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Legado cultural de escritores negros
é pouco difundido em cursos de inglês
Estudo feito no contexto de projeto
contribui
para melhor compreensão de antologias
Alunos brasileiros de cursos
de inglês encontram material de apoio em discotecas, videotecas,
na internet, mas qual será o espaço da literatura, especialmente
a negra, no programa de ensino de inglês oferecido pelas escolas?
Em tese orientada pela professora Silvana Serrani, do Instituto
de Estudos da Linguagem (IEL), o professor de inglês na rede
pública de Campinas e doutor em Linguística Aplicada pela
Unicamp Ênio de Oliveira buscou resposta na análise aprofundada
da representação de escritores negros em antologias brasileiras
e estadunidenses, ao perceber que a maioria dos professores
de inglês desconhece ou tem pouco contato com os legados culturais
dos negros nos Estados Unidos e no Brasil. O pesquisador constatou
que as antologias dos Estados Unidos estão mais voltadas para
o ensino, enquanto as brasileiras não indicam parâmetros de
trabalho para serem usadas nas escolas.
O estudo contribui para melhor
compreensão das antologias e oferece material importante para
programas de formação continuada de professores de inglês
no Brasil, dando atenção às relações inter-étnico-culturais.
De acordo com Silvana Serrani, a conclusão do trabalho representa
mais um resultado da equipe do Projeto Antologias, Discurso
e Práticas Letradas, coordenado por ela no IEL. O estudo,
na sua opinião, intensifica a contribuição para abordagens
não-dicotômicas de língua e literatura, tanto na pesquisa
teórica quanto na aplicada para um ensino que considere os
componentes interculturais, de língua-discurso e de práticas
verbais, articulando a dimensão linguística às dimensões étnico-culturais.
De acordo com Silvana, as
antologias brasileiras apresentam a textualização de formas
letradas de participação do negro no projeto de construções
identitárias no Brasil. As antologias brasileiras estudadas
na tese de Oliveira designam os poetas negros dos primeiros
períodos literários como africanos e descendentes de africanos
em oposição ao português. Na antologia A Razão da Chama, organizada
por Oswaldo Camargo, Domingos Caldas Barbosa é designado como
“filho de português com negra”; Luiz Gonzaga Pinto da Gama,
como “filho de Luísa Mahin, africana livre, e de fidalgo bahiano
de origem portuguesa”; Antônio Cândido Gonçalves Crespo é
designado como “filho de português radicado no Brasil e da
negra Francisca Rosa”. Em Poesia Negra Brasileira, organizada
por Zilá Bernd -, Luiz Gama é designado como “filho de africana”
e Cruz e Souza como “filho de pais negros e escravos”.
Com
ressignificações dos sentidos de brasilidade, essa designação
opositiva vai perdendo forças e a tese, segundo a orientadora,
mostra transformações na discursividade sobre o negro, materializando
integrações nos sentidos de brasilidade, a ponto de, nas biografias
posteriores, os autores não serem designados em relação ao
continente africano. Mas o discurso materializa também as
contradições. Diferentemente dos poetas dos primeiros períodos,
pudemos ver e meu aluno mostrou bem na tese que os poetas
negros contemporâneos não apenas não são designados como africanos
ou descendentes, mas também não são designados apenas como
escritores ou brasileiros”, comenta a professora, referindo-se
ao debate sobre contradições entre a relevância das ações
afirmativas e os riscos da segregação, acontecido durante
a defesa do trabalho.
A banca contou com a presença
dos professores da UFSC Walter Costa, especialista em literatura,
com projetos em antologias literárias e estudos da tradução,
e Pedro de Souza, estudioso da Análise do Discurso e da questão
da negritude, e dos docentes do IEL Eduardo Guimarães, semanticista
do Programa de Linguística, e Terezinha Maher, da área de
Multiculturalismo, Plurilinguismo e Educação bilíngue do Programa
de Linguística Aplicada, área também da orientadora e na qual
foi defendida a tese.
Ao analisar os escritores
biografados, a pesquisa também mostra as filiações político-ideológicas
das antologias. A função-autor-biográfico, segundo Oliveira,
diz respeito também ao mundo político-cultural do negro brasileiro
e do estadunidense. O estudo mostra como as antologias brasileiras
enfatizam um discurso étnico-cultural menos separatista entre
os poetas negros brasileiros e outros grupos da sociedade.
Já nas antologias estadunidenses estudadas, por exemplo, observam-se
marcas discursivas e detalhes, como a presença de hífens,
que apontariam para compartimentalizações identitárias no
discurso: The Norton Anthology of African-American Literature
- GATES Jr,. H. L. MCKAY, N. Y. (orgs.) - e Call and Response:
The Riverside Anthology of African American Literary Tradition)
HILL, Patricia L. (org.).
Nas antologias estudadas haveria
ressonâncias de marcas discursivas relativas a identificações
como nós afro-americanos ou eles americanos não-descendentes
de africanos. A partir disso, o autor analisa materializações
discursivas e, considerando narrações biográficas, discute
questões da integração ou não da história dos negros e do
não-negro na sociedade.
Silvana Serrani enfatiza que
a tese de Oliveira mostra bem formas em que, ao se referir
às vidas e às produções dos autores, o discurso antológico
trabalha na costura das filiações político-ideológicas assumidas
pelas compilações.
De acordo com o estudo, os
tempos históricos são reenunciados a partir da perspectiva
do negro. As biografias reorganizam a enunciação da Guerra
Civil dos Estados Unidos, Primeira e Segunda Guerras e movimentos
civis, de modo a enfatizar o papel do negro nesses movimentos
e indicar um modo de o dizer.” Nas brasileiras, o modo de
enunciação narrativo perde força, como se os discursos antológicos
considerassem as histórias de vida dos negros como algo já
conhecido, ou, pelo contrário, não conhecido ao ponto de não
ser narrável, diz Oliveira.
O discurso nas antologias
de literatura negra, analisado em sua dimensão biográfica,
apresenta-se como forma de re-textualização dos sentidos sobre
a vida dos autores negros, funcionando, portanto, como um
discurso da reconstrução identitária literário-cultural negra,
na opinião do autor da tese. Para ele, o discurso antológico
funciona como uma “ferramenta de redesenhamento” das identidades
negras e de organização e valorização de suas memórias literário-culturais.
Silvana lembra que o estudo
permitiu mostrar também que, se de um lado as antologias brasileiras
não marcam seu discurso enquanto filiado ao político-partidário,
as estadunidenses, por outro lado, o fazem de forma explícita,
seja apresentando identificações marcadamente “republicanas”
ou “democratas”, como um contrapeso da balança. “Mas a tese
mostra como as duas o fazem como se as filiações fossem dos
antologizados, o que tenderia a construir a representação
de um efeito de neutralidade para o discurso antológico”,
diz Silvana Serrani.
Mulheres
A análise mostrou também que as antologias brasileiras, comparadas
às estadunidenses, reservam pouco espaço a autoras negras,
de acordo com a pesquisa. Um trabalho futuro tendo como fonte
a antologia “Finally Us! Contemporary Black Brazilian Women
Writers: Dual Brazilian-English Poetry Anthology”, publicada
por Mirian Alves em 1995, voltada para a voz da mulher negra,
permitiria ver como seu discurso se relaciona com discurso
das antologias que analisadas na tese. A orientadora acrescenta
que, mesmo tendo uma antologia voltada só para mulheres trabalhadoras
ou de movimentos sociais, na antologia geral, as mulheres
são menos representadas que os escritores negros. “Isso não
está desvinculado, obviamente, das lutas para o espaço da
mulher na sociedade de um modo geral”, acrescenta a professora.
Consequências
Os pesquisadores defendem que, apesar de haver dificuldades
para implementar o uso de antologias de literatura negra na
formação do professor de inglês no curso de letras, em que,
às vezes, o conhecimento escasso da língua (sobretudo nos
anos iniciais de formação) é um empecilho para certas práticas,
a utilização desse tipo de antologias no processo de formação
continuada de professores de inglês é indispensável e pode
contribuir em vários aspectos, entre eles “o enriquecimento
cultural dos professores; a orientação aos professores para
que passem a estabelecer pontes inter-étnico-culturais, a
partir de um trabalho com legados socioculturais dos negros;
a sensibilização às possibilidades de comparação entre língua,
literatura e cultura brasileira e estadunidense; e o desenvolvimento
de maior consciência dos professores em relação a modos de
funcionamento da materialidade das línguas portuguesa e inglesa
nos discursos e nas práticas sociais constitutivos das histórias
e relações étnico-culturais no Brasil e nos Estados Unidos”.
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