Jornal
da Unicamp – Quando e em qual contexto surgem os conselhos
de políticas públicas no Brasil?
Luciana Tatagiba – O tema dos conselhos de políticas
públicas está associado ao longo e tortuoso processo de
construção da democracia brasileira. O que está em jogo
nesses espaços é a invenção de uma nova institucionalidade
participativa, voltada à reforma do Estado, por meio da
democratização da gestão das políticas públicas. É interessante
que o tema emerge, no caso brasileiro, no mesmo contexto
de luta pelo retorno às liberdades democráticas, no final
dos anos 70, já sinalizando exigências para a democracia
em construção: ampliar os marcos da participação popular
na tomada de decisões.
Esperava-se que por meio desta participação cidadã seria
possível reverter o padrão clientelista e excludente que
marcara o planejamento e execução das políticas públicas
no Brasil. Esse é um capítulo importante da luta dos setores
progressistas que resultou na afirmação da participação
como princípio constitucional em várias áreas de políticas,
como saúde, assistência social, criança e adolescente, educação,
etc., nos níveis federal, estadual e municipal. Ou seja,
o que demanda a Constituição é que, em um conjunto diversificado
de políticas, inaugurem-se espaços de participação de composição
plural (ou seja, incluindo o conjunto de interesses envolvidos)
e paritária entre Estado e sociedade, com natureza deliberativa,
cuja função é formular e controlar a execução das políticas
públicas setoriais.
JU – Em que ritmo se deu a criação destes conselhos
pelo país?
Luciana Tatagiba – No decorrer dos anos 90, inúmeros
conselhos foram criados nas mais diversas áreas. Não há
dados muito precisos, mas o IBGE, em 1999, contabilizava
a existência de 23.987 conselhos municipais vinculados a
políticas sociais. Estudos apontam que entre 1991 e 1993
foram criados mais de dois mil conselhos municipais por
dia, só na área da saúde. Os últimos levantamentos do Conselho
Nacional de Saúde indicam a existência de conselhos de saúde
em todos os municípios e estados brasileiros.
No caso da cidade de São Paulo, uma pesquisa que realizei
em 2005 apontava 40 conselhos de políticas públicas, distribuída
numa diversidade enorme de secretarias, sendo que a maioria
foi criada nas duas gestões do PT, com Erundina e Marta
Suplicy. Mas, como eu disse, este não é um processo restrito
às grandes capitais. Pesquisa no Rio Grande do Norte, por
exemplo, indicava, em 1998, a existência de 302 conselhos
só na área social. Portanto, podemos hoje falar num exército
de conselheiros espalhados pelos quatro cantos do país.
JU – Em que pese a exigência da criação dos conselhos,
que implicou nesta disseminação, qual é o seu peso efetivo
nas decisões de políticas públicas?
Luciana Tatagiba – Bem, nas últimas décadas houve
essa aposta na institucionalidade política como campo estratégico
de luta dos setores progressistas e democráticos, sem a
qual não se teria construído essa nova arquitetura da participação.
Hoje o que se busca é saber até que ponto foi possível avançar
a partir dessa estratégia. Esse é um balanço que criticamente
se faz dentro e fora da academia. As agendas de pesquisa
nessa área estão hoje muito voltadas a compreender os resultados
dessa participação, num olhar talvez menos celebratório
do que aquele que orientava as análises nos anos 90.
Embora ainda haja muito a compreender e avançar em termos
de pesquisa, os estudos que temos realizado nos permitem
afirmar que as mudanças alcançadas ainda estão muito longe
das expectativas que animaram a criação dos conselhos. Essa
nova institucionalidade participativa tem ocupado um lugar
ainda marginal nos processos decisórios que envolvem a definição
das políticas em suas áreas específicas. Mesmo que os problemas
apontados variem em natureza e extensão, não é incomum encontrarmos
nas conclusões dos estudos uma mesma afirmação: os conselhos
“não deliberam”.
Talvez seja preciso repensar as nossas expectativas para
termos um quadro mais realista das potencialidades desses
novos experimentos. Os conselhos têm o seu papel a desempenhar
no controle da gestão pública e na democratização das relações
sociais e políticas, mas também têm limites que lhe são
inerentes, como por exemplo, a sua natureza setorial e fragmentada.
A compreensão desses limites pode evitar que sobre os conselhos
sejam lançadas exageradas expectativas, que vão levar inevitavelmente
à frustração.
JU – A disseminação dos conselhos no Brasil se dá
na década de 90, mesmo período da chegada do neoliberalismo,
que defende a redução do poder do Estado e dos gastos sociais.
Temos aí outro conflito?
Luciana Tatagiba – A implementação do neoliberalismo
é um ingrediente importante, que torna esta experiência
ainda mais dilemática. O interessante é que o neoliberalismo
também vai defender a participação da sociedade civil, mas
por outros motivos. Esse é um tema que tem estado muito
presente nos nossos estudos – me refiro aqui aos debates
e produções realizados no âmbito do Grupo de Estudos sobre
a Construção Democrática, que ajudei a criar e do qual participo
desde 1996.
No interior do ideário neoliberal, a sociedade é chamada
a participar para aumentar a eficiência das políticas, numa
perspectiva mais gerencialista que transformadora, numa
participação que se transforma em “ferramenta de gestão”.
Isto fica evidente nos governos Fernando Henrique Cardoso,
no qual se afirma este outro ethos da participação. Nesse
diapasão, o tom contestador que compunha a retórica participacionista
se dissolve no discurso técnico da moderna gerência, com
um evidente deslocamento do tema do conflito em favor da
temática da eficiência e eficácia das políticas.
Busquei trabalhar esse tema na minha tese de doutoramento,
principalmente a partir do conceito de democracia gerencial.
Hoje é interessante perceber como esses distintos fundamentos
que conferem legitimidade à participação, mostram-se combinados
– com grau diferente de intensidade – em diferentes modelos
de gestão.
JU – E, partindo desse quadro mais geral que você
traçou, quais têm sido os principais problemas ou desafios
da participação nos conselhos?
Luciana Tatagiba – Poderia ficar o dia todo elencando
problemas e desafios, como os interesses corporativos e
particularistas de muitas organizações e movimentos sociais
que compõem esses espaços, que muitas vezes se utilizam
deles para se aproximar do Estado e obter recursos materiais
ou simbólicos. Ou mesmo o vínculo de muitas das lideranças
de movimentos com partidos políticos, o que acaba às vezes
transformando os conselhos em palco da disputa partidária.
Vimos isso com muita clareza numa pesquisa realizada junto
ao Conselho Municipal da Criança e do Adolescente de São
Paulo. Um limite enorme a ser superado diz também respeito
à dificuldade de obter informações dos órgãos governamentais.
Para uma boa participação é preciso boa informação, e isso
esbarra na forma de operar da burocracia brasileira. Acompanhando
o dia-a-dia de alguns conselhos em São Paulo, nas gestões
Serra/Kassab, vimos a enorme dificuldade que os conselheiros
têm para exercer esse direito de cidadania, que é o aceso
à informação. E sabemos que isso não se restringe a São
Paulo...
Isso, sem contar, obviamente, com a recusa dos governos
em compartilhar com a sociedade civil os processos de decisão
sobre a forma de investir o dinheiro público. Os governos
se esquivam como podem, e quando são bem sucedidos acabam
transformando os conselhos em espaços de legitimação para
suas decisões, no geral tomadas longe dos olhos públicos
e perto dos seus parceiros tradicionais. Por isso, a própria
existência destes conselhos e a obrigatoriedade dos governos
sentarem-se à mesa para negociar a elaboração de políticas
públicas com a sociedade civil já representam um enorme
avanço. Mas, ainda sobre a questão dos desafios, uma questão
central diz respeito, justamente, à relação entre democracia
participativa e democracia representativa.
JU – O que você quer dizer com isso?
Luciana Tatagiba – No projeto democrático-participativo
não se trata de substituir os mecanismos tradicionais de
representação, sobre os quais se assentam os alicerces da
democracia moderna. O que está em jogo é uma complementaridade
entre ambos os modelos que possibilite superar alguns dos
impasses do modelo democrático hegemônico. Essa me parece
uma aposta fundamental e ao mesmo tempo difícil de ser realizada.
Hoje o que vemos é uma combinação de natureza subordinada
entre democracia participativa e democracia representativa,
sob hegemonia desta última.
JU – Poderia dar algum exemplo concreto disso?
Luciana Tatagiba – Sim, em um estudo que realizamos
sobre experiências de participação no governo da Marta Suplicy,
em São Paulo, vimos como a realização do projeto participativo
ficou condicionado – e foi profundamente limitado – pelas
exigências próprias impostas pelo ritmo das disputas eleitorais.
No caso do governo Marta, o saldo das experiências participativas
parece nos indicar um governo que, ao mesmo tempo em que
abriu novos espaços de participação (como, por exemplo,
a criação do Orçamento Participativo e do Conselho Municipal
de Habitação, antigas demandas dos movimentos populares)
não investiu nesses espaços. O que vimos foi uma convivência
muito “pacífica” entre as novas experiências de participação
com uma prática de gestão conversadora no que se refere,
por exemplo, à relação entre executivo e legislativo, cujo
fundamento esteve ancorado numa relação de troca, forjado
sobre os interesses eleitorais de curto prazo.
JU – Como fica a questão da legitimidade da representação
da sociedade civil nesses espaços?
Luciana Tatagiba – Esse é um dos novos temas que
tem emergido no avanço das agendas de pesquisa nessa área.
Hoje há um grupo que vem discutindo qual a especificidade
da representação da sociedade civil em espaços como os conselhos,
o que significa, dentre outras coisas, perguntar sobre quais
critérios de legitimidade se assentaria essa representação.
Por algum tempo essas experiências foram tratadas como sendo
exemplos de democracia direta. Mas, como sabemos, não se
trata disso. Espaços como conselhos, orçamentos participativos,
etc, colocam em curso diferentes modalidades de representação
e fundamentos de legitimidade, os quais por si só têm se
traduzido em interessantes agendas de investigação, com
desdobramentos interessantes no campo das teorias da democracia.
No campo das pesquisas empíricas, hoje já temos um conjunto
de informações no que refere ao perfil dos conselheiros.
Nesse caso é interessante perceber que apesar dos diferentes
contextos nos quais a prática conselhista ganha vida, os
conselheiros da sociedade civil têm renda familiar e nível
educacional acima da média da sua população de referência.
Isso nos tem permitido falar numa certa elitização da participação
nos conselhos, diferente do que vemos, por exemplo, no caso
das experiências de orçamento participativo.
Uma outra questão importante, aqui, diz respeito à relação
entre os conselheiros e suas organizações de origem. O que
os estudos apontam é que na maioria dos casos os conselheiros,
nas reuniões do conselho, acabam representando a si mesmos.
Isso é ainda mais dramático no caso dos conselheiros governamentais,
porque muitas vezes este representante não tem qualquer
poder de decisão nas suas secretarias e, por isso, não pode
encaminhar acordos e negociações no interior dos conselhos,
ou quando os faz, tem dificuldade para honrá-los depois.
JU – Diante de todos esses desafios você acha que
ainda é possível manter esta aposta na participação institucional,
ou de luta por dentro do Estado?
Luciana Tatagiba – Sim, não tenho dúvidas disso. Mas, como
disse, também acredito que devemos repensar nossas expectativas
e fugir das soluções simplistas, que ora defendem uma aposta
cega na participação institucional, ora negam qualquer forma
de envolvimento com dinâmicas participativas institucionalizadas
em favor da ação direta disruptiva. Um caminho mais frutífero
seria pensar nas diferentes perdas e ganhos de cada uma
dessas estratégias. Acho que também valeria a pena, agora
com o acúmulo de estudos que temos nessa área, investir
um pouco mais em duas questões: por que participar e que
relação podemos estabelecer entre participação e democracia?