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O aborto e
a Justiça

Luiz Sugimoto

Pesquisas coordenadas por professor da FCM colhem opiniões de juízes e promotores sobre o procedimento

O professor da FCM Aníbal Faúndes, coordenador dos levantamentos:  50 anos de experiência (Foto: Antoninho Perri)Está marcada para esta terça-feira, 16, a quarta e última audiência pública do Supremo Tribunal Federal (STF) para ouvir opiniões sobre a liberação ou não da interrupção da gravidez em caso de fetos anencéfalos (sem cérebro). Os debates iniciados em 26 de agosto envolvem a ADPF 54 (Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental), apresentada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), que solicita duas medidas ao Supremo: a primeira, que reconheça o direito de aborto para mulheres grávidas de fetos com anencefalia e, a segunda, que os médicos não sejam penalizados por realizar o procedimento. Para o julgamento, que deve ocorrer até o final do ano, é nítida a tendência dos ministros em decidir pela liberação.
Duas pesquisas junto a 1.493 juízes e 2.614 promotores de justiça brasileiros, feitas pelo Centro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva de Campinas (Cemicamp) e coordenadas pelo professor e ginecologista Aníbal Faúndes, da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, mostram a mesma tendência liberalizante em relação a outros aspectos da legislação. Atualmente, o aborto é tolerado somente quando a gravidez é resultante de estupro ou quando ela coloca em risco a vida da mulher.
“Há juízes que vêm autorizando o aborto por outros motivos, como o de fetos malformados, enquanto os promotores se encarregam de investigar denúncias de práticas tidas como ilegais. É importante conhecer a opinião e a conduta destes atores, inclusive para a discussão da ampliação da lei do aborto que acontece no Congresso”, justifica a pesquisadora Graciana Alves Duarte, que atuou com Aníbal Faúndes nos dois levantamentos. O juiz José Henrique Rodrigues Torres participou da pesquisa com magistrados e a professora Maria José Duarte Osis (FCM) da pesquisa com os promotores.
Com a colaboração da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e de 29 Associações de Promotores e Procuradores existentes no Brasil, os pesquisadores enviaram questionários solicitando opiniões quanto à necessidade de mudanças nas leis que tratam do aborto; as circunstâncias em que a prática deveria ser permitida; e a conduta do juiz ou promotor que atuou em casos de abortos não previstos em lei. O questionário inclui pergunta a respeito da ADPF 54, relacionada aos fetos anencéfalos, em debate no STF.
“Assim como em pesquisa anterior que fizemos com médicos, em torno das mesmas questões, a maioria dos magistrados e promotores foi favorável à ampliação da lei incluindo outras circunstâncias em que não se puniria o aborto praticado por médicos. A maior taxa se refere aos casos de malformação com justificativa médica, sobre os quais já se criou uma jurisprudência. Mas ainda é preciso entrar com petição judicial e a concessão do alvará depende da opinião do juiz”, esclarece Graciana Duarte.

A pesquisadora Graciana Alves Duarte:  a conduta de atores envolvidos” (Foto: Antoninho Perri)Magistrados
Segundo a pesquisa promovida pelo Cemicamp junto aos associados da AMB, 61,2% vêem necessidade de mudanças na legislação para ampliar as circunstâncias em que não se pune o aborto praticado por médicos; 16,8% endossam inclusive a proposta de que o aborto deixe de ser considerado crime, independente da circunstância em que é praticado, totalizando 78% de magistrados favoráveis à ampliação da lei.
Perguntados sobre a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) apresentada ao STF, que trata da interrupção da gestação quando diagnosticada a anencefalia, 62% dos juízes que tinham uma opinião formada sobre o assunto responderam que a ADPF deveria ser transformada em lei; 42% a consideraram adequada; e pouco menos de um quinto opinou que ela não é adequada.
Graciana Duarte atenta que, se a concordância dos juízes com o aborto induzido no diagnóstico de anencefalia foi de 79,4%, o índice é igualmente alto quanto a qualquer malformação congênita que inviabilize a vida extra-uterina: 78,5%. “Ainda sobre as circunstâncias, 79% aprovam a interrupção da gravidez quando há risco de vida para a gestante; 71,6% em gravidez resultante de estupro, 56% se houver prejuízo à saúde física da mulher, e 41% à saúde psíquica”.
No que se refere à prática, 10,7% dos juízes que atuavam na área criminal informaram que já emitiram parecer favorável a algum pedido de aborto não previsto pela lei. “Eu fiz um mapeamento mostrando que as decisões favoráveis estão concentradas no Sul – há maior resistência ao aborto no Norte e Nordeste – mas há juízes com esta conduta em todo o país. Questionados sobre as circunstâncias, 66% decidiram favoravelmente por anencefalia, 16% por malformação fetal e 18,5% por estupro (casos que nem deveriam chegar ao Judiciário, já que estão previstos em lei)”.

(Foto: Divulgação)Promotores
Chamou atenção na pesquisa junto aos promotores de justiça, que 12,5% tenham se mostrado a favor da não-penalização do aborto em qualquer caso, contra 3,2% que opinaram que a prática nunca deve ser permitida. Sobre as circunstâncias, 86,7% indicaram permissão ao aborto em caso de risco de vida para a gestante; 85,3% no diagnóstico de anencefalia; 83,7% em feto com qualquer malformação congênita que torne impossível a vida extra-uterina; e 83,2% na gravidez resultante de estupro.
Ainda quanto às circunstâncias, 60,7% dos promotores aprovaram a interrupção da gravidez quando ela traz graves prejuízos à saúde física da mulher; 42,4% na gravidez com graves prejuízos psíquicos; 27,5% no caso de mulheres com HIV positivo; 19% quando a mulher não possui condições financeiras para sustentar o filho; 17,6% na falha do método anticoncepcional; e 15,7% quando o parceiro da mulher não assume a gravidez.
De acordo com os pesquisadores, foi considerada baixa proporção de promotores (26,1%) e de procuradores (12,6%) que informaram já ter atuado em casos de aborto ilegal, haja vista a estimativa de que no Brasil se realizam um milhão de abortos por ano. A interpretação é de que, apesar das restrições legais em relação ao aborto, elas não se traduzem em ações punitivas por parte da Justiça.

‘Vivemos sob uma ilegalidade consentida’

O juiz José Henrique Rodrigues Torres, titular da Vara do Júri de Campinas, um dos autores da pesquisa com magistrados realizada pelo Cemicamp, vê o aborto muito mais como um problema de saúde pública, que não deve ser enfrentado dentro do sistema criminal. Na prática, é isto o que acontece: além da baixíssima quantidade de inquéritos policiais instaurados, quase nunca eles são transformados em processo pelos promotores.


“No momento, temos apenas um processo em andamento aqui na Vara do Júri. Desde que cheguei em 1987, não tive notícia de nenhum julgamento por abortamento em Campinas. Se acontecem mais de um milhão de casos por ano no Brasil, isto significa que não faz parte do sistema a averiguação e o acolhimento de denúncias. Vivemos sob uma ilegalidade consentida”, observa Rodrigues Torres.

Na opinião do magistrado, a criminalização não tem sido eficaz para conter a prática do abortamento, o que enfraquece a alegação de proteção à vida do feto. “A criminalização persiste por que é fruto de uma ideologia patriarcal, que visa ao controle da sexualidade feminina. É uma espada de Dâmocles pendurada sobre a cabeça das mulheres, uma ameaça como forma de controle”.

Torres ressalta que um dos indicativos da pesquisa do Cemicamp é de que os magistrados brasileiros, em sua maioria, não seriam favoráveis a uma descriminalização total do aborto, mas tendem para a ampliação das circunstâncias em que a prática seja permitida. “Um dado interessante é que muitos entrevistados se manifestam contra o abortamento, mas mudam de opinião quando pessoas próximas têm esta necessidade. Isto mostra como o problema é enfrentado. Surgem, então, as posições favoráveis ao alargamento das hipóteses de legalização do aborto”.

Sobre o debate no Supremo Tribunal Federal em torno da proposta de permissão do aborto na anencefalia, o juiz José Henrique Rodrigues Torres guarda a expectativa de que seja aprovada. “Tenho firmado minha posição sobre o assunto nos processos relacionados com anencefalia em Campinas, autorizando todos os casos, inclusive com a concordância do Ministério Público. Já existe um consenso pela autorização”.

Também há consenso, acrescenta o magistrado, para outros casos de malformação fetal com inviabilidade de vida extra-uterina, bem como quanto à não necessidade de autorização judicial para aborto na gestação decorrente de estupro e de risco à vida da gestante. “Os serviços de aborto legal já criaram sua estrutura e as normas, é questão apenas de ampliar os serviços. Pessoalmente, não vejo necessidade de autorização também para o feto anencefálico, sustento que não há crime nesta conduta”.

Torres Rodrigues observa que em 1994, quando o Judiciário começou a receber os primeiros pedidos de autorização para o abortamento, eram pouquíssimos os juízes que a concediam. “Uma pesquisa informa que mais de 5 mil decisões favoráveis já foram tomadas no Brasil. Os juízes vão se conscientizando de que não há possibilidade de criminalizar as mulheres pelo aborto; ao contrário, é preciso acolhê-las”.

 

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