Jornal da Unicamp – Concertação social é um termo
incomum mesmo na literatura da ciência política. Pode explicar
do que se trata?
Jorge Tapia – O conceito de concertação social nasceu
nos anos 1970, relacionado ao chamado neocorporativismo,
para explicar as políticas elaboradas que tinham por base
estruturas de representação de interesses centralizadas,
às quais se associavam organizações de cúpula sindicais
e empresariais. A concertação consiste na elaboração de
políticas públicas através de negociações entre Estado,
empresários e trabalhadores através de organizações sindicais
e empresariais de cúpula. Aqui, uma organização de cúpula
equivalente seria a CNI [Confederação Nacional da Indústria],
embora nunca tenha desempenhado este papel no Brasil.
JU – O que se negociava nessas organizações de
cúpula?
Jorge Tapia – A agenda nos anos 60 e 70 estava muito
baseada na moderação entre salário, emprego e aumento dos
gastos sociais, isto é: a expansão do Welfare State [Estado
do Bem-estar] em troca da negociação salarial ao invés de
greve, e assim por diante. Esta era a idéia do neocorporativismo
e a concertação é a política baseada neste tipo de negociação.
Diante da liberalização dos anos 80, ocorreu uma descentralização
muito grande da negociação, que antes era feita em nível
nacional e passou para o nível setorial e das empresas.
Ao mesmo tempo, a política keynesiana foi sendo substituída
pelas políticas neoliberais, que enfatizavam o papel regulador
do mercado – embora o Estado nunca tenha saído totalmente
deste processo.
Com a retração do keynesianismo e a desregulamentação e
a descentralização das relações industriais, o modelo anterior
de concertação social também sofreu abalos. Entretanto,
já no final dos 80, mas sobretudo nos 90, houve uma espécie
de segunda onda das concertações sociais, que são diferentes
daquela dos anos 60 e 70.
JU – E quais foram as mudanças?
Jorge Tapia – Mudou a agenda, por exemplo. Temos
um processo de ajuste do Welfare State, o que não significa
seu desmantelamento, mas uma redução e uma reversão da sua
tendência de crescimento. Por outro lado, a agenda é ampliada
por questões como meio ambiente e política regional, embora
o núcleo básico contemple as questões anteriores. E o número
de atores também se altera, somando-se ao Estado, às associações
empresariais e aos sindicatos, os governos regionais e as
associações setoriais (não apenas as de cúpula), entre outros.
JU – Em que medida a consolidação da União Européia
influi para esta segunda onda de concertações sociais?
Jorge Tapia – A unificação jogou um papel importante,
que os autores do tema denominam como o ‘vínculo externo’.
Com o Tratado de Maastricht [que promoveu a união monetária
européia em 1992] e a determinação do limite de 3% de déficit
público para poder entrar na zona do euro, uma série de
economias nacionais tiveram que se ajustar. E o mecanismo
para este ajuste, que no fundo significava criar um mínimo
de convergência entre os diferentes atores da sociedade,
implicou justamente em políticas negociadas, concertadas.
JU – Qual é o propósito da publicação deste livro?
Jorge Tapia – O livro reúne alguns dos textos mais
importantes sobre as concertações sociais nos anos 90, num
esforço para trazer uma discussão que acontece há quinze
anos na Europa, mas que praticamente inexiste no Brasil.
Mesmo aqueles que se dedicam ao tema, talvez saibam pouco,
até porque a partir dos 80 achou-se que o assunto estava
esgotado. Eu, inclusive, descobri que ele tinha renascido
por acaso, ao realizar pesquisas para um paper solicitado
para um seminário.
JU – Por que o senhor considera esta discussão
importante para o Brasil?
Jorge Tapia – Antes, devo admitir que esta discussão
causa certa desconfiança. No imaginário político e social
brasileiros, pactos sociais são iniciativas que nunca funcionam,
seja por causa de uma crise econômica que varre a possibilidade
de consenso, seja porque os atores dominantes recusam-se
a negociar, ou ainda porque o Estado não parece verdadeiramente
interessado.
Entretanto, penso que a discussão é pertinente para o país
porque desde a Constituição de 88 tem havido um processo
de adensamento do associativismo. Podemos usar como parâmetro
a criação de diversos conselhos em áreas como de educação,
saúde e assistência social. E o associativismo, na verdade,
é o tecido básico para promover concertação social, isto
é, políticas negociadas entre atores relevantes.
JU – Os conselhos não seriam vítimas da mesma desconfiança
quanto a resultados práticos?
Jorge Tapia – É uma experiência complexa, que está
muito no início e que ainda causa polêmica, pois os conselhos
funcionam em alguns casos e menos em outros. De qualquer
maneira, temos o embrião de algo novo. A isto eu associo
a criação pelo governo Lula do Conselho de Desenvolvimento
Econômico e Social (CDES) em 2003, que considero uma novidade
– fiz um estudo sobre sua implantação.
Este conselho é um espaço de interlocução e negociação
que existe em inúmeros países, como França, Itália, Portugal,
Espanha, Suécia e África do Sul. Ele não possui poder deliberativo,
mas penso que é um laboratório importante por reunir empresários,
sindicalistas e lideranças de movimentos sociais, exprimindo
na sua representação a diversidade social do país.
A construção de uma instituição é um processo longo e complexo,
quando no Brasil temos uma afoiteza típica de considerar
que ela não serve simplesmente porque não viabilizou políticas
em um ou dois anos. O CDES vem se adensando do ponto de
vista institucional e, embora consultivo, dá ressonância
aos debates, indo na direção de criar condições para discutir
novas formas de concertação social.
JU – Quais são as discussões que ocorrem dentro
do CDES?
Jorge Tapia – Na última reunião [06 de novembro],
por exemplo, Guido Mantega e Henrique Meirelles apresentaram
a visão do Ministério da Fazenda e do Banco Central sobre
a crise internacional e seus impactos no Brasil, e as últimas
medidas que as duas instituições tomaram. Mas é um fórum
onde se discute de tudo, como por exemplo, composição do
Copom, política de taxas de juros, política energética,
política de comércio exterior, reforma política e reforma
tributária.
A agenda é ampla e muito colada à agenda do governo, o
que em si não é um problema, haja vista que em outros países
se discutem temas da agenda pública, mas que em grande parte
são também do governo. O que existe lá – e muito pouco aqui
– é que em países como Portugal, Itália, França e Espanha
o conselho produz relatórios técnicos sobre o tema, a pedido
do governo, mantendo um diálogo muito próximo.
JU – Vai demorar até que o CDES e outros conselhos
atinjam o mesmo nível de diálogo com o governo?
Jorge Tapia – Ainda estamos engatinhando, mas acho
a experiência válida, importante e necessária, primeiramente
porque é preciso complementar as instâncias de discussão
que já existem na democracia representativa. Há autores
que consideram os conselhos e seus congêneres como uma negação
da democracia representativa, argumentando que estão subtraindo
poderes do parlamento. Isto não é verdade, já que conselhos
não têm poder deliberativo. Um desafio é justamente criar
mecanismos de interlocução com o parlamento, o que pode
contribuir para uma melhoria dos costumes políticos.
Um segundo aspecto a ser destacado é que em sociedades
complexas, desiguais e assimétricas como as atuais, uma
cultura da negociação, que não seja meramente paliativa,
pode cumprir um papel importante. E o Brasil possui um cenário
típico. A grande alternativa, agora que se contesta tanto
a idéia neoliberal de que o mercado tudo regula, é criar
condições para negociar e tomar decisões a partir da diversidade
dos atores, sem a utopia de que todo mundo vai passar a
pensar igual.
JU – A crise mundial e o aumento da desconfiança
em relação ao pensamento neoliberal tornam o ambiente mais
propício para a aceitação do conceito de concertação social?
Jorge Tapia – Em minha opinião, a concertação social
e os mecanismos de negociação são os instrumentos nos quais
deveríamos apostar como uma das melhores formas de tomar
decisões coletivas. Este é o ponto central. Como eu disse,
a sociedade de hoje não é a sociedade clássica do século
19, é muito mais complexa e apresenta identidades muito
mais diferenciadas, com uma agenda de interesses tão ampla
que torna bastante difícil encontrar um viés de classe nisso
tudo.
Acho importante, inclusive, vincular uma discussão sobre
estilos de vida. Já se sabe desde o Clube de Roma que este
padrão de consumo per capita americano não é viável nem
desejável para o mundo inteiro. É ruim enquanto qualidade
de vida, pois maximiza o consumismo, e inviável do ponto
de vista dos recursos disponíveis no planeta. Devemos procurar
estilos diferentes de desenvolvimento, cultura e consumo,
e para isso é preciso possibilitar o máximo de participação.
Espero que o livro represente uma contribuição para esta
discussão.