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O brasileiro acha justo o seu salário?
Pesquisa sobre remuneração e justiça reúne 25 pesquisadores de 16 instituições e coleta dados de 25 mil pessoas

PAULO CESAR NASCIMENTO

A professora Ana Maria F. Almeida, da Faculdade de Educação: “Nosso interesse é entender os critérios a partir dos quais a pessoa percebe e julga a sua remuneração”(Foto: Antoninho Perri)Qual é a avaliação do brasileiro a respeito de sua remuneração? Os valores são considerados justos e compatíveis ao trabalho realizado? Ou o salário é inadequado em relação às exigências e responsabilidades de determinados cargos? Qual seria, então, a contrapartida financeira considerada justa para a tarefa executada? E quais critérios de comparação são empregados no julgamento das rendas auferidas? As respostas a essas questões serão conhecidas em um estudo sediado na Faculdade de Educação (FE) da Unicamp e conduzido por pesquisadores de outras três instituições nacionais. A pesquisa sobre remuneração e justiça integra uma ampla e inédita investigação das dimensões das desigualdades sociais brasileiras, prevista para ser concluída em 2009.

Coordenado pelo sociólogo Nelson do Valle Silva, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e financiado pelo CNPq, a empreitada reúne 25 pesquisadores em 16 instituições de sete estados do país, e envolve a coleta de dados de 25 mil pessoas em cinco mil domicílios, entre outras ações. Campinas foi incluída na relação dos municípios que tiveram residências visitadas durante etapa preliminar do trabalho. Os pesquisadores também buscaram conhecer, em entrevistas desenvolvidas em três bairros de classes sociais distintas da cidade, como os jovens planejam seu futuro profissional.

Em um país que tenta aprofundar sua experiência democrática, mas cuja desigualdade de renda é atestada como das maiores do mundo e persistente no tempo, o estudo comparativo coordenado pela Unicamp tem a finalidade de identificar as formas de julgamento das remunerações utilizadas pelo brasileiro, assim como os critérios e as concepções de justiça aos quais se refere para julgar o que ganha. Pretende ainda construir o ramo brasileiro de uma comparação internacional com a França, coordenada por Christian Baudelot, do Laboratoire de Sciences Sociales da École Normale Supérieur de Paris.

Tanto as entrevistas francesas quanto as desenvolvidas com aproximadamente 500 pessoas no projeto-piloto em Campinas, no Rio de Janeiro e em cidades nordestinas revelaram a ocorrência de uma grande variedade de concepções de justiça mobilizadas pelos indivíduos no julgamento de suas remunerações e mostram como diferentes categorias de trabalhadores se julgam bem ou mal remuneradas, explica Ana Maria F. Almeida, docente da FE da Unicamp e responsável pelo estudo juntamente com Roberto Grun (UFSCar), Maria Lígia Barbosa (UFRJ) e Jacob Lima (UFSCar).

“Conseguimos desenhar algumas distribuições, ainda que preliminarmente. O nosso interesse não é tanto saber quem está feliz e infeliz com o salário, mas entender os critérios a partir dos quais a pessoa percebe e julga a sua remuneração”, afirma Ana Maria, que na equipe campineira contou com a participação da professora da rede municipal de ensino Sueli Presta, da mestranda Adriana Carnielli de Lima, da professora da PUC-Campinas Maria Silvia Pinto de Moura Librandi da Rocha, da professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP Graziela Serroni Perosa e, numa fase inicial, da professora Kimi Tomizaki, da Faculdade de Educação da USP.

Na pesquisa preparatória buscou-se acessar, entre outros aspectos da temática estudada, os critérios de justiça empregados por diferentes categorias da população, para julgar o nível de remuneração considerado justo e o quanto ele se distancia do valor recebido hoje. A importância de auferir uma renda capaz de atender necessidades básicas, ou que seja coerente com responsabilidades impostas pelo cargo ocupado e função exercida, ou que esteja compatível com produtividade e competências pessoais do trabalhador foram algumas das justificativas já recenseadas nas entrevistas para o que é classificado como remuneração adequada.

Conforme o levantamento preliminar, os assalariados nas posições de execução se referem principalmente a uma concepção do salário fundada sobre a satisfação de suas necessidades e de seu modo de vida. As pessoas mais qualificadas e próximas do topo da empresa julgam freqüentemente que o valor de sua remuneração deve ser proporcional ao valor que seu trabalho traz para a companhia. Outros enfim, em geral executivos particularmente bem pagos, julgam que seus salários dependem diretamente do mercado e das flutuações de oferta e demanda. E o estabelecimento de uma correspondência entre nível de remuneração e nível de formação é freqüentemente invocado pela fração mais diplomada para situar sua remuneração, acima ou abaixo de seu “valor”.

Ainda de acordo com o estudo, parece claro que os diferentes indivíduos não recorrem aos mesmos critérios e aos mesmos princípios de justiça para avaliar seu próprio salário e o dos outros, sobretudo quando eles se encontram numa situação que lhes permite definir aquele dos outros. Parece também que as teorias da justiça a que se referem implicitamente os indivíduos variam de forma significativa, o mesmo indivíduo mudando de modelo de referência segundo os aspectos da remuneração sob consideração. O sentido dessas variações, contudo, será compreendido com mais segurança após a conclusão do trabalho geral, salienta a professora da Unicamp.

 

As novas fronteiras dos jovens

Entre as famílias que julgam a renda obtida insuficiente para as suas necessidades, há uma preocupação de se evitar que os filhos fiquem à mercê da mesma situação. Os próprios jovens, diante da percepção das dificuldades financeiras enfrentadas pelos pais, receiam por destino idêntico e demonstram a intenção de estudar para trabalhar em atividades diferentes daquelas desempenhadas pelos genitores, capazes de remunerá-los de forma melhor e de lhes propiciar um padrão socioeconômico superior.

Essa dimensão foi proporcionada por outra vertente da pesquisa que focalizou os processos pelos quais a percepção da justiça da remuneração é construída pelas novas gerações. Com essa intenção, Ana Maria e Sueli Presta procuraram compreender como adolescentes de diferentes grupos sociais constroem disposições quanto ao futuro em relação à escola e ao trabalho. Elas realizaram o trabalho de campo em Campinas, em uma região formada por três bairros contíguos localizados nas vizinhanças de duas grandes universidades, uma pública e outra privada, ouvindo 14 adolescentes entre 13 e 14 anos e 17 adultos responsáveis por eles.

O primeiro bairro reúne famílias de baixa renda. As mulheres são, em maioria absoluta, empregadas domésticas mensalistas ou diaristas. Algumas estão empregadas nas empresas da região, desempenhando em geral tarefas de limpeza. Os homens constituem mão-de-obra autônoma na construção civil (pedreiros, pintores de parede, serralheiros) ou jardineiros nos bairros de classe média das proximidades. O segundo é de classe média, reunindo famílias de professores das universidades, engenheiros ou outros profissionais liberais. Para além daqueles empregados nas universidades, os adultos dessas famílias trabalham nas indústrias das vizinhanças ou têm seus escritórios, consultórios e clínicas nas proximidades. O terceiro bairro é mais heterogêneo, agregando famílias de grupos populares e outras ainda mais pobres, embora tenha recebido na última década um contingente importante de famílias de classe média e classe média superior, altamente escolarizadas.

O estudo conseguiu relacionar as disposições quanto ao futuro apresentadas pelos jovens com o percurso social de suas famílias. Assim, adolescentes de famílias em situação de ascensão social, mesmo modesta, são mais ambiciosos quanto ao futuro do que aqueles cujas famílias encontram-se em situação de desclassificação social. A pesquisa verificou ainda uma associação significativa entre os recursos econômicos e escolares de que dispõem as famílias e a maneira como organizam seus investimentos relativos ao futuro dos filhos.

Uma das principais características das disposições quanto ao futuro expressas pelos jovens entrevistados é a intenção de chegar ao ensino superior. Segundo as autoras da investigação, isso deve ser interpretado como um dos efeitos da expansão da escolarização ocorrida na sociedade brasileira na última década, que traz em seu bojo uma modificação significativa na maneira como as fronteiras presentes no interior do sistema de ensino são percebidas. Para os jovens dos grupos populares, sobretudo, o ensino superior é visto como uma necessidade na luta contra o desemprego ou contra os trabalhos manuais extenuantes que esses adolescentes vêem os adultos à sua volta desempenhando.

Além dessa dimensão relativa à relação com os estudos, os jovens se distinguem também por suas disposições quanto ao trabalho, que variaram em função da ocupação ou do modo de exercício desta considerados interessantes ou desejáveis. Num extremo estão os jovens cuja preocupação, fundamentalmente, é evitar o tipo de trabalho manual desempenhado pelos adultos que os cercam, enfatizam as educadoras.

De acordo com a pesquisa, esses adolescentes querem um trabalho “mais leve”, “menos controlado”, “que não seja de faxineira”, “que não seja de jardineiro”, “que não tenha que trabalhar em pé” etc. No outro extremo estão os jovens que buscam imitar ou ultrapassar as condições de trabalho dos adultos de referência, buscando posições de comando e de autonomia: “montar minha construtora”, “montar uma academia de ginástica”, “abrir empresa de moda” e mesmo “operar na bolsa de valores”, conforme declararam.

O trabalho também mostrou a tendência de as famílias guiarem os investimentos escolares dos filhos em função do veredicto da escola. Tanto no caso das famílias dos grupos populares, quanto no caso das famílias dos grupos médios, as ambições dos alunos só deixam de se correlacionar perfeitamente com a posição social de suas famílias quando a escola acena num sentido diferente daquele que é esperado, ou seja, quando o desempenho escolar fica aquém ou além do necessário para se alcançar a formação profissional desejada. O que indica, segundo as pesquisadoras, a importância estratégica da escola na definição do que os jovens e suas famílias pensam como futuros possíveis e impossíveis.

Segundo as especialistas, o exame dos mecanismos que contribuem para a produção de visões de mundo responsáveis por orientar os investimentos dos indivíduos numa direção ou noutra, definindo proibições e possibilidades, é questão fundamental para o melhor entendimento da persistência dos altos níveis de desigualdades presentes na sociedade brasileira. Elas argumentam:
“Compreender a visão de mundo como algo que se constrói a partir de condições concretas de existência, e não por um legado não tangível que uma geração transmite à seguinte, tem implicações bastante relevantes. A construção do futuro depende de uma exposição consistente e significativa a condições concretas de existência que possam confirmar ou negar os destinos de classe previamente traçados.”

 

 
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