As novas fronteiras dos jovens
Entre as famílias que julgam a renda obtida insuficiente
para as suas necessidades, há uma preocupação de se
evitar que os filhos fiquem à mercê da mesma situação.
Os próprios jovens, diante da percepção das dificuldades
financeiras enfrentadas pelos pais, receiam por destino
idêntico e demonstram a intenção de estudar para trabalhar
em atividades diferentes daquelas desempenhadas pelos
genitores, capazes de remunerá-los de forma melhor e
de lhes propiciar um padrão socioeconômico superior.
Essa dimensão foi proporcionada por outra vertente
da pesquisa que focalizou os processos pelos quais a
percepção da justiça da remuneração é construída pelas
novas gerações. Com essa intenção, Ana Maria e Sueli
Presta procuraram compreender como adolescentes de diferentes
grupos sociais constroem disposições quanto ao futuro
em relação à escola e ao trabalho. Elas realizaram o
trabalho de campo em Campinas, em uma região formada
por três bairros contíguos localizados nas vizinhanças
de duas grandes universidades, uma pública e outra privada,
ouvindo 14 adolescentes entre 13 e 14 anos e 17 adultos
responsáveis por eles.
O primeiro bairro reúne famílias de baixa renda. As
mulheres são, em maioria absoluta, empregadas domésticas
mensalistas ou diaristas. Algumas estão empregadas nas
empresas da região, desempenhando em geral tarefas de
limpeza. Os homens constituem mão-de-obra autônoma na
construção civil (pedreiros, pintores de parede, serralheiros)
ou jardineiros nos bairros de classe média das proximidades.
O segundo é de classe média, reunindo famílias de professores
das universidades, engenheiros ou outros profissionais
liberais. Para além daqueles empregados nas universidades,
os adultos dessas famílias trabalham nas indústrias
das vizinhanças ou têm seus escritórios, consultórios
e clínicas nas proximidades. O terceiro bairro é mais
heterogêneo, agregando famílias de grupos populares
e outras ainda mais pobres, embora tenha recebido na
última década um contingente importante de famílias
de classe média e classe média superior, altamente escolarizadas.
O estudo conseguiu relacionar as disposições quanto
ao futuro apresentadas pelos jovens com o percurso social
de suas famílias. Assim, adolescentes de famílias em
situação de ascensão social, mesmo modesta, são mais
ambiciosos quanto ao futuro do que aqueles cujas famílias
encontram-se em situação de desclassificação social.
A pesquisa verificou ainda uma associação significativa
entre os recursos econômicos e escolares de que dispõem
as famílias e a maneira como organizam seus investimentos
relativos ao futuro dos filhos.
Uma das principais características das disposições
quanto ao futuro expressas pelos jovens entrevistados
é a intenção de chegar ao ensino superior. Segundo as
autoras da investigação, isso deve ser interpretado
como um dos efeitos da expansão da escolarização ocorrida
na sociedade brasileira na última década, que traz em
seu bojo uma modificação significativa na maneira como
as fronteiras presentes no interior do sistema de ensino
são percebidas. Para os jovens dos grupos populares,
sobretudo, o ensino superior é visto como uma necessidade
na luta contra o desemprego ou contra os trabalhos manuais
extenuantes que esses adolescentes vêem os adultos à
sua volta desempenhando.
Além dessa dimensão relativa à relação com os estudos,
os jovens se distinguem também por suas disposições
quanto ao trabalho, que variaram em função da ocupação
ou do modo de exercício desta considerados interessantes
ou desejáveis. Num extremo estão os jovens cuja preocupação,
fundamentalmente, é evitar o tipo de trabalho manual
desempenhado pelos adultos que os cercam, enfatizam
as educadoras.
De acordo com a pesquisa, esses adolescentes querem
um trabalho “mais leve”, “menos controlado”, “que não
seja de faxineira”, “que não seja de jardineiro”, “que
não tenha que trabalhar em pé” etc. No outro extremo
estão os jovens que buscam imitar ou ultrapassar as
condições de trabalho dos adultos de referência, buscando
posições de comando e de autonomia: “montar minha construtora”,
“montar uma academia de ginástica”, “abrir empresa de
moda” e mesmo “operar na bolsa de valores”, conforme
declararam.
O trabalho também mostrou a tendência de as famílias
guiarem os investimentos escolares dos filhos em função
do veredicto da escola. Tanto no caso das famílias dos
grupos populares, quanto no caso das famílias dos grupos
médios, as ambições dos alunos só deixam de se correlacionar
perfeitamente com a posição social de suas famílias
quando a escola acena num sentido diferente daquele
que é esperado, ou seja, quando o desempenho escolar
fica aquém ou além do necessário para se alcançar a
formação profissional desejada. O que indica, segundo
as pesquisadoras, a importância estratégica da escola
na definição do que os jovens e suas famílias pensam
como futuros possíveis e impossíveis.
Segundo as especialistas, o exame dos mecanismos que
contribuem para a produção de visões de mundo responsáveis
por orientar os investimentos dos indivíduos numa direção
ou noutra, definindo proibições e possibilidades, é
questão fundamental para o melhor entendimento da persistência
dos altos níveis de desigualdades presentes na sociedade
brasileira. Elas argumentam:
“Compreender a visão de mundo como algo que se constrói
a partir de condições concretas de existência, e não
por um legado não tangível que uma geração transmite
à seguinte, tem implicações bastante relevantes. A construção
do futuro depende de uma exposição consistente e significativa
a condições concretas de existência que possam confirmar
ou negar os destinos de classe previamente traçados.”