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Lição de anatomia
Anecessidade
de proporcionar às filhas uma aula de dança não formal levou
Jussara Miller a tornar acessível a técnica de dança e educação
somática Klauss Vianna – essencialmente construída para adultos
– para o público infantil. A dançarina e coreógrafa explicou
que o principal motivo por não querer uma dança convencional
baseou-se na observação de que a criança tem uma espontaneidade
corporal e uma flexibilidade e, dessa maneira, avaliou que
não seria o momento de colocá-las diretamente num código específico,
como o balé clássico, por exemplo. Com a participação das
amigas de suas filhas, um grupo regular infantil acabou se
formando. Passados dez anos, Miller afirmou que optar por
essa adaptação fortaleceu muito seu trabalho, uma vez que
deu possibilidades de seguir pesquisando quais são as necessidades
das crianças. “Como é um trabalho efetivamente de pesquisa,
criação e como a criança já está bastante disponível para
desenvolver essa exploração do movimento, vi que na verdade
trata-se de um território muito fértil para trabalhar com
o público infantil”, disse Miller. A pesquisa resultou em
sua tese de doutorado, defendida no Instituto de Artes (IA)
da Unicamp, sob a orientação da professora Elisabeth Bauch
Zimmermann.
Graduada no curso de Dança
pela Unicamp em 1990, paralelamente Miller foi aluna do bailarino
e coreógrafo Klauss Vianna (1928-1992) e de seu filho Rainer
Vianna em São Paulo. Chegou, inclusive, a ser professora da
escola Klauss Vianna, na capital paulista. Atualmente é diretora
e professora do Salão do Movimento (www.salaodomovimento.art.br),
um espaço de dança e educação somática em Campinas. Ela conta
que a técnica que utiliza partiu de um estudo do movimento
da dança em relação à anatomia do corpo. A referência dada
em sala de aula é a referência óssea. Miller mostra um esqueleto
representativo que é de tamanho natural e apresenta, por exemplo,
como é a estrutura da coluna. A criança vai reconhecendo os
ossos e percebendo as possibilidades de movimento respeitando
os limites anatômicos. “Muitas pessoas questionam se as crianças
se interessam por saber os nomes dos ossos do corpo humano.
Para nossa surpresa, elas se interessam muito”, contou. Assim
como elas aprendem e se encantam com as cores, Miller vê que
existe um encantamento com o funcionamento do corpo humano.
As crianças têm muita curiosidade e ficam muito felizes em
poder entender essa estrutura anatômica.
A professora esclareceu que
a primeira diferença existente entre a técnica Klauss Vianna
e a dança formal é que o professor não é modelo, portanto,
em nenhum momento a criança copiará o movimento. “Eu não dou
passos prontos. Ensino alguns princípios da dança e alguns
temas corporais para a criança improvisar”, afirmou. Na verdade,
trabalha-se o tempo todo com improvisação e, assim, a criança
vai construindo o caminho de movimento próprio. Miller alertou
ainda que é muito perigoso utilizar a palavra livre porque
ela dá a noção de que se pode fazer qualquer coisa a partir
de qualquer música. Pelo contrário, a técnica é totalmente
direcionada, com várias etapas definidas.
Sobre isso, a professora conta
que seu trabalho de mestrado foi justamente sobre a sistematização
da técnica Klauss Vianna, que resultou na publicação do livro
A escuta do corpo, editado pela Summus. Os procedimentos direcionados
para a exploração do movimento em adultos são aplicados nas
crianças e envolvem soltura das articulações, uso dos apoios
(chão, por exemplo), uso do espaço e da coluna vertebral.
Miller lembra que na sociedade atual infelizmente predomina
o sedentarismo precoce e, portanto, a criança está vivenciando
isso por conta de alguns hábitos, entre os quais o uso excessivo
do computador e da televisão. “Percebo que os pais tentam
resolver essa questão escolhendo uma atividade corporal durante
a semana”, observou.
Durante uma hora de aula,
Miller desenvolve um pensamento, não só para as crianças como
também para os pais, de que o corpo deve estar presente no
cotidiano. E recomenda que os pais proporcionem aos filhos
oportunidades como subir em árvores, andar de bicicleta e
caminhar. “Os meus alunos que moram no bairro eu estimulo
a vir a pé ou de bicicleta para a aula”, contou. Trata-se
de todo um pensamento corporal trabalhado em aula que não
envolve apenas realizar exercícios.
A
percepção de que uma hora e meia de atividade dentro de sala
era cansativa, fez com que Miller adaptasse o trabalho infantil
para um período menor. “Aqui as crianças chegam antes da aula,
usufruem de amplo espaço externo, sobem nas árvores pelas
cordas, e após a aula também fazem piquenique. Eu estimulo
essa convivência”, salientou.
Público
No Salão do Movimento, atualmente,
Miller tem alunos que vão dos cinco aos 85 anos de idade.
O grupo adulto apresenta uma participação equilibrada entre
homens e mulheres. A surpresa boa está no público infantil:
de dez crianças, sete são meninas e três, meninos. “Considero
o público masculino uma grande conquista. Estamos trabalhando
o corpo em geral e não apenas uma dancinha bonitinha. Ensino
muitos rolamentos, estrelas, pontes, dou muitos desafios,
parada de mão e isso os meninos acham o máximo”, comemora.
Antes disso, durante a realização
do doutorado, deu aulas na graduação do curso de Dança, no
IA, no âmbito do Programa de Estágio Docente (PED). E revelou
que o mais importante para esses futuros bailarinos, os quais
tiveram contato com essa técnica, é o respeito a si mesmo
e aos seus próprios limites. É muito comum na carreira da
dança, prosseguiu Miller, o bailarino trabalhar apenas até
os 30 anos de idade. Os exercícios repetitivos causam lesões
nos joelhos e prejuízos à coluna vertebral. “O principal benefício
que eu vejo para esse olhar, somado à consciência do movimento
que a técnica Klauss Vianna propõe, é o respeito ao próprio
corpo”, assegurou. A partir daí começa a exploração de qualquer
outra técnica, seja o balé clássico ou a dança contemporânea,
não importa. A escolha é do bailarino, mas o tópico principal
é não tratá-lo como uma máquina de executar movimentos e sim
como um indivíduo a se expressar.
A técnica Klauss Vianna, segundo
a autora, tem como característica a formação de grupos heterogêneos,
compostos de bailarinos, músicos, atores e também os não-artistas.
O que existe de fato é uma busca pela qualidade de vida corporal.
É um trabalho inclusivo, já que considera que a dança não
é um privilégio apenas do bailarino. “Se trabalho o dia todo
sentado e se começo a sentir dores na coluna, ao invés de
procurar por um médico, o que será que posso fazer?”, indagou.
Muitos procuram a técnica para ter o reconhecimento do próprio
corpo, para não sentir futuras dores e para ficar mais à vontade.
É muito comum a pessoa que não tem a arte como prioridade
procurar por esse trabalho, acrescentou Miller.
Estilo musical
A pesquisadora não costuma
utilizar músicas infantilizadas. Pesquisa muita música e busca
sons variados nos quais a criança possa perceber as diferenças
de andamentos e ritmos. Algumas melodias ela utiliza nas aulas
de crianças e adultos. “Na verdade, busco variedades sonoras.
Lógico que gosto muito e trabalho com as crianças músicas
do grupo Palavra Cantada. E aí encontra-se outra pesquisa,
um desenvolvimento melódico, não é uma música que fica limitada
a ser recreativa, com composições muito fracas. Nesse ponto
sou muito exigente. Prefiro músicas instrumentais para a criança
não fazer a associação representativa do que a letra quer
dizer”, afirmou.
Questionada a respeito do
que a dança representa numa sociedade essencialmente tecnológica
como a nossa, Miller acredita que ela pode contribuir com
a escuta porque, segundo ela, fomos treinados e educados para
falar muito. “Estamos buscando muitas informações e não estamos
escutando nada nem o outro”, ressaltou. “Com a dança você
tem a escuta do próprio corpo, da música e do outro. Senão,
não é possível dançar – é preciso perceber o tempo do outro
para colocar o seu tempo – e eu vejo que a dança pode proporcionar
essa escuta”, observou.
Para concluir, Miller pontuou
uma frase de Klauss Vianna, já que o foco foi o trabalho com
criança. “Não decore passos, aprenda um caminho”. Para a pesquisadora,
essa frase resume bem esse trabalho específico, porque em
muitos casos a criança tem que ficar repetindo o que os pais
falam, além de mimetizar seus passos. “Por que ela não pode
explorar o seu caminho de movimento e as suas escolhas?”
Publicação:
Tese de doutorado “Qual é o corpo que dança?
Dança e Educação Somática para a construção de um corpo
cênico”
Autora: Jussara Corrêa Miller
Orientadora: Elisabeth Bauch Zimmermann
Unidade: Instituto de Artes (IA)
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