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Borboletas liberam açúcar e
têm formigas como aliadas

Estratégia é possível graças a glândulas que produzem substância doce

Borboleta põe ovos. (foto: Divulgação) As formigas são tão abundantes no planeta que interferem na vida de praticamente todos os animais e plantas. Ser herbívoro no cerrado é ter um problema constante para se alimentar, pois as formigas são conhecidas por sua agressividade. Apesar de atuarem como predadoras e acarretarem efeito negativo na comunidade dos insetos herbívoros, duas famílias de borboletas (Lycaenidae e Riodinidae) encontraram uma estratégia importante de se aliar a este inimigo natural: dando açúcar como alimento. As lagartas das espécies de borboletas investigadas pelo biólogo Lucas Kaminski, em sua pesquisa de doutorado, possuem glândulas que produzem uma substância doce, das quais as formigas se beneficiam. De contrapartida, numa relação mutualística, as borboletas têm suas “filhas” (as lagartas) protegidas contra ataques de outros inimigos naturais e podem se alimentar das plantas ocupadas pelas formigas sem correr risco de serem atacadas. O coorientador Paulo Oliveira, especialista em ecologia comportamental de insetos, explica que as borboletas geralmente não têm como lutar contra outros herbívoros, então, no caso dessas famílias, as formigas acabam atuando como guardiãs das larvas. “Ninguém chega perto para fazer mal às larvas, pois as formigas são agressivas e agem como guarda-costas das lagartas”, explica Oliveira. A tese de doutorado está inserida dentro de uma linha de pesquisa consolidada na Unicamp, que aborda a interface da interação entre plantas, formigas e herbívoros no cerrado, coordenado por Oliveira.

Cigarrinhas com formigas. (Foto: Divulgação)O processo de seleção natural foi observado por Kaminski quando, após 25 dias de acompanhamento e monitoramento do comportamento de borboletas da espécie Parrhasius polibetes, ele constatou que para tais espécies a presença das formigas é mais importante que a das plantas para ovopositar, a fim de garantir a sobrevivência de sua prole. “O momento mais importante na história evolutiva dessas borboletas é colocar os ovos onde suas larvas possam sobreviver”, explica Kaminski. De maneira simples, Oliveira explica: “Sua prole vai sobreviver aos ataques de outros predadores e ainda vai ter do que se alimentar. Elas serão avós porque as larvas chegarão seguras à fase adulta e os genes podem se perpetuar graças à relação mutualística com as formigas”.

Oliveira lembra que formiga é o bicho mais abundante da Terra. Se for feito um quadrado na floresta Amazônica de 100x100 metros, serão encontradas 8 milhões de formigas no solo, segundo o biólogo. Se pensar que todas elas, agressivas como são, sobem em folhas para se alimentar, isso é um problema grande para o indivíduo herbívoro. “O principal dilema para os herbívoros é não ser atacado por formigas na hora de se alimentar”, acrescenta.

Interação entre lagarta e formiga: relação mutualística faz com que prole seja protegida contra ataque de inimigos naturais. (Fotos: Divulgação)A relação amistosa das formigas com outros insetos mutualistas já tinha sido comprovada em estudos anteriores, que também foram importantes na tese para constatar que as borboletas exploram outras associações. É o caso das cigarrinhas Guayaquila, parentes dos pulgões, que também liberam substâncias açucaradas importantes para as formigas. O pesquisador observou que essas cigarrinhas também servem como referência para as borboletas na hora de escolher os ramos de Schefflera, planta tradicional do Brasil, para colocar ovos. “Além de localizar as formigas, elas conseguem identificar essas cigarrinhas, pois sabem que ali suas larvas também estarão protegidas”, acrescenta Kaminski.

A descoberta de Kaminski é importante para compreender a história evolutiva dessas famílias de borboletas, mas também para ampliar os estudos sobre outras interações da biodiversidade. O orientador André Freitas declara que os resultados da pesquisa de Kaminski acrescentam informação sobre as interações positivas entre formigas e lagartas. “Em geral, lagartas de mariposas e borboletas são comida para formigas, mas nessa família o Lucas mostra uma situação diferente e suas consequências na vida da borboleta. Essa é a grande novidade”

Da esq. para a dir., Lucas Kaminski, autor da tese, e os professores  Paulo Oliveira e André Freitas, orientadores: estudos da  interação entre plantas, formigas e herbívoros no cerrado (Foto: Antoninho Perri)Mais que um benefício para outros estudos acadêmicos e até mesmo que uma contribuição na área de ecologia e comportamento de insetos, o estudo desenvolvido por Kaminski pode ajudar a resolver questões de conservação ambiental e também do dia a dia das pessoas. O trabalho é também um exemplo de que os estudos da interação na mata atlântica, no pantanal e no cerrado dão subsídios até para compreender problemas mais simples em sistemas de agricultura.

Universo sensorial

As interações permitem que as pessoas entendam melhor o universo sensorial dos herbívoros e isso pode ser útil para resolver problemas relacionados à vida humana, na opinião de Oliveira. Alguns deles se colocam à mesa todos os dias – como alimentos com resíduos de agrotóxico – e poderiam ser resolvidos a partir da compreensão dessas interações, usando a própria diversidade de insetos. A pesquisa desenvolvida na área de ecologia evolutiva está mais próxima das pessoas do que se imagina, na opinião de Oliveira. Talvez, seja preciso redirecionar o olhar, ou repensar valores. Oliveira recorre à interação entre o leão e a zebra para clarear o entendimento: “O leão enxerga longe, corre muito bem, tem mandíbulas e garras fortes e necessita da zebra para alimentar seus filhos. Mas a evolução pode ser vista através da zebra, que tem um olfato apurado para detectar se o leão está se aproximando, enxerga de longe para vê-lo a distância e corre muito para não ser pega por ele.”

Oliveira pontua que, se formigas ocorrem em grande quantidade em vários ecossistemas tropicais, elas podem ser úteis para atacar as pragas da lavoura, que atualmente são combatidas com agrotóxicos que vão parar nos alimentos que vão para a mesa e fazem mal à saúde humana. “Então, neste caso, como predadoras, as formigas funcionam como os leões do exemplo acima: atacam os insetos, criam problema para quem é herbívoro, mas podem ser úteis para atacar as pragas que combatemos com agrotóxicos. Se a formiga é boa ou ruim, depende do ponto de vista. Trazemos da infância uma noção negativa porque “crescemos vendo saúva cortando roseiras”, exemplifica. Mas elas podem também ser benéficas ao atacarem pragas.

Freitas lembra que muitas coisas mudam quando o ambiente é degradado, entre as quais a interação com formigas. Quando há degradação ambiental, pode ser que não se perca nenhuma espécie, mas pode se perder uma interação de milhões de anos de evolução, que seja importante para a manutenção de equilíbrio como um todo. “Pode ser que você chegue num cerrado e encontre as borboletas, as formigas e outros pés de Schefflera, mas não encontre as interações e a importância ecológica que têm no cerrado. Para o cerrado em particular e para todo o planeta de forma geral, é muito importante que a gente pense na conservação pela interação ecológica e não só de espécies, porque isso vai manter a evolução funcionando a longo prazo”, explica Freitas.

Kaminski acrescenta que quanto mais diverso um lugar, mais saudável a vida humana. “Então, se você for ao centro de São Paulo irá encontrar uma espécie de formiga, baratas, ratos, pombos. Se vier a Barão Geraldo, verá uma diversidade maior e, se for à floresta, maior ainda.”

Numa pesquisa realizada na Mata Atlântica, Oliveira descobriu que mesmo as saúvas dão uma contribuição importante para o ecossistema. Segundo o professor, quando o fruto cai no chão, o fungo ataca a semente impedindo que ela germine, entretanto, a saúva remove a polpa úmida e deixa a semente limpa, impedindo que seja fungada. Isso garante a permanência dessas plantas no ecossistema.

A espécie Parrhasius polibetes tornou-se um pouco mais conhecida recentemente pelas mãos de Kaminski, que estudou seu relacionamento com mais de 15 espécies de formigas, principalmente do gênero Camponotus, que as cuidam (atendem) a partir do terceiro estágio de desenvolvimento. Essas formigas, segundo Kaminski pertencem a três subfamílias (Formicinae, Myrmicinae e Ectatomminae).

Consequências

O atendimento por formigas, segundo o pesquisador, reflete em custos e benefícios, e a diferença de atendimento de uma espécie de formiga para outra pode influenciar no desenvolvimento da lagarta, com consequências positivas ou negativas. No caso específico do presente estudo, as larvas que se desenvolvem em plantas com associação cigarrinhas-formigas sobrevivem melhor do que em plantas sem associação.

Os resultados obtidos na tese, segundo o autor, mostram que o estudo das interações mutualísticas deve levar em conta todas as espécies envolvidas, e não apenas um par de espécies, como por exemplo, uma abelha que poliniza uma flor. “Provavelmente, os resultados inéditos que obtivemos só tenham sido detectados porque estudamos todas as espécies envolvidas (formigas-plantas-herbívoros-inimigos naturais)”. Os custos e os benefícios em sistemas mutualísticos podem ser sutis e difíceis de ser detectados, especialmente em espécies como P. polibetes, onde a presença de um segundo organismo mutualista (as cigarrinhas), influenciam na vida dele, segundo Kaminski.

Graças ao enfoque amplo do trabalho realizado por ele, que levou em conta todas as espécies envolvidas, os benefícios da mirmecofilia se tornaram mais óbvios e puderam ser detectados. Isso, na sua opinião, deixa claro que um melhor entendimento sobre a evolução do mutualismo com formigas envolve também um melhor conhecimento sobre as plantas, suas formigas visitantes, bem como a presença de outros organismos sobre a vegetação.

 

Publicação: Tese de doutorado “Mirmecofilia em Parrhasius polibetes (Lepidoptera: Lycaenidae): história natural, custos, seleção de planta hospedeira e benefícios da coocorrência com hemípteros mirmecófilos”

Autor: Lucas Kaminski

Orientadores: André V. L. Freitas e Paulo S. Oliveira

Unidade: Instituto de Biologia (IB)

 

 

 
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