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Longe do gueto, perto do centro

 

MANUEL ALVES FILHO

Projeto vencedor do Habitasampa Assembléia: fotomontagem do projeto inserido em seu contexto urbano (Foto: Divulgação)


A arquitetura brasileira ainda está formando consciência acerca da necessidade da construção de habitações de interesse social (HIS), notadamente quando a proposta é inserir esse tipo de edificação nos centros consolidados de médias e grandes cidades. A constatação é da primeira dissertação de mestrado na área defendida por ex-aluna do curso de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC) da Unicamp, criado em 1999. De acordo com a autora do trabalho, Julia Spinelli, que comparou projetos nacionais e europeus, todos apresentados em concursos públicos, o processo ainda não está amadurecido no Brasil porque o país começou a considerar efetivamente esse tipo de solução há pouco tempo, a partir dos anos 90. "Na Europa e Estados Unidos, as discussões nesse sentido remontam à década de 70", afirma. O trabalho foi orientado pelo professor Leandro Medrano.

 

O professor Leandro Medrano, orientador, e Julia Spinelli, autora da dissertação: comparação entre projetos europeus e nacionais (Foto: Antoninho Perri)Em sua pesquisa, Julia considerou os projetos que obtiveram as primeiras e segundas colocações em concurso público promovido pela Prefeitura de São Paulo, entre 2003 e 2004, com o apoio do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB). Nenhum deles, porém, foi construído. A razão alegada para o engavetamento da proposta foi a mudança da gestão municipal e, com isso, a inversão das intenções para a área central. A ideia original do concurso era a construção de edificações multifuncionais, que abrigassem habitações de interesse social e programas institucionais, como uma escola para a formação de profissionais aptos a trabalhar na reforma e restauro de prédios históricos. As áreas escolhidas para receber as estruturas foram uma quadra no bairro da Barra Funda e um terreno nas imediações da Praça da Sé.

Depois de analisar os projetos brasileiros, Julia os comparou com similares europeus. O dado interessante, segundo ela, é que as áreas centrais, tanto no Brasil quanto na Europa, apresentavam semelhanças entre si. Todas tinham como característica o fato de serem núcleos urbanos consolidados que careciam de revitalização, principalmente por meio do fortalecimento da diversidade social local. "Entretanto, ao confrontar os projetos, a partir de seus conceitos e tecnologias, pude identificar grandes diferenças entre eles", assinala a autora da dissertação. Tais distinções, prossegue ela, estão relacionadas com o fato de o conceito de habitação de interesse social associada a centros consolidados ou históricos já fazer parte da cultura arquitetônica européia, enquanto que por aqui ele ainda está se firmando.

Projeto para o Europan (Holanda): foto interna do edifício (Foto: Divulgação)Na Europa, explica Julia, desde 1989 é realizado o Europan, evento que congrega perto de 70 concursos públicos simultâneos, promovidos por diversos países do Continente. "Lá, cerca de 70% dos projetos vencedores são efetivamente construídos. Aqui, a porcentagem de construção de projetos vitoriosos em concursos de arquitetura, no mesmo período, é foi de 12%. Além disso, alguns governos europeus concedem bolsas aos jovens arquitetos, para que eles montem escritórios e participem desses certames. O Europan é visto pelos profissionais em início ou com poucos anos de carreira como uma grande oportunidade de inserção ou consolidação no mercado de trabalho", detalha. Entre as características dos projetos europeus, acrescenta o professor Leandro Medrano, destacam-se os compromissos de promover a diversidade social e cultural, oferecer condições dignas de moradia aos cidadãos de baixa renda e revigorar o ambiente urbano nas regiões centrais. Tais premissas estão associadas a inovações tecnológicas, conceituais e metodológicas incentivadas pelos concursos.

Preceitos semelhantes orientaram os projetos brasileiros analisados pela autora da dissertação, mas ela notou que o conceito mais geral não foi totalmente absorvido pelos projetos vencedores do concurso patrocinado pela Prefeitura de São Paulo. "Alguns dos projetos vencedores caberiam tanto na região central da Capital quanto na periferia. Ou seja, eles não trouxeram grandes inovações, como era esperado", avalia. Para o professor Leandro Medrano, isso se deve ao fato de o país ter optado, durante várias décadas, pela alternativa de construir moradias populares nas periferias dos municípios, onde os terrenos são mais baratos. "Entretanto, essa solução criou outros problemas, visto que as administrações municipais eram obrigadas a levar transporte, infraestrutura urbana e equipamentos públicos até esses locais. Somente a partir dos anos 90 é que começamos a discutir, a exemplo do que ocorria na Europa desde a década de 70, a necessidade construir habitações de interesse social em regiões mais adensadas, de modo a aproveitar a estrutura já existente e a eliminar os guetos que se formavam em determinados pontos das cidades", reforça.

Ainda em relação aos projetos vencedores do concurso lançado pela Prefeitura de São Paulo, Julia constatou alguns problemas técnicos, que segundo ela não podem ser considerados graves. Ainda assim, uma proposta projetava dormitórios voltados para a face Sul, o que não é desejável, no Brasil, em termos de insolação. Ademais, algumas unidades contavam com cômodos sem janelas, o que compromete o conforto térmico nos apartamentos. "São falhas que poderiam ser facilmente corrigidas", desconta a autora da dissertação. Conforme os projetos, o edifício da Barra Funda teria 160 unidades, sendo 40% com um dormitório, 30% com dois e outros 30% no formato de quitinetes. Destes, 5% seriam adaptados ao uso de deficientes físicos. Já o complexo projetado para a região da Sé teria 240 habitações, também divididas entre quitinetes e apartamentos de um e dois quartos.

Tanto no entender de Julia quanto no do professor Leandro Medrano, o Brasil ainda precisa aprofundar as discussões em torno da necessidade de construir, em regiões altamente adensadas, habitações de interesse social voltadas principalmente às famílias com renda na faixa de três salários mínimos. Também precisa promover mais concursos públicos para projetos que contemplem essa preocupação e estimulem a discussão arquitetônica e urbana. O docente da FEC lembra que o déficit habitacional brasileiro gira em torno de 8 milhões de unidades. "Não podemos encarar o desafio de oferecer moradia a um contingente tão grande da população com base em conceitos arquitetônicos e urbanísticos do passado. Continuar construindo bairros inteiros do zero em áreas isoladas das cidades, compostos por edificações monofuncionais, certamente não constitui uma alternativa sustentável do ponto de vista urbano e social", reflete.

Ainda conforme o orientador da pesquisa, que contou com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), uma alternativa para incrementar a geração de novas moradias de interesse social seria o aproveitamento dos prédios abandonados localizados nas áreas centrais das médias e grandes cidades brasileiras, como já vem sendo incentivado pelo Programa de Arrendamento Residencial (PAR). De acordo com estudo realizado pela USP, existiriam o equivalente a 7 milhões de habitações nessas condições. "Ou seja, o aproveitamento desses imóveis praticamente resolveria o nosso problema de déficit habitacional, isso sem construir nada. É uma alternativa fantástica do ponto de vista econômico e ambiental, ainda que sua real implantação demande complexos acordos políticos e econômicos", diz Leandro Medrano. Na FEC, destaca o docente, existe uma área dedicada exclusivamente ao estudo de habitações de interesse social em áreas centrais consolidadas.



Acima, projeto vencedor do Habitasampa Assembléia: infográficos com eixos de implantação, área construída e espaços públicos; abaixo, perspectiva aérea do projeto Zaanwerf, apresentado em concurso na Holanda

 

 
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