Jornal
da Unicamp O que o levou no início dos anos 80 a adotar
o tema na sua tese de doutorado?
José Luís Sanfelice – Havia várias razões subjetivas que
me despertaram o interesse pelo estudo do movimento estudantil.
Mesmo não tendo pertencido aos quadros dirigentes, participei
ativamente de manifestações, passeatas, protestos e de muita
discussão em que os estudantes estavam envolvidos naquele
período. À medida que me distanciava dos fatos, adquiria
condições de maior entendimento e compreensão do que tinha
ocorrido com a nossa geração de estudantes e professores
universitários, e com os movimentos da época. Fui levado
ao trabalho porque, então, com um certo distanciamento,
queria entender o processo. Além disso, começava-se a respirar
certos ares de liberdade.
JU – Por que o recorte centrado nas ações da UNE?
Sanfelice – Queria inicialmente entender a visão que a UNE
tinha do próprio movimento. Hoje isto está mais claro para
mim, pois acabei abrindo um espaço, através da pesquisa,
para dar voz à UNE, uma voz reprimida, perseguida, extremamente
desarticulada pela repressão.
JU – Como isso foi feito?
Sanfelice – Juntei documentos, pesquisei sobre
os congressos da UNE mesmo na fase mais clandestina para
saber o que a entidade pensava daquele processo, da universidade,
dos estudantes, das suas alianças com movimentos sociais
mais progressistas, em especial do movimento operário, que
era uma preocupação permanente de seus quadros dirigentes.
Para isso usei essencialmente os documentos produzidos pela
própria UNE e deparei-me com idéias muito estruturadas.
Cheguei a me surpreender e até hoje me surpreendo porque,
embora eu tivesse vivido o processo, como estudante não
tinha a visão que os documentos refletem daquele momento.
O estudo me revelava um grupo de estudantes intelectualmente
privilegiados, que detinham a liderança do movimento estudantil
e com hegemonia dentro da entidade.
JU – Qual a origem desses estudantes?
Sanfelice – Um grande grupo tinha vínculos com
a Igreja Católica, provinha da Juventude Universitária Católica
(JUC), da Ação Popular (AP), que era o braço mais político
dessa corrente, do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o
“Partidão”, que também se tornou importante nesse processo,
e mais à frente grupos dissidentes mais à esquerda, como
o PC do B e muitos outros mais radicais. Esses grupos se
manifestavam através dos congressos da UNE em que as teses
eram debatidas e levavam à elaboração de documentos de análise
da conjuntura histórica nacional, da relação dessa história
com o que os estudantes denominavam imperialismo. Decorrentes
dessas análises, surgiam plataformas de lutas, estruturavam-se
ações e determinavam-se tarefas mais imediatas. Surpreendi-me
diante da constatação de que muito pouco disso chegara à
grande massa estudantil.
JU – Não existiam estudos nessa direção?
Sanfelice – É bom lembrar que quando iniciei a
pesquisa isso tudo era de difícil acesso e ainda havia o
receio de tocar na temática, de mexer com as fontes necessárias,
pois se começava a sair dos “anos de chumbo” e por isso
a pesquisa tinha um certo caráter de inusitado. Na época,
eu encontrei – e acabei citando – referências de pesquisadores
que abordaram os jovens – mais do ponto de vista sociológico
ou de um movimento estudantil genérico.
Entretanto, o foco centrado na UNE, para descobrir-lhe
o pensamento teórico, o que pensavam suas lideranças e que
propostas efetivamente tinham, isso acho que foi razoavelmente
novo naquelas circunstâncias. Posteriormente, surgiram bons
livros que passaram a utilizar o meu como referência para
acrescentar outros elementos. Ative-me particularmente à
década de 60 e muita gente deu seqüência aos estudos a partir
de 70.
JU – Qual a origem dos documentos examinados?
Sanfelice – Consegui de ex-militantes documentos
produzidos na UNE que circularam no movimento estudantil,
mas não eram encontrados em bibliotecas. Além disso, a USP
já começava a ter algum material no Centro de Estudos de
Cultura do Brasil, resultantes principalmente dos congressos
da UNE, que analisava a reforma universitária. Com isso
consegui de alguma forma recuperar o caminho percorrido
pela UNE do finalzinho dos anos 50 até o final dos anos
60.
JU – Por que esse período?
Sanfelice – Foi uma época em que a UNE se altera
profundamente, deixa de estar atrelada ao poder, entra na
discussão das reformas de base, assume a bandeira da reforma
universitária, engaja-se nos movimentos populares de alfabetização
de adultos e cria a UNE volante para difusão cultural pelo
Brasil. É a UNE que eu considero de resistência ao golpe.
Que já se posicionara ao assumir a luta pela legalidade
junto com Leonel Brizola – por ocasião da renúncia de Jânio
Quadros e posse de Jango; que na época do plebiscito defendera
a volta do presidencialismo em lugar do parlamentarismo
que Jango tivera que engolir para ser empossado; que chega
aos expressivos movimentos de 1968 e 1969 com as grandes
passeatas, agora já durante a ditadura militar que sucedeu
à queda de Jango. Essas ações não são gratuitas, já que
por trás delas tem uma leitura da realidade e uma produção
teórica que explica as posições assumidas.
JU – Houve surpresas?
Sanfelice – Do ponto de vista do material com que
trabalhei, a surpresa mais relevante deu-se em relação à
qualidade teórica das análises, sem qualquer julgamento
de valores. São análises relativamente extensas e profundas
e pertinentes como ponto de vista da UNE em relação àquela
conjuntura. Outra surpresa foi constatar o grande distanciamento
entre essa produção teórica e o movimento da massa estudantil.
Eu tinha sido estudante naquele contexto e não tive acesso
a esses documentos, o que sugere uma produção elitizada.
JU – De onde vinha essa maturidade?
Sanfelice – O grupo dirigente era constituído de
lideres estudantis, intelectuais que se tornaram elite da
UNE e do movimento por ela liderado. A minha explicação,
ainda que parcial e genérica, é que se tem primeiro uma
influência da perspectiva religiosa católica, progressista,
no sentido de responsabilidade social, justiça, que revelava
um catolicismo já um tanto avançado para a época. Fica claro
também que as perspectivas do pensamento socialista vão
se difundindo cada vez mais, seja por causa de revolução
cubana, com as figuras emblemáticas de Fidel Castro e Che
Guevara, seja porque o PC adquiriu status um tanto diferenciado
dentro das condições da época, seja pelas matrizes teóricas
representadas pelo marxismo, fosse leninista ou da revolução
chinesa. Não se tem uma matriz limpa, clara. Tanto que as
tendências levam cada vez mais à divisão do movimento que
se fraciona em grupos muito pequenos.
JU – Como sua tese foi recebida à época?
Sanfelice – A pergunta me remete à sessão publica
da defesa da tese que se realizou no anfiteatro da PUC-SP
com a presença de um público além do esperado, porque, para
a época, o tema despertava particulares atenções. O clima
que permeou a defesa foi tenso porque a banca examinadora
se revelou disposta a acertar contas com o movimento estudantil,
por uma razão simples: a maioria daqueles doutores de alguma
forma tinha passado por ele.
A defesa foi extremamente demorada e o que mais se cobrou
de mim é que eu fizesse um julgamento do movimento estudantil.
Afinal, eles esperavam que as contas fossem acertadas por
mim, o que me neguei a fazer. De uma examinadora ouvi uma
frase que me marcou: “Desça do muro e tome partido”. Ela
esperava que eu dissesse se a UNE acertou ou errou. Outro
examinador argumentou que eu quisera fazer uma elegia da
UNE, apesar de eu ter deixado bem claros meus propósitos
na apresentação do trabalho.
JU – A que público se destina esta nova edição?
Sanfelice – O tema suscita hoje interesse no meio
acadêmico e no meio estudantil universitário. Você presenciou
alunas entrando aqui à procura do livro. Está renascendo
o interesse acadêmico pelo movimento estudantil. Nos últimos
anos tem crescido o interesse pelo movimento estudantil
depois de um período em que foi esquecido. Talvez a revitalização
do tema tenha vindo no bojo do movimento dos caras pintadas,
por ocasião da queda de Collor. Existe a idéia generalizada
de que os estudantes não são politizados, não participam
de nada, mas repentinamente começa um processo de ocupação
de universidades, de denúncias por parte dos estudantes.
Alguma coisa mudou e talvez não se tenha conseguido entender
ainda o que mudou e para que direção se encaminha a mudança.
Entendo que o livro passou a ser uma referência para quem
trabalha com história e constitui um documento que precisa
ser socializado pelas razões apontadas. Deixo claro nesta
nova edição que não se devem criar mitos sobre a UNE, sobre
o movimento estudantil, sobre o livro, porque ele constitui
apenas um registro intencional e tem seus limites, embora
também tenha seus alcances. A idéia é socializar ao máximo
um trabalho para quem tenha interesse e queira conhecer
a história, para entender inclusive mudanças que ocorreram
em uma época.
JU – Quais a mudanças introduzidas na nova edição?
Sanfelice – No prefácio, acrescento as razões que
me levaram à decisão de reeditar a obra e esclareço algumas
observações que ao longo dos anos foram feitas sobre o trabalho.
O posfácio, que não existia, constitui uma contribuição
a uma linha de estudo acadêmico que é a da história do livro.
Ao final, recomendo uma bibliografia produzida depois da
publicação do meu livro para que o leitor possa ir além
e tenha contato com outras abordagens que o tema suscitou
ao longo de tempo. Excluí da nova edição os documentos originais
de consulta como forma de diminuir o volume e baratear o
custo. Hoje eles podem facilmente ser encontrados na Internet,
inclusive no site da editora. Na época da primeira publicação
não existiam essas facilidades e o acesso aos documentos
era muito difícil.
JU – O que o senhor espera com o relançamento do
livro?
Sanfelice – A idéia é trazer uma contribuição da
história da educação no Brasil e facilitar aos interessados
os caminhos que levam a conhecê-la, porque para os universitários
de hoje as ocorrências dessa época estão muito distantes.
O livro é uma forma de ajudar, facilitar, aproximar o conhecimento
histórico das novas gerações, utilizando o recorte da história
da educação e o movimento estudantil, porque a UNE se mobilizou
para a reforma universitária que acabou ocorrendo. Em 1968
foi publicada também uma nova Lei de Diretrizes e Bases
da Educação. Essas reformas atendiam de certa forma algumas
reivindicações dos estudantes, embora isso não fosse admitido
pelo poder constituído.