Cyro Quixote dos Anjos
MARIA
ALICE DA CRUZ
Há
algo de quixotesco na produção literária de Cyro dos Anjos
(1906-1994). Pelas análises da pesquisadora Celia Tamura,
os elementos de D. Quixote, personagem criado pelo espanhol
Miguel de Cervantes (1547-1616), estão muito claros para
quem se dedica a uma leitura pormenorizada das histórias
do autor brasileiro. Os termos D. Quixote, Dulcineia, quixotismo,
quixotada aparecem não só em seus romances, mas também em
seus Poemas Coronários (1964). Em sua primeira obra, O amanuense
Belmiro (1937), a donzela Arabela, desejada pelo funcionário
público Belmiro, tem o mesmo nome da protagonista de The
Female Quixote, de Charlotte Lennox. Em A menina do sobrado
(1979), obra memorialista, uma versão do personagem de Cervantes
em madeira é colocada sobre a mesa do narrador, interpretado
pelo próprio Cyro dos Anjos. E o protagonista do livro Abdias
(1945) define-se como um Dom Quixote cosido a Sancho. Para
confirmar a tendência, em um de seus Poemas Coronários,
o escritor refere-se a si mesmo como o Cavaleiro da Triste
Figura. Segundo Celia, em poema dedicado a Cyro, o poeta
Emílio Moura refere-se ao amigo como “pastor de nuvens”,
apreendendo o que há de quixotesco em sua figura e personalidade.
Leitora assídua do escritor
mineiro, Celia dedicou sua tese de doutorado a desvendar
o quixotesco nos protagonistas dos livros O amanuense Belmiro
(1937), Abdias e A menina do sobrado. Segundo a pesquisadora,
a semelhança entre os personagens é inquestionável. O homem
imaginativo e religioso está presente tanto em Belmiro quanto
em Abdias. “É como se fossem o mesmo personagem, mas com
outro nome e outra profissão”, explica Celia. Ela observa
que para o crítico Álvaro Lins, Cyro é um livro em vários
livros.
A pesquisadora concluiu
que a relação estreita entre o mito e a literatura é o ponto
central da obra de Cyro dos Anjos. “Mito, sagrado e quixotesco
confundem-se e entrelaçam-se em sua literatura. A ideologia
social também está sempre presente em seus romances”, acrescenta
Celia. Nos personagens analisados, ela observou sempre a
construção do homem, a partir de um sonho que o guia num
sentido para uma maior solidariedade. Assim como em outras
literaturas inspiradas em Cervantes, Belmiro e Abdias, por
exemplo, se alimentam da imaginação, mais que de sua realização,
se assemelhando à devoção de Dom Quixote por sua dama Dulcineia.
Tudo se repete em Cyro,
as memórias, os sonhos, as ideias filosóficas ou religiosas,
segundo Celia, para quem os protagonistas não se negam a
assumir sua esfera quixotesca e a vivê-la com intensidade.
“A religião de Cyro é a poesia, e ela é compartilhada pelos
seus protagonistas, numa verdadeira fé inabalável. São homens
completos, constituídos pela parte sagrada do ser, além
da profana”, explica a autora da tese.
A influência de Cervantes
é tão clara, que, em O amanuense Belmiro, o funcionário
público encarna o papel de um Dom Quixote de La Mancha mineiro,
pleno de sonhos, em quem os amores se realizam na imaginação.
“É muito mais que uma mera história sentimental, revela-se
um mosaico constituído de diversas formas imaginativas,
sobretudo literárias”. Para lembrar, o protagonista de Cervantes
também soltava imaginação ao se envolver por outras literaturas,
ao ponto de confundir moinhos de ventos com gigantes, contra
os quais deveria lutar. Para Celia, O amanuense Belmiro
é uma verdadeira obra prima por elevar a arte a uma categoria
suprema, explorando personagens intelectuais, cada qual
com sua preferência literária, suas crenças, suas ideologias.
A
carnavalização encontrada em Bakhtin é explorada de forma
brilhante por Cyro, com as dualidades entre sonho e cotidiano,
noite e dia, tempo comum e Carnaval. Assim como o protagonista
de Cervantes tem sua Dulcineia, Belmiro tem sua Carmélia,
uma jovem da alta sociedade que, durante um baile de carnaval,
se transfigura para ele como a donzela Arabela, por quem
é de fato apaixonado. O período excepcional em que o amanuense
conhece sua “donzela” constitui o cerne do romance: no Carnaval,
a donzela rica e o amanuense pobre unem-se no baile para
continuarem juntos na realidade imaginativa de Belmiro.
E, assim, a festa perdura por todo um ano, para terminar
em clima de desilusão, como na morte de Dom Quixote.
Na opinião de Celia, neste
mosaico literário revela-se um dos maiores processos utilizados
para expressar o quixotesco. Ela explica que a literatura,
a música e as fábulas ilustram a riqueza do imaginário do
funcionário público. O mesmo mimetismo representado pela
influência direta da leitura na vida do protagonista aparece
em outros personagens, como Silviano e Redelvim. Em Glicério,
outro personagem do romance, a semelhança é ainda mais forte,
pois além da literatura, ele manifesta o mesmo desejo de
Belmiro: conquistar Carmélia, compondo o triângulo amoroso.
Reflexões
Se é inevitável associar Belmiro a Quixote, a personalidade
do protagonista de Abdias vem reforçar a direção quixotesca
que Cyro dá aos seus personagens. Mais que escrever romance,
Cyro se coloca na história, promovendo reflexões sobre a
sociedade. A história trata dos sonhos de um professor pobre
de literatura, apaixonado por uma jovem aluna, que carrega
seus sonhos de infância e adolescência. Entre o desejo imaginativo
e a obrigação cotidiana, Abdias compreende que uma esfera
não exclui a outra, e que ambas estão interligadas. Em meio
ao romance entre o homem pobre e uma jovem rica, Cyro aponta
os padrões sociais estabelecidos, entre eles a alta sociedade,
constituída pelos Ataíde, e o ambiente escolar, do Colégio
das Ursulinas, considerado o melhor para as moças da mais
seleta sociedade belo-horizontina. Ao longo do texto, as
categorizações sociais são mostradas por Abdias, em seu
diário, como meras ficções, criações estabelecidas pelos
homens.
Na opinião de Celia, por
meio de Abdias, Cyro mostra que a paixão de um velho por
uma adolescente não teria nada de anormal, pois o amor transcende
quaisquer barreiras, sejam sociais, faixas etárias, e até
mesmo materiais ou físicas. “Ele quer dizer que, mesmo não
havendo casamento, namoro, ou qualquer tipo de relacionamento
constituído por maior proximidade física, ou qualquer tipo
de união conjugal, está provado que o amor existe na esfera
do sonho de Abdias”, explica a pesquisadora.
Outro romance analisado
por Celia foi A menina do sobrado, em que, no papel de narrador,
Cyro emite suas reflexões sobre arte. Sua visão filosófica
da arte acaba por agregar um valor de conhecimento ao texto
literário. A pesquisadora compara a abordagem do escritor
aos escritos de Proust e Rosseau, que compõem a bibliografia
da tese. “O aspecto poético também não deve ser ignorado,
pois a sensibilidade do narrador e sua percepção pessoal
e o conteúdo afetivo expressos no texto situam o autor num
patamar próximo aos grandes escritores universais, como
Proust e Rousseau”, reforça.
Na opinião de Celia, A menina
do sobrado revela que as recordações contidas na memória
do adulto que escreve compõem um retrato multicolorido,
repleto de aprendizados e descobertas maduras, do homem
que vê e avalia o seu passado. O narrador, em sua opinião,
parece ser um Cyro dos Anjos “ficcionalizado”. No que tange
às reflexões sobre a arte, Celia acredita que o livro tenha
um imenso valor didático, extremamente recomendável para
os jovens brasileiros. Não apenas por esse motivo, mas pela
beleza estética, merece ser muito mais valorizado e estudado.
Pouco indicado nos programas
de literatura no ensino fundamental e médio, Cyro dos Anjos
merecia um capítulo especial no programa dos professores
de língua portuguesa por sua produção literária impecável,
na opinião de Celia. Apesar de ficar de fora da lista dos
cânones, o escritor deixou uma contribuição importante para
a literatura brasileira. A lacuna diagnosticada nas críticas
analisadas por Celia mostra a falta de conhecimento sobre
a obra do autor, ao não fazerem referência aos aspectos
quixotesco das obras. Foram analisados documentos de crítica
literária que datam de 1937, quando foi lançado O amanuense
Belmiro, até textos mais recentes. As críticas encontradas,
segundo ela, referem-se mais à questão histórica e não abordam
a figura do quixotesco nas obras.
Ressaltar o quixotesco na
obra de Cyro dos Anjos é, na visão de Celia, mostrar o quanto
o escritor está ligado às manifestações artísticas, que
foram fundamentais para o surgimento de todos os seus romances.
“Muito mais que histórias sentimentais, seus livros são
reais tributos à grandiosidade da arte. Sem essa constatação,
não será possível compreender esse grande escritor. E, se
são tão conhecidos assim, os pressupostos das artes e da
poesia, por que até hoje, 70 anos depois da publicação de
O amanuense Belmiro, não foi possível uma interpretação
quixotesca?”
A abordagem quixotesca,
em sua opinião, tem por função lançar luz a aspectos que
até então permaneciam ocultos na obra de Cyro, para que
haja uma melhor valorização de sua escrita. Ela acrescenta
que é possível valorizar o papel social da arte e da poesia,
por meio do quixotesco, pois a poesia, bem como as artes,
tem função fundamental na vida do homem, e elas têm sido
esquecidas e tratadas com indiferença nos meios intelectuais
e literários atuais. “Cabe aos universitários, professores
e estudantes, além dos artistas e escritores, mergulhar
na origem da arte, para poder resgatar o seu sentido”. Celia
finaliza esclarecendo que a tese pretende propor essa transformação,
ao expor, com riqueza de exemplos, “o poder arrebatador
da literatura, que tanto pode construir como destruir uma
sociedade, pois, quem escreve, cria outro mundo”.
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Publicações
Artigos: TAMURA, Celia. “O mosaico literário em
O amanuense Belmiro”. São Paulo: Criação & Crítica,
nº 3, 2009. (http://criacaoecritica.incubadora.fapesp.br/portal/numero-3/5CC_N_CTamura.pdf).
TAMURA, Célia. “Belmiro oceânico: o simbolismo das águas
na obra-prima de Cyro dos Anjos”. Jataí, GO: Revista Virtual
de Letras, nº 1, Dezembro de 2009. (http://www2.jatai.ufg.br/ojs/index.php/revlet/article/view/948/514).
TAMURA, Celia. “Cyro dos Anjos e o homem imaginativo”. Cascavel:
Travessias, nº
5,2009. (http://www.unioeste.br/travessias/artigos/cultura/pdfs/CYRODOSANJOS.pdf)
Tese: “O mito quixotesco na literatura de Cyro
dos Anjos”
Autora: Célia Tamura
Orientador: Antonio Arnoni Prado
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem
(IEL)
Financiamento: CNPq
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