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Onde estão as propriedades rurais?
Inexistência de dados oficiais
é obstáculo para reforma agrária
Pesquisa
conduzida pelo geógrafo Marcel Petrocino Esteves, do Instituto
de Geociências (IG) da Unicamp, abordou as implicações para
a política de reforma agrária, quando da implementação do
Cadastro Nacional de Imóveis Rurais (CNIR), em pauta desde
2002. Durante todo o tempo da pesquisa, foram evidenciadas
as dificuldades em realizar uma interpretação da realidade
da situação fundiária brasileira devido à inconsistência ou
inexistência de alguns dados oficiais de diferentes órgãos
e instituições. Nesse sentido, o estudo apresentou alguns
subsídios para compreender uma parcela da configuração territorial
brasileira por meio das possibilidades de emprego – algumas,
segundo o autor, apenas latentes – existentes nos sistemas
técnicos atuais que envolvem o CNIR. Por meio das categorias
de análise da Geografia foram avaliadas as principais implicações
da implementação desse cadastro de terras na organização,
uso e regulação do território brasileiro. O trabalho resultou
na dissertação de mestrado de Esteves, que foi orientado pelo
professor Ricardo Castillo.
A inexistência
de um cadastro fundiário que possa ser atualizado periodicamente,
de acordo com o geógrafo, pode ser apontada como um relevante
obstáculo para quaisquer projetos consequentes de reforma
agrária. O cadastro influencia diretamente, em primeiro lugar,
nas questões que envolvem a posse de terras devolutas e em
segundo lugar, no Imposto Territorial Rural (ITR) praticado
sobre as propriedades rurais. O cadastro de terras no Brasil,
entendido como um instrumento utilizado para subsidiar a tomada
de decisões políticas ou administrativas, historicamente encontrou
entraves para a sua efetiva implementação.
Esteves
explicou que o CNIR foi concebido a partir de sistemas técnicos
que se utilizam de algumas tecnologias da informação, principalmente
aquelas também comumente denominadas como geotecnologias (sistemas
de GPS, sensoriamento remoto orbital e sistemas de informação
geográfica), operacionalizando um cadastro fundiário de maior
precisão que pode ser atualizado regular e periodicamente.
Às dificuldades técnicas – atualmente superadas – de construir
um cadastro para um país de dimensões continentais, somam-se
os conflitos de interesses do Estado e de grandes proprietários
de terras que são agentes interessados na manutenção da estrutura
fundiária.
Logo,
a elaboração de um cadastro fundiário destinado a servir como
mecanismo de controle e fiscalização sobre a propriedade rural
– e também como instrumento de apoio à promoção da reforma
agrária – ainda requer uma análise crítica dos seus usos e
dos motivos pelos quais ainda não foi completamente implantado,
sendo alguns apresentados na pesquisa.
Alguns
desses aspectos, prosseguiu o geógrafo, foram explorados na
elaboração da periodização sobre o cadastro de terras no Brasil.
Seus antecedentes históricos remontam aos primeiros registros
públicos do período colonial. A estratégia adotada por Portugal
era de promover a ocupação baseada no povoamento e na efetiva
colonização, praticada até 1822 quando é interrompida pela
revogação da Lei de Sesmarias. Nesse período, os instrumentos
técnicos utilizados eram descrições em cartas, escrituras
públicas e livros de escrituração. A forma de apropriação
ou domínio da terra pode ser denominada como de domínio relativo
(ou condicional), situação que perdura até a promulgação da
Lei de Terras, em 1850, quando o domínio sobre a terra passa
a ser absoluto ou incondicional, passando a existir, portanto,
a propriedade privada. Com o fim do domínio relativo das terras,
ocorre a proibição da concessão e da ocupação e a legitimação
das posses de momentos anteriores.
História
O
registro de terras entra em vigor em 1854, interrompendo a
concessão de títulos dominiais, culminando numa situação de
litígios judiciais pela situação irregular de muitas propriedades.
Havia uma demanda crescente por distinção entre terras públicas
e privadas. O registro da terra (propriedades, terras comunais,
terras de mineração, posses) passa a ser realizado junto às
paróquias – o vigário de cada Freguesia era responsável por
receber as declarações e proceder seu registro. Com a Primeira
Constituição da República, em 1891, as terras devolutas foram
destinadas aos estados, que passaram a exercer a responsabilidade
pela regularização das posses e destinação de novas áreas,
exceto as áreas de fronteira, situação que durou até a Constituição
de 1988. A ausência de sistematização dos registros e dos
mecanismos de controle favoreceu a origem da precária e caótica
situação de registros de propriedades em todo o país, ainda
não totalmente solucionada.
Esteves ressaltou que o cadastro
de terras tem outro momento bem marcado com a aprovação do
Estatuto da Terra, em 1964, que criou o Cadastro Rural, sofrendo
uma modificação em 1972 com a implantação do Sistema Nacional
de Cadastro Rural (SNCR), incorporando informações sobre uso
e posse de terras e o cadastro de terras públicas, contemplando
quase 5 milhões de matrículas de imóveis rurais. Posteriormente,
foram utilizadas cartas do IBGE, em 1978, e passou-se a exigir
a planta das propriedades a partir de 1992, melhorando assim
a confiabilidade e a acurácia dos dados. No entanto, ainda
existiam algumas lacunas, como inconsistência nas informações
gráficas, falta de coordenação com o registro de imóveis nos
cartórios, duplicidade de matrículas, sobreposição de áreas
e registros com origem duvidosa. Após a promulgação da Lei
“Agrária” (Lei 8.629, de 1993) foram regulamentados alguns
dispositivos da Constituição de 1988 que tratam da execução
da Política Agrária Nacional, especialmente da reforma agrária.
Com a Lei 10.267/2001, que
criou o CNIR, ocorreram alterações na Lei de Registros Públicos
e as soluções técnicas para as falhas existentes nos cadastros
foram implementadas. Dessa maneira, ocorreu a atualização
e uniformização dos dados já existentes de cerca de cinco
milhões de imóveis rurais existentes no Brasil, além da possibilidade
de cruzamento dessas informações com o Cadastro de Imóveis
Rurais da Secretaria da Receita Federal, utilizado para a
execução da arrecadação e fiscalização do Imposto Territorial
Rural (ITR). O cadastro passou a ser georreferenciado e com
maior precisão posicional, combinando as informações literais
– provenientes dos registros já existentes – com informações
gráficas, oriundas do georreferenciamento, com um código comum
para fins tributários e de registro da terra.
De acordo com Esteves, esse
cadastro de imóveis rurais passou a ocupar maior destaque,
tardiamente, na formulação da agenda política do país nos
últimos anos. Apesar do CNIR ter sido criado em 2001, somente
em maio de 2009, através de Portaria do Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (Incra), foram definidas
e estabelecidas as diretrizes para a implantação e estruturação
desse sistema cadastral. Nas comunicações oficiais da Presidência
da República ao Congresso Nacional (2007, 2008 e 2009), passou-se
a reconhecer essa lacuna existente do conhecimento sobre a
situação da realidade fundiária pelo poder público, demonstrando
assim a importância de se discutir o papel dessas tecnologias
da informação na formulação de políticas públicas territoriais.
Logo, o domínio sobre o conhecimento
da situação fundiária assume um papel central nas possibilidades
de intervenções e na organização do território brasileiro.
No caso da política agrária, esclareceu o geógrafo, o CNIR
pode subsidiar algumas lacunas hoje existentes, tais como
a ausência de informações sistematizadas sobre o domínio de
terras, a estrutura fundiária altamente desigual e a legitimação
de usos indevidos de terras públicas. Além disso, a dificuldade
de aplicação de critérios para fins de desapropriação e a
incapacidade de atender às demandas por demarcação de terras
de populações tradicionais – indígenas e territórios quilombolas.
O imposto sobre a propriedade
rural no Brasil é cobrado, de maneira sistemática, desde 1891
com a Primeira Constituição da República. Inicialmente, a
arrecadação era de responsabilidade dos estados e, posteriormente,
em 1961, os municípios assumem a competência tributária. A
partir de 1964, a tributação passa ser desempenhada e controlada
pela União – embora a partir de 2008 os municípios tenham
a possibilidade de assumir essas atribuições de arrecadação
e fiscalização através de convênio firmado com a Secretaria
da Receita Federal, como acontece atualmente em mais de 1.200
municípios.
Com o Estatuto da Terra, regulado
em 1964, o referido imposto passou a exercer outras funções
além de fiscais e tributárias, assumindo um objetivo maior
como instrumento capaz de promover uma mudança da estrutura
fundiária. As alíquotas passaram a ser definidas em função
do tamanho do imóvel e foi exigido nível mínimo de utilização
do imóvel ou seu proprietário estaria sujeito à progressão
do imposto. No entanto, a ausência de um cadastro operacional
e atualizado periodicamente contribuiu para a inoperância
e ineficácia histórica de sua arrecadação. Apesar da possibilidade
de progressão do ITR e da desigual estrutura fundiária, para
o ano de 2008, foram arrecadados R$ 469 milhões, o que corresponde
a pouco mais de 0,1% do montante da arrecadação fiscal sob
a responsabilidade da União.
O geógrafo explica ainda que
a conjugação de potencialidades das tecnologias da informação
presentes no CNIR permite apreender novos elementos da configuração
territorial brasileira e alguns dos aspectos de suas densidades
normativas do espaço geográfico. É necessário, ainda, reconhecer
a dimensão política que o CNIR assumiu até o momento. Em suas
potencialidades latentes, o órgão pode vir a ser utilizado
como um instrumento da chamada Reforma Agrária de Mercado
– promovida pelo Banco Mundial e fomentando um mercado de
terras que inibe a aplicação de mecanismos de desapropriação
de terras que não cumprem a sua função social estabelecida
no Estatuto da Terra e na Constituição Federal. Ao mesmo tempo,
poderá assumir um importante papel suprindo tecnicamente uma
das lacunas ainda existentes, como, por exemplo, o conhecimento
detalhado da situação fundiária brasileira, para a articulação
de políticas públicas de combate à concentração fundiária.
Esteves citou outro geógrafo
bastante conhecido, Milton Santos, que dizia que “graças aos
milagres permitidos pela ciência, pela tecnologia e pela informação,
as forças que criam a fragmentação podem, em outras circunstâncias,
servir ao seu oposto”. No caso do CNIR, isso pode ser traduzido
nas suas potencialidades de revelar a localização de propriedades
improdutivas e terras devolutas, terras públicas ocupadas
indevidamente e oferecer mecanismos de controle e fiscalização
que assegurem uma arrecadação fiscal eficiente.
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Publicação
Dissertação de mestrado “Tecnologias da informação
e organização do território brasileiro: as implicações do
Cadastro Nacional de Imóveis Rurais (CNIR)”
Autor: Marcel Petrocino Esteves
Orientador: Ricardo Castillo
Unidade: Instituto de Geociências (IG)
Financiamento: Capes e Programa Santander
de Mobilidade Internacional
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