Cartografia do IMPROVISADOR
MARIA
ALICE DA CRUZ
Aos 13 anos, a atriz Marina
Elias já vivenciava o mundo do trabalho, iniciando a carreira
como professora de sapateado, atividade à qual dedicou-se
até os 19 anos. Hoje ainda compõe o grupo Sonidos de sapateado.
Além do balé e do sapateado, Marina integra a Companhia
Terraço Teatro e carrega no currículo trabalhos de atriz
realizados no teatro e na TV, além de participações em filmes.
Com tantas aptidões, Marina optou por não restringir a carreira
ao palco ou aos estúdios. Passou a beber da fonte da academia
e, depois de realizar graduação e mestrado em artes cênicas
na Unicamp, defende doutorado na mesma área sobre o personagem
que mais contribuiu para sua trajetória acadêmica: o improvisador.
Durante a investigação para sua tese, Marina constatou que
o bom improvisador deve reunir cinco forças: pensamento,
movimento, memória, técnica e imaginação. Estes cinco elementos
foram fundamentais para que a atriz desenvolvesse sua Cartografia
de um Improvisador em Criação, título da tese. “É uma questão
de experimentação que se dá no encontro entre estas cinco
forças relacionais indivisíveis e constituintes da criação.
Não proponho uma definição, mas um mapeamento”, explica.
Para conhecer o improvisador
é preciso experimentá-lo em laboratórios distintos, na opinião
da atriz. Ela destaca que a improvisação não pode ser ensaiada
ou dirigida, mas o improvisador pode, e existe a possibilidade
de trabalhar cada uma das cinco forças no artista que irá
improvisar, para que seja apresentada sempre uma situação
diferente.
Ela explica que não é somente
a facilidade de se comunicar e de improvisar que torna o
artista um bom improvisador, mas sim o desafio de não se
repetir e de realizar o jogo-espetáculo com escuta e sensibilidade.
“A facilidade de se comunicar é um trampolim para uma improvisação
bem-sucedida, mas se o improvisador não se preparar, ele
não passa do terceiro dia de espetáculo, pois a tendência
em se repetir é grande”, esclarece a atriz.
No caso de Marina, o caminho para conhecer melhor o improvisador
foi traçado pela própria pesquisadora, ao lado de seis artistas
formados pelo Instituto de Artes da Unicamp, que hoje fazem
parte da Companhia SeisAcessos. As pesquisas da companhia
são sempre norteadas pela Zona do Improviso, um jogo sistematizado
por Marina em seu mestrado realizado na Unicamp, sob orientação
do professor Eusébio Lobo, também orientador de sua pesquisa
de doutorado. A primeira experiência foi com o espetáculo
Alma de Papel, apresentado em várias cidades brasileiras,
inclusive em universidades. Mas Marina explica que na época
a Zona do Improviso foi utilizada como procedimento improvisacional
para criação do espetáculo. Já no doutorado, o desafio foi
jogar a Zona do Improviso ao vivo, diante dos olhos do público.
O resultado foi o espetáculo Trânsito Livre, que, segundo
a atriz, é improvisado a partir de temas definidos com o
público na entrada de cada espetáculo. Os espectadores fazem
perguntas das mais diversas ordens, que são escolhidas aleatoriamente
pelos improvisadores que começam a desenvolver seu processo
de criação em cena, sem qualquer brecha para ensaio.
Ao
deparar com temas polêmicos, como política e religião, o
bom improvisador, segundo Marina, não reduz a improvisação
à sua visão pessoal, pois isso afetaria sua criatividade.
Como uma boa mestra, Marina orienta os improvisadores a
refletir: “Eu me conheço, passa pelo meu filtro pessoal
e aí eu transformo isso poeticamente em arte”. E este é
para ela o grande desafio. “Como fazer de um material cotidiano
sobre o qual você tem uma opinião, uma escolha, como fazer
uma síntese poética ou um material cênico para todos”. As
experiências com o público, tratado por ela como coautor
de cada espetáculo, dão o retorno de que o improvisador
está no caminho certo.
O grande desafio de colocar
a Zona do Improviso para acontecer diante dos olhos do público,
como ela diz, foi bem-sucedido, e a ideia de promover uma
improvisação híbrida entre o teatro e a dança também, tanto
que no momento do jogo, o público não é capaz de distinguir
a formação profissional do bailarino, do cantor ou do ator,
reconhecendo-os todos como improvisadores. O jogo termina
com um telefonema inesperado a um parente ou amigo de uma
pessoa do público, que é convidado a responder às perguntas
sorteadas, que são as mesmas que serviram como tema para
aquela sessão de Trânsito Livre. Neste momento, o improvisador
deve estar preparado para interagir com os outros improvisadores,
com o público e com o participante que está ao telefone.
“Um dia sorteamos uma sugestão e perguntamos à pessoa ao
telefone: Você tem um sonho? A resposta foi inesperada:
Não tenho, mas posso ir à padaria comprar para você.” É
neste momento, segundo Marina, que o bom improvisador faz
a diferença.
Sem competição
Atividade secular, experimentada
com grande sucesso na Commedia dell’arte, a improvisação
é muita utilizada nas artes cênicas, sendo objeto inclusive
de programas televisivos, como “É tudo improviso”. Mas em
sua pesquisa, Marina abriu mão da competição promovida pelo
teatro-esporte, por acreditar que a preocupação com a vitória
no jogo compromete a criatividade do “jogador” (improvisador).
Inspirada pelo especialista em improvisação Johnstone, com
quem teve oportunidade de realizar um curso na Universidade
Calgary, no Canadá, Marina decidiu apoiar-se somente nos
princípios do estudioso sobre improvisação. “Acabei deixando
de lado o teatro esporte por conta da competitividade. Ele
trabalha com princípios superimportantes de imaginação e
espontaneidade (são as duas frentes de pesquisa dele) e
aí me apoiei muito nos filósofos”, afirma. Entre os autores
que contribuíram na pesquisa estão Spinoza, Deleuze, Johnstone,Viola
Spolin e o professor de pós-graduação em artes da Unicamp
Renato Ferracini.
Para ela, a improvisação
tem três frentes principais: o desenvolvimento técnico poético
(a improvisação enquanto exercício em sala de aula e tudo
o mais); a improvisação como ferramenta para criação cênica
(quando se utiliza da improvisação para criar e depois ensaiar);
e a terceira instância que é a improvisação como linguagem
espetacular. A cartografia desenvolvida por ela vem enriquecer
todos esses elementos em suas atividades Brasil afora. Docente
do Departamento de Artes Corporais da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), Marina trabalha constantemente
a improvisação com seus alunos, ainda que seja em uma disciplina
teórica. “Eles assistem às aulas com roupa de trabalho,
prontos para jogar a qualquer momento”, brinca.
A Zona do Improviso foi
o começo da carreira de pesquisadora. O jogo, que envolveu
21 alunos dos cursos de cênicas, música, dança e artes plásticas,
deu origem ao espetáculo Trânsito Livre, apresentado em
vários espaços. Este foi o ápice da investigação da Zona
do Improviso como linguagem cênica. “Porque quando o público
participa do espetáculo, o público nunca é espectador, ele
é coautor. Então, o público também é proativo”, explica
Marina. São 40 minutos criando uma zona de possibilidades
de imagens, sons, textos e poesia.
Marina acrescenta que a
improvisação como linguagem surge com muita força no Brasil
nas últimas décadas e, apesar de o espetáculo interativo
ser muito fértil, é difícil encontrar uma bibliografia específica
sobre o improvisador. O trabalho começou efetivamente na
disciplina do professor Marcelo Lazzarato do Departamento
de Artes Cênicas, que desenvolveu o Campo de Visão, um sistema
de utilização da improvisação como exercício e linguagem
cênica.
A improvisação, segundo
a atriz, não acontece na dança ou no teatro, mas no corpo.
“Por isso, se ela acontece no corpo, acontece no improvisador”.
Para ela, é preciso enxergar a improvisação como um território
conquistado dentro das artes da cena, mas que não é um território
da dança nem do teatro. É um território da improvisação,
que abarca várias artes juntas.
O jogo, na opinião de Marina,
não é atributo das artes, mas da vida. E a receptividade
do público mostra isso. Ela acredita que o ser humano tenha
dois minutos de planejamento em seu dia, mas o resto é improviso.
“Nem tudo acontece como planejado durante o dia”, pondera.
Na universidade canadense,
ela observou que quando o aluno opta pelo curso de dança
ou teatro é obrigado a fazer um curso que se chama performing
art, que engloba diversos campos da arte. “Não existe um
curso específico para cada área. Para o improvisador é fundamental,
porque quanto mais possibilidades ele tiver com o próprio
corpo, maior será a capacidade criativa dele, mais potente
ele será. Um improvisador limitado aos recursos do teatro
ou da dança, inevitavelmente perde em criação e potência.
A tese foi finalizada respondendo
às inquietações de Marina: “O que faz um improvisador? Por
que um bom ator é um bom improvisador e outro bom ator não
é? Qual a diferença entre fazer uma cena ensaiada e uma
cena improvisada? O que muda? E foi aí que descobri uma
coisa: Eu não queria investigar a improvisação e sim o improvisador”.
Para isso, desenvolveu três anos de laboratório com a SeisAcessos,
mas três anos que valeram a pena, conforme manifestação
sua em momento de nostalgia. “Tenho muita alegria de ter
criado esse jogo dentro da Unicamp. Tudo nasceu de um diálogo
direto entre graduação e pós-graduação. E esse contato com
os alunos de quatro cursos de artes da Unicamp foi enriquecedor.
Estou levando a Zona do Improviso de dentro da Unicamp.
Além das aulas na UFRJ, estou indo para o Mato Grosso dar
um curso. Já ministrei outros em Minas Gerais e em São Paulo,
tanto na capital quanto no interior”, destaca.
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Publicação
Tese: “Cartografia de um Improvisador em Criação”
Autora: Marina Elias
Orientador: Eusébio Lobo
Unidade: Instituto de Artes (IA)
Financiamento: Fapesp
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