LUIZ
SUGIMOTO
“Antes
eu era transparente, agora sou cheio de cores”. Premiado
no Brasil e no exterior por suas gravuras, o campineiro
Paulo de Tarso Cheida Sans toma emprestada a célebre frase
de Arthur Bispo do Rosário para se referir a uma nova etapa
da carreira que iniciou há mais de 40 anos. “A gente vai
ficando velho e começa a perceber que há uma grande distância
até onde se quer chegar. Estou maduro o suficiente para
lidar com vários materiais e fazer também esculturas e pinturas,
o que me dá a sensação de início de carreira”.
Paulo Cheida já produz objetos e instalações há dez anos
e encontrou espaço para mostrar este trabalho na Galeria
de Arte da Unicamp. A exposição faz parte da tese de doutorado
Trajetórias e vicinalidades entre a gravura, o objeto e
a instalação, orientada pela professora Louise Weiss, do
Instituto de Artes. “A mostra sintetiza o resultado da pesquisa,
em que procuro transmitir o que penso sobre a arte brasileira,
não apenas através da minha obra, mas promovendo um elo
com quatro artistas que julgo importantíssimos”.
Assim, Cheida criou as instalações “Pontas e bananas”,
em deferência a Antonio Henrique Amaral; “Sombras emblemáticas”,
reportando ao baiano Ruben Valentim; “Depositório para um
anjo”, em memória de Arthur Bispo do Rosário; e “Gavetas
do tempo”, para Louise Weiss, sua orientadora. “São artistas
de grande dimensão dentro do meu imaginário, que me enriqueceram.
Aprendi muito observando o trabalho deles, mas criei essas
obras de modo autêntico e autônomo”.
Antonio Henrique Amaral foi quem plantou a semente da gravura
na mente do garoto Paulo Cheida, que tinha 11 anos quando
visitou o Museu de Arte Contemporânea e jamais esqueceu
a obra que trazia uma figura exótica de cabeça para baixo.
“Tinha sido aluno do conservatório Carlos Gomes e de Egas
Francisco e, naquele ano (1966), expus pela primeira vez,
no Salão do Artista Jovem do MAC. Ainda não sabia o que
era gravura, nem guardei o nome do artista”.
Mais
tarde, ao rever a gravura, Cheida passou a pesquisar a trajetória
de Amaral, que enveredou pela pintura e transformou seu
ateliê, dentro de um sítio em Atibaia, na “sede das bananas”.
“Ele virou pintor quando estava no auge com a gravura –
havia lançado o álbum O meu e o seu, apresentado por Ferreira
Gullar. Em seu trabalho extremamente político, a banana
era um meio de burlar a censura, representando o momento
do país: uma guerra em que garfos e objetos cortantes penetram
a banana derrotada”.
Paulo Cheida reproduz tais cenas de combate na Galeria
da Unicamp, mas em sintonia com o próprio trabalho, visto
que a sua gravura faz fundo para a banana perfurada, ao
mesmo tempo em que gravatas (uma de suas marcas) dão forma
às cascas da fruta. “Antonio Henrique Amaral é um nome que
faz parte da minha trajetória como artista. Além de me tornar
também um gravador, tive a oportunidade de visitá-lo no
ateliê e de convidá-lo a participar de exposições em que
atuei como curador”.
Filtrando o mundo
Na opinião do autor da tese, um artista impossível de apagar
da memória é Arthur Bispo do Rosário, que estava internado
em sanatório havia mais de 40 anos quando foi descoberto
pela reportagem do “Fantástico”. “O crítico Frederico Morais
viu o programa e, ao conferir pessoalmente, ficou maravilhado
com a obra de Rosário, que a partir de fios desfiados da
própria roupa, garfos, sandálias e apetrechos catados no
hospital, alcançava resultados semelhantes aos obtidos por
artistas de vanguarda”.
Cheida observa que Rosário não possuía o menor conhecimento
de arte, nem pretendia ser um artista, mas acabou levado
ao Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro, tornando-se
conhecido mundialmente e participando inclusive da Bienal
de Veneza. “Diante da simplicidade do material que escolhia,
foi um grande artista. Mas o mais importante é a pureza
de quem acreditava estar filtrando o mundo com as vitrines
que produzia; e que ele próprio passaria para outro mundo,
como um representante divino que só faria o bem para a humanidade”.
Por
isso, a instalação “Depositório para um anjo” traz estruturas
montadas com os materiais preferidos de Arthur Bispo do
Rosário, como cabos de vassoura e garrafas plásticas de
refrigerante. Para o elo com seu trabalho, o autor recorreu
a gravuras antigas para envolver as garrafas. “Construí
o que considero simbolicamente um filtro, por onde estão
passando bolachas de madeira coloridas representando as
obras de Rosário: é como uma mensagem espiritual para outro
mundo, tal qual ele imaginava acontecer”.
Os emblemas de Ruben Valentim, artista baiano também já
falecido, despertaram a imediata admiração de Paulo Cheida
durante uma visita à Bienal de São Paulo, na década de 1970.
“Em uma grande sala especial, estavam obras gigantes feitas
em madeira, com vazados, relevos e usando o branco com branco
– o efeito da sombra era muito importante em seu trabalho.
Fui acompanhando de longe sua série de serigrafias”.
Para lembrar o trabalho de Valentim, Cheida montou figuras
geométricas feitas com PVC, com sombras que remetem a símbolos
tribais africanos. “Sua obra continha um tipo de escrita,
com signos que ele sabia decifrar para enviar uma mensagem
afrobrasileira. Ele dava muito valor à mestiçagem do Brasil
e procurava fazer um trabalho que fosse reconhecido em outros
países, mas que em primeiro lugar representasse o país”.
Homenagem ao pai
De Louise Weiss, cujo trabalho acompanha desde a década
de 80, o aluno de doutorado cita Saga, uma trajetória, exposição
que a professora da Unicamp fez para sua livre docência,
com fotos de pessoas anônimas do passado. “Ela evoca e reconstrói
essas figuras, dando outro sentido à imagem; de um mundo
que já existiu, constrói outro. Considero sua obra muito
particular e expressiva, pois parece que aquelas fisionomias
nos observam, como se nós é que estivéssemos num quadro”.
O
elo com o trabalho de Louise Weiss idealizado por Paulo
Cheida para sua instalação “Gavetas do tempo”, é uma bela
foto ampliada do seu pai, ao volante de um trator. A qualidade
da imagem (da década de 50) se deve ao fato de que a família
Sans fabricava arados em Santa Bárbara d’Oeste: trata-se
de uma propaganda. “Meu pai morreu quando eu tinha apenas
um ano e não tenho a lembrança dele como pessoa. Por isso,
escolhi uma foto onde ele aparece de costas”.
Ao mesmo tempo, abaixo da foto na parede, Cheida enfileirou
gavetas “onde se guardam memórias”: no centro, uma que contém
seu autorretrato, e as demais com desenhos de um pássaro
levando no bico uma gravata (novamente, a marca do artista).
“As imagens à esquerda vão escurecendo, pois se trata da
morte, e as da direita vão clareando, simbolizando a paz.
Além de haver uma sintonia com a obra da Louise, é antes
de tudo uma homenagem ao meu pai”.
A propósito, Paulo Cheida afirma que a tese de doutorado,
como um todo, trata do sentimento de gratidão de uma pessoa
comum que foi a uma exposição e passou a admirar a arte.
“Este trabalho traz o que registrei com mais ênfase na memória.
Procurei fazer uma homenagem à arte brasileira, simbolicamente
representada por quatro artistas que escolhi. Eles são de
linhas diferentes, mas que têm a criação a partir da história
pessoal como elo que os une”.