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O
som da gaita de fole de Michel Mendes mereceu até comentário
em uma rede social depois de algumas horas de estudo na Praça
da Paz da Unicamp. A paixão pelo instrumento, pela música
e pelo latim, desde os 8 anos de idade, motivou a escolha
pelo tema da dissertação de mestrado “Os sentidos da música
na Roma Antiga”, em que, a partir de um estudo minucioso,
o musicista contesta a versão de alguns historiadores que
negavam qualquer vivência musical na Roma antiga, a não ser
como copiadores da experiência grega. Em busca de entender a origem
da gaita de fole e interessado em estudar Letras Clássicas,
Mendes encontrou em autores clássicos citações sobre canto
coral para teatro e instrumentos bélicos dominados pelos romanos
naquela época.
Apesar de não deixarem como
herança nenhum compêndio sobre sua música, os textos mostram
que os romanos desenvolveram uma experiência musical própria,
de acordo com Mendes. “Eles investiram mais em instrumentos
e em questões práticas, enquanto a Grécia investiu mais em
questões teóricas. Tanto é que, para os gregos, a teoria musical
é uma ciência, por ter uma relação clara com a matemática
e com a filosofia”, complementa.
“Muitos autores falam sobre
música romana, mas não diretamente”, explica Mendes. Uma obra
tardia de Boécio, publicada já no século 5, intitulada De
Musica, trata sobre música românica. Segundo o autor, até
mesmo o tratado sobre teoria musical é dedicado a um resumo
das teorias gregas de música. “É um olhar romano sobre essa
teoria”. Um estudo sobre transmissão do conhecimento feito
pelo autor mostra que a imagem construída no século 19 de
que Roma é uma cópia da Grécia fez com que todas as obras
dedicadas à música omitissem todo o universo musical romano
na antiguidade.
Os escritos clássicos, conforme
Mendes, mostram que Roma teve um convívio musical mais intenso
do que aparece na literatura em seus festivais, arenas, jogos
e, principalmente, no teatro, porém, são apenas citações.
Cícero, por exemplo, em seu De Oratore, fala da música sem
necessariamente dedicar-se ao estudo dela. Apesar de citá-la
em vários pontos, o objetivo dele no estudo é discutir sobre
oralidade, discurso e retórica.
A
superprodução teatral envolvendo muitos músicos está presente
em textos de Plauto. E os romanos ainda tinham competições
de música, assim como na Grécia. Na obra de Euclides, um dos
principais autores teatrais gregos, foi observada uma aplicação
maior de corais no teatro e a intervenção desses corais explicando
a parte seguinte da peça como se fossem elos de continuidade.
Já em Roma, além dos corais, as produções contam com instrumentos
musicais muito utilizados. “Na Grécia já não havia muito uso
dos instrumentos. Os romanos tinham domínio da prática musical,
enquanto para os gregos, a música era uma ciência, além de
terem a percepção artística mais desenvolvida que os romanos.”,
acrescenta.
Sêneca também escreveu sobre
a magnitude desses eventos, teatros e cantores. Ele explica
a dinâmica de um coral romano, ainda que seja com recorte
em filosofia. “Ele dizia, por exemplo: Vamos agir assim, tal
como um coral.” O uso da música é como se fosse um exemplo
musical aplicado a outros contextos. Nunca uma preocupação
com a música em si.
Mas nem só de coros viveu
a Roma antiga. Ao mergulhar na literatura clássica, o historiador
constatou que eles traziam para sua vivência uma herança de
música bélica, talvez deixada pelos etruscos. Dentro do exército,
os músicos eram profissionais porque tinham toques específicos
de acordo com determinada ordem. Os instrumentos bélicos davam
voz a mensagens da guerra. Escritos de Júlio Cesar sobre a
guerra citam a construção e a execução de instrumentos bélicos,
e Vegécio, em seu manual militar, também menciona o uso da
música na guerra. Alguns desses instrumentos não aparecem
na literatura sobre a Grécia, entre os quais tuba, lituus,
cornu e bucina. “Os romanos criaram ou adaptaram dos etruscos
e deram uma aplicação militar específica. Já os gregos não
usavam a música para marchar ou para a guerra. Essa é uma
manifestação própria dos romanos também”, acrescenta. Segundo
o autor, Cícero também reconheceu, em Tuscuslanae Disputationes,
que os romanos têm caráter bélico mais destacado. Os romanos
não se dedicam mais à música ou à poesia porque não querem,
consta da obra de Cícero.
A influência do belicismo
na música é tão evidente que até a Primeira Guerra Mundial
alguns exércitos não marchavam sem a música na frente. “O
exército escocês marcha até hoje com gaita de fole. Tanto
que na briga com a Inglaterra, no século 18, os gaiteiros,
embora andassem desarmados, eram considerados soldados e eram
presos. A gaita de fole foi considerada instrumento de guerra
porque era vital para o exército escocês”, acrescenta.
Em
Vitrúvio, Mendes encontrou a relação da música com outras
áreas do conhecimento. Ele dizia que o arquiteto tem de saber
música para fazer máquinas de guerra. O autor explicava que
na catapulta tinha duas cordas que deveriam segurar proporcionalmente
cada lado da máquina, e o soldado teria de ter bons ouvidos
para saber se as cordas emitiam o mesmo som e, assim avaliar
se a tensão estava igual para lançar o projétil de forma eficiente.
De acordo com o historiador,
em seu Tratado de Arquitetura, Vitrúvio, a fim de explicar
a engenharia de um instrumento, descreve detalhadamente, em
várias páginas, um órgão hidráulico, um dos primeiros a serem
construídos. “Este estudo chamou a atenção por mostrar o interesse
de um arquiteto romano em um instrumento musical. Claro que
o interesse não era musical, e sim técnico, mas mostra que
eles têm uma percepção prática, além de aplicarem a música
em outras áreas”, explica Mendes. Os gregos, segundo o autor,
também aplicam conhecimentos musicais em outras áreas, mas
com a percepção artística mais desenvolvida.
Ele também explica as questões
acústicas nos teatros, como a instalação de vasos de bronze
nas arquibancadas para aumentar a acústica, já que, às vezes,
o teatro era em campo aberto.
Algumas passagens engraçadas
também levam a evidenciar a musicalidade dos romanos. Fedro,
autor romano de fábulas, conta a história de um músico cujo
sobrenome romano é Príncipe. Ele era um tibicen, como eram
chamados os músicos que tocavam tíbia, que a maioria dos tradutores
chama de flauta dupla. Conta o autor que Príncipe teria quebrado
a perna no palco e, dias depois, já recuperado, foi convidado
para atuar em uma peça teatral. Em determinado momento, o
coro começou a cantar uma parte da letra, que lhe era desconhecida,
na qual mencionavam um príncipe (título dado ao imperador
de Roma) com a frase: “Roma rejubila, seu príncipe está salvo”.
Pensando que a letra seria em homenagem a sua recuperação,
Príncipe começou a fazer reverências ao coro e ao público,
agradecendo o carinho. Essa história foi contada para ilustrar
a preocupação dos romanos com a música. O caso é contado em
detalhes por Fedro.
Ainda hoje
Os metais que os romanos usavam
na guerra vieram parar nas orquestras atuais, entre os quais
a tuba romana, diferente da executada hoje. Segundo Mendes,
ela parecia uma grande trombeta, mas, ao longo do tempo, todas
aquelas voltas da tubulação foram condensadas para que ela
ficasse mais compacta. Com o tempo, por diversos motivos,
entre os quais a necessidade de uma sonoridade mais potente,
todos os instrumentos foram sendo modificados. Segundo Mendes,
as salas de concerto foram ampliadas, o que exigia a amplificação
da acústica.
A tíbia está entre os instrumentos
que conservaram os mecanismos de funcionamento, apesar de
ter sido modificada e ter como correspondente o aulos grego.
Os trompetes podem ser assemelhados à antiga bucina, mas com
o diferencial de terem recebido os pistons. O cornu também
se aproxima da bucina, mas com o som mais grave, mais maduro,
além de ser feito de chifre. Os instrumentos de corda também
permaneceram, segundo Mendes. A harpa é descendente da cítara
e da lira. Cítara era para profissionais e tem potencial sonoro
maior.
De acordo com o gaiteiro,
muitos instrumentos tiveram problemas de tradução. As pessoas
convencionaram uma forma de nomear os instrumentos, mas ela
nem sempre corresponde a seu funcionamento. “Em dicionários
mais antigos existe essa confusão ao relacionar o nome. Cada
autor dá um nome diferente ao mesmo instrumento”, questiona
Mendes. Ele explica que, se comparar o som de uma flauta ao
de uma tíbia, é possível identificar timbres bem diferentes.
“A impressão que dá é que foi convencionado como flauta dupla
pela aparência do instrumento, mas o som é de um instrumento
de palheta, como o oboé”, pontua.
Quanto
à gaita de fole, que ainda desperta a curiosidade dos ouvintes,
precisa de mais estudos, mas Mendes encontrou indícios que
podem negar sua origem escocesa. “Os escoceses têm gaita de
fole, e ela é tida como um símbolo nacional na Escócia. Mas
a cana usada para a palheta não existe lá. Na Antiguidade,
parecia estar presente apenas na Espanha e no Egito”, questiona.
Para ele, essa pode ser uma comprovação de que a gaita pode
ter sido apropriada por eles. Além disso, há citações entre
os autores pesquisados de que o exército romano marchava com
a gaita de fole. Como os romanos tiveram contato com os escotos,
o pesquisador acredita que aqueles teriam levado o instrumento
para a Escócia.
Como historiador, Mendes contribui
para o desenvolvimento de outros estudos sobre a música na
Roma antiga, por trazer informações que estavam escondidas
em citações de grandes obras clássicas. Como músico, além
de acalentar os ouvidos ao redor da Praça da Paz, a dedicação
à gaita de fole rendeu a classificação de sua banda, St. Andrew
Society Pipes and Drums, em terceiro lugar no Campeonato Sul-Americano
de Gaitas de Fole, realizado em Buenos Aires (Argentina),
na semana de 5 a 7 de novembro.
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Publicação
Dissertação “Os sentidos da Música na Roma Antiga”
Autor: Michel Mendes
Orientadora: Patrícia Prado
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem
(IEL)
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