam ilegais e
os pais, sem documentação brasileira, não conseguiam matricular
os filhos no ensino brasileiro. Diante disso e por reconhecer
que com todos os problemas, segundo eles, a Bolívia ainda
oferece um ensino de melhor qualidade que o brasileiro,
muitos casais deixam os filhos sob cuidado dos avós, na
Bolívia, a fim de assegurar-lhes o direito a uma boa educação.
Mas a escola no Brasil não é o melhor local de convivência
para os filhos de bolivianos, principalmente para os collas,
descendentes de indígenas, pois são vítimas de bulling.
Muitas das crianças entrevistadas por Alves reclamaram que
são alvo de chacotas no espaço escolar. Segundo o professor,
há especialistas estudando o fenômeno. Recentemente, de
acordo com o pesquisador, a mídia veiculou um caso de bulling
contra uma criança descendente de bolivianos. A característica
física dos filhos dos collas (cabelos negros, lisos e grossos,
pele escura e olhos levemente puxados) acaba chamando a
atenção de outras crianças, e elas acabam sendo vítimas
de gozação e exclusão, segundo Alves.
Saúde
Por conta do pó gerado pelos tecidos, os bolivianos têm
doenças respiratórias. Queixas sobre problemas posturais
também estão entre as ouvidas por Alves durante as conversas.
“Eles só levantam para ir ao banheiro, pois trabalham na
própria máquina”, relata.
A anemia também atinge boa parte da população boliviana
em São Paulo, principalmente os que atuam nas oficinas.
Segundo Alves, além de não se alimentarem em horários regulares,
o tipo, a qualidade e a quantidade de alimentos por eles
ingeridos nem sempre são adequados para suprir as necessidades
diárias do organismo. A falta de recursos para consumir
carne vermelha e feijão é uma das causas do alto índice
de anemia entre eles. O pesquisador acrescenta que, como
a doença causa fadiga generalizada e indisposição, os bolivianos
anêmicos ficam privados de trabalhar e de gerar renda.
O atendimento médico, porém, esbarra na falta de documentação
brasileira. E os bolivianos irregulares acabam contando
com a boa vontade de alguns profissionais da área de saúde
e da Pastoral do Imigrante, na Igreja Nossa Senhora da Paz,
no bairro do Glicério, em São Paulo.
A situação só é melhor para uma minoria que conseguiu juntar
algum dinheiro e pode se dar o direito ao lazer. Mas a maioria
se contenta com o um “pedacinho da Bolívia” em São Paulo,
que é a praça Kantuta, localizada no bairro do Canindé,
próxima à estação Armênia do metrô, onde, nas feiras dominicais,
podem se fartar da culinária de seu país, como a saltenha,
comprar artesanato típico da Bolívia, assistir a apresentações
musicais e culturais, procurar emprego e até namorar. A
quadra de futsal, principal palco da pesquisa de doutorado,
em que Alves traçou toda a logística do campeonato de futebol
para a comunidade, já não faz mais parte do cenário da Kantuta.
Os mais favorecidos economicamente, segundo o pesquisador,
conseguem viajar, matar a vontade de conhecer o mar e visitar
famosos estádios de futebol, principal atividade de lazer
de um povo que buscou o Brasil com intenção de melhorar
sua qualidade de vida
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