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Déspotas em retirada

PAULO CESAR NASCIMENTO

No último dia 25 de janeiro, milhares de manifestantes ocuparam a Praça Tahrir, no coração do Cairo, em uma mobilização sem precedentes para derrubar o então governante egípcio Hosni Mubarak, no poder havia três décadas. O vigoroso levante repetia com maior intensidade a revolta que pouco antes defenestrara o presidente da Tunísia e impulsionava na direção de países vizinhos uma avassaladora onda de protestos. As notícias surpreenderam o planeta e foram recebidas como uma dádiva pelo professor titular e pró-reitor de Extensão e Assuntos Comunitários da Unicamp, Mohamed Habib . A data, que entraria para a história não só do mundo árabe, era também a de seu aniversário de 69 anos, 38 dos quais em solo brasileiro. Natural de Port Said, próximo ao Canal de Suez, Mohamed lecionava na Universidade de Alexandria, onde graduou-se em Engenharia Agronômica, quando decidiu deixar o Egito por incompatibilidades políticas com o regime de Anwar Sadat, governante do país à época. Por meio de familiares e amigos que lá ficaram, ele consegue acompanhar diariamente a evolução dos acontecimentos em sua terra natal. Ativista dos direitos humanos e vice-presidente do Instituto da Cultura Árabe (ICArabe), Mohamed é um dos especialistas ouvidos pelo Jornal da Unicamp sobre o fenômeno dos levantes populares no Oriente Médio e Norte da África. O tema também foi analisado em entrevistas distintas por Reginaldo Nasser , professor de Relações Internacionais da PUC-SP e do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (UNESP/Unicamp/PUC-SP), e pela historiadora Arlene Clemesha, professora do Departamento de Letras Orientais (FFLCH) da USP e diretora do Centro de Estudos Árabes da instituição. Suas opiniões a respeito do processo de democratização nos países islâmicos (também denominado “primavera árabe”) e sobre os possíveis desdobramentos do movimento são apresentadas a seguir.

Jornal da Unicamp – Em que medida as transformações decorrentes das revoltas no Norte da África e no Oriente Médio poderão alterar o mapa geopolítico dos países muçulmanos? É possível crer na consolidação de regimes democráticos em uma região historicamente marcada por sucessivas crises políticas, instabilidades e conflitos?

Arlene Clemesha – Existe uma noção estereotipada segundo a qual alguns povos, como os árabes, seriam incompatíveis com a democracia. Concepção esta alimentada pelos mesmos governos europeus ou norte-americanos que apoiavam regimes ditatoriais. Certamente há riscos de as revoluções em curso desembocarem em novos regimes autoritários. Mas na Tunísia e no Egito não é esta a tendência. Os jovens desses países estão determinados a não parar o curso revolucionário nem permitir que ele seja usurpado pelas velhas elites dirigentes, corruptas e antidemocráticas.

Após as manifestações populares e espontâneas que tomam nesse momento as ruas de quase a metade dos 22 países árabes, fica impossível achar que os árabes não estejam preparados para lutar até o fim por sua liberdade, por democracia e pelo respeito aos seus direitos sociais e humanos. Se um novo estado democrático e participativo surgir apenas no Egito que seja, já representará um grande potencial de mudança geopolítica regional, trazendo maior autonomia e soberania nacionais, impulsionando relações pan-árabes e provavelmente passando a exigir de Israel o respeito aos direitos palestinos.

Mohamed Habib – Estamos falando de uma região que é o berço da humanidade, extremamente rica em termos de história e cultura, e estamos falando de povos que deram origem a civilizações. São povos que têm uma mesma identidade, porém cada um com a sua própria cultura, por isso a diversidade cultural na região é extremamente rica. Povos com essa tradição histórica e cultural conseguem fazer levantes sem precisar de uma liderança e têm capacidade de construir seu próprio processo democrático. Diferenças culturais, no entanto, não significam antagonismos. Mas o Ocidente sempre tentou mostrar, por meio de suas estratégias, que o Oriente Médio é uma região de conflitos, habitada por povos ignorantes e bárbaros, incapazes de viver em uma democracia. Essa imagem está sendo desfeita pela onda de protestos, na medida em que revela a verdadeira face da relação do Ocidente, tendo à frente os EUA, com o Oriente, e do quanto ela é culpada, pelo menos parcialmente, pelas condições desumanas em que esses povos vivem.

São povos que, pelo menos no último século, foram humilhados, injustiçados, explorados e tiveram seus territórios ocupados por forças bélicas do Ocidente por causa de um recurso energético estratégico. Foi assim que o mundo ocidental, por meio de seus impérios, tratou o mundo árabe. Porém, chega um momento em que o oprimido decide dar um basta na opressão e passa a exigir uma relação de igualdade, de respeito. O fenômeno no Oriente Médio demonstra ao mundo inteiro que a existência de nossa espécie não pode mais se sustentar em um modelo de relações humanas que coloca em lados opostos o forte e o fraco, o rico e o pobre, o conhecimento e a ignorância. É preciso mudar essa concepção e essa relação de forças, e creio que o movimento de democratização deflagrado pacificamente nos países árabes vai se estender a outras nações. Esse é um processo sem volta.

Reginaldo Nasser – Eu não me referiria a países muçulmanos, porque a forma de qualificá-los já traduz uma perspectiva sobre o conflito, e eu não acredito que essa seja uma questão religiosa. Eu diria que uma perspectiva comum a todos é o tipo de estado e a forma econômica, que são semelhantes na Tunísia, no Marrocos, na Argélia, na Líbia, no Egito, na Arábia Saudita, no Bahrein, na Jordânia e na Síria. As rebeliões que estão se alastrando têm, portanto, uma realidade comum. Então, o que está ocorrendo lá é algo sistêmico, e não apenas conjuntural, circunstancial ou mera coincidência. O regime ditatorial agoniza e não consegue mais lidar com a realidade que lhe escapa. Se haverá e qual será o tipo de democracia, essa é uma questão em construção. Provavelmente, não será um regime à lá Irã, que era o grande temor do Ocidente, pois não há movimento algum, por menor que seja, reivindicando isso, e nem será esse secularismo ditatorial. Penso que teremos uma nova via para a região, mas será implementada conforme as especificidades de cada país.

 

Continua nas páginas 6 e 7

 



 
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