Software monitora a qualidade
da água
Ferramenta
permite uso de dados como pluviometria e fluviometria e
avalia cenários futuros
LUIZ SUGIMOTO
sugimoto@reitoria.unicamp.br
Se
recorresse apenas à sua visão de engenheira
química, Marlei Roling Scariot estudaria as reações
químicas que ocorrem nas águas do rio, sem
considerar as variáveis externas que contribuem para
a poluição dos nossos recursos hídricos.
Em sua pesquisa de doutorado, entretanto, ela acoplou conceitos
da sua área de conhecimento com dados da ecologia
sistêmica e desenvolveu um modelo inédito para
avaliar os impactos ambientais em corpos d'água e
ajudar a prever cenários futuros.
O resultado do estudo é um software,
já em processo de registro, que utiliza dados de
monitoramento como pluviometria e fluviometria e permite
a modelagem e simulação do comportamento dinâmico
dos principais elementos que indicam a qualidade da água
- oxigênio dissolvido, fósforo, algas, matéria
orgânica, organismos bentônicos, peixes. Para
avaliar cenários futuros, a autora considerou pontos
chaves como crescimento populacional e econômico,
mudanças tecnológicas e climáticas,
além de políticas públicas ambientais.
"É um modelo complexo, mas
comecei com um bem simples, em um curso onde aprendemos
a lidar com minimodelos em que vamos inserindo variáveis
chaves para imitar um macrossistema", explica Marlei
Scariot. Ela se refere ao curso do professor Enrique Ortega
Rodriguez, responsável pelo Laboratório de
Engenharia Ecológica da Faculdade de Engenharia de
Alimentos (FEA) da Unicamp, que acabou por orientar a tese.
A engenheira química realizou simulações
em um trecho de 30 quilômetros do rio Mogi-Guaçu,
entre as cidades de Mogi Guaçu e Conchal, que conta
em seus dois extremos com pontos de monitoramento da Cetesb
(Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental). "É
o local que escolhi para validação da ferramenta,
mas ela pode ser usada em todas as bacias do Estado de São
Paulo. Durante quatro anos, comparei os resultados obtidos
na simulação com os dados disponíveis
na literatura, principalmente da Cetesb, registrando uma
boa concordância".
Procurando prever o comportamento de cargas
orgânicas e de fertilizantes na qualidade da água
e a alteração das variáveis no espaço
e no tempo, a pesquisadora chegou à minúcia
de obter resultados conforme a variação horária,
diária e sazonal, e ao longo dos 30 quilômetros
de rio, que dividiu em dez compartimentos. "São
parâmetros importantes porque os organismos bentônicos,
por exemplo, vão responder muito mais lentamente
aos poluentes do que as variáveis físico-químicas".
Em relação aos elementos
que apontam se a água é boa, o leigo deve
saber que o supercrescimento de algas tóxicas leva
a uma queda repentina de oxigênio dissolvido (OD)
e causa a redução da pesca e a perda da biodiversidade;
que o fósforo advindo dos dejetos domésticos
e industriais é o nutriente limitante da produtividade
biológica; que as algas formam a base alimentar de
outros organismos; que a temperatura da água é
determinante na maioria dos processos físicos, químicos
e biológicos; que a matéria orgânica
é a maior fonte de carbono da cadeia alimentar dos
rios; e que o crescimento dos organismos bentônicos
depende de detrito orgânico e de oxigênio dissolvido.
Marlei Scariot constatou, principalmente
através dos níveis de oxigênio dissolvido
e de fósforo total, que a qualidade da água
é fortemente afetada no trecho pesquisado, o que
provavelmente causará desequilíbrios ecológicos.
"Ali, o Mogi-Guaçu apresenta estágio
de poluição que supera os padrões do
Conama".
Segundo a Cetesb, quando o rio Mogi-Guaçu,
vindo de Minas Gerais, entra em território paulista,
registra-se um prejuízo acentuado da qualidade das
águas, com níveis elevados de coliformes fecais,
fósforo total e nitrogênio amoniacal, denunciando
que o tratamento do esgoto doméstico e de afluentes
industriais ainda é muito deficiente. "Apesar
de haver uma indústria no trecho pesquisado, o impacto
maior é do esgoto urbano. Mas esse quadro vem melhorando
com a ampliação da rede tratada".
Cenários
Nesse sentido, a autora da tese reitera a importância
dos modelos sistêmicos para conhecer a realidade atual
e direcionar o olhar para a elaboração de
cenários alternativos, antecipando possíveis
impactos futuros e auxiliando na gestão das bacias
hidrográficas. "Criamos cenários a partir
de variáveis como alternativas de políticas
públicas, uso das terras, mudanças climáticas
e crescimento populacional e industrial. Por meio deles
é possível propor soluções e
medidas mitigadoras".
Considerando os dados da literatura disponíveis
no período de 2003 a 2006, a pesquisadora traçou
dois cenários pessimistas, a partir da opção
por manter as atuais políticas de desenvolvimento
econômico, sem preocupação com as questões
ambientais e sociais. O resultado seria uma quantidade de
descargas poluentes que supera a capacidade de autodepuração
do sistema, levando à sua degradação.
Um dos cenários pessimistas, que
trata da modificação no uso das terras associada
às mudanças climáticas, aponta que
uma elevação de 4ºC na temperatura resultaria
numa maior produção de biomassa de algas e
reduziria gravemente a concentração de oxigênio
dissolvido. O impacto negativo sobre a população
de peixes seria pequeno no curto prazo, mas expressivo após
um ano.
O segundo cenário pessimista incorpora
um conjunto de variáveis, com modificações
no uso das terras, alterações climáticas
e crescimento populacional e industrial. A simulação
indicou que a ação simultânea de todas
as variáveis provocaria resultados negativos já
no curto prazo, com média anual da concentração
de oxigênio dissolvido inferior a 2 miligramas por
litro, o que seria dramático.
Entretanto, Marlei Scariot também
criou dois cenários otimistas, com melhoria da qualidade
das águas degradadas. O primeiro mostra que uma política
séria de tratamento do esgoto urbano, por si, teria
grande efeito na manutenção do ecossistema
aquático, em que pesem impactos difíceis de
serem revertidos ou evitados, como as mudanças do
clima e o aumento do número de indústrias.
Se o cenário anterior já
seria de equilíbrio entre o sistema do rio e o desenvolvimento
das atividades econômicas na região, a pesquisadora
traçou um último, considerando medidas alternativas
e viáveis para combater a degradação
dos recursos hídricos, resultantes de mudanças
dos paradigmas da sociedade. É um cenário
não apenas da manutenção das variáveis
avaliadas no estudo, mas também de volta da qualidade
das águas do Mogi-Guaçu aos níveis
originais.
Limitações
De acordo com Marlei Scariot, tais cenários fornecem
subsídios a políticas públicas que
visem garantir os múltipos usos dos recursos hídricos,
mas observa que a precisão dos resultados da simulação
depende da quantidade e qualidade dos dados de entrada.
"Ainda há muita escassez de informações,
como por exemplo, sobre número real de usuários
do sistema, substâncias lançadas no rio e tipos
de culturas irrigadas. Enquanto o gerenciamento de uma bacia
estiver voltado primordialmente para o monitoramento de
um rio poluído, e não das fontes de poluição,
a qualidade da água continuará comprometida".
Modelos sistêmicos já influenciam
políticas ambientais em vários países
A engenheira química Marlei Scariot
informa em sua tese de doutorado que o uso de modelos sistêmicos
para a simulação de sistemas naturais está
cada vez mais presente no planejamento das ações
de políticas públicas em vários países.
"Os relatórios do IPCC (Painel Intergovernamental
de Mudanças Climáticas), que apresentam muitos
de seus resultados na forma de cenários construídos
através de modelos, vêm claramente redirecionando
políticas ambientais em todo o mundo".
O mais recente documento importante baseado
em modelos e cenários apresentado à comunidade
científica foi o Relatório de Gallagher (The
Gallagher Review of the indirect effects of biofuels production),
que está influenciando a política para a produção
de biocombustível na União Européia.
"Da mesma forma, uma tendência atual é
a promoção do planejamento das bacias hidrográficas
através do uso de modelos de qualidade das águas
para avaliar os impactos das atividades humanas".
No caso do rio Mogi-Guaçu, conforme
outros estudos abordando toda a sua extensão, tem-se
observado problemas de erosão, assoreamento da calha
do rio, enchentes, assoreamento de represas e baixa qualidade
das águas (que é influenciada fortemente pela
baixa qualidade das águas de seus afluentes).
Tais desequilíbrios apresentam relevantes
implicações econômicas, em função
dos usos múltiplos da água, tornando o planejamento
da bacia importante não só como instrumento
de fiscalização ecológica, mas também
do ponto de vista social e econômico. "Casos
graves de poluição orgânica e inorgânica
do rio estão sendo enfrentados, fazendo com que esse
assunto mereça a atenção de indústrias
e de entidades de pesquisa e de controle ambiental".
Marlei Scariot explica que o uso de modelos
na simulação de sistemas complexos que envolvem
a sociedade e suas inter-relações com o seu
entorno é uma ferramenta poderosa e, por esta razão,
seus resultados e cenários não devem ser tomados
como verdades dogmáticas. "São possibilidades
futuras, o que torna a ferramenta totalmente dependente
da amplitude da visão e da compreensão de
quem a construiu".