Está
marcada para esta terça-feira, 16, a quarta e última audiência
pública do Supremo Tribunal
Federal (STF) para ouvir opiniões sobre
a liberação ou não da interrupção da gravidez em caso de
fetos anencéfalos (sem cérebro). Os debates iniciados em
26 de agosto envolvem a ADPF 54 (Argüição de Descumprimento
de Preceito Fundamental), apresentada pela Confederação
Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), que solicita
duas medidas ao Supremo: a primeira, que reconheça o direito
de aborto para mulheres grávidas de fetos com anencefalia
e, a segunda, que os médicos não sejam penalizados por
realizar o procedimento. Para o julgamento, que deve ocorrer
até o final do ano, é nítida a tendência dos ministros
em decidir pela liberação.
Duas pesquisas junto a 1.493 juízes e 2.614 promotores
de justiça brasileiros, feitas pelo Centro de Pesquisas
em Saúde Reprodutiva de Campinas (Cemicamp) e coordenadas
pelo professor e ginecologista Aníbal Faúndes, da Faculdade
de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, mostram a mesma tendência
liberalizante em relação a outros aspectos da legislação.
Atualmente, o aborto é tolerado somente quando a gravidez
é resultante de estupro ou quando ela coloca em risco a
vida da mulher.
“Há juízes que vêm autorizando o aborto por outros motivos,
como o de fetos malformados, enquanto os promotores se
encarregam de investigar denúncias de práticas tidas como
ilegais. É importante conhecer a opinião e a conduta destes
atores, inclusive para a discussão da ampliação da lei
do aborto que acontece no Congresso”, justifica a pesquisadora
Graciana Alves Duarte, que atuou com Aníbal Faúndes nos
dois levantamentos. O juiz José Henrique Rodrigues Torres
participou da pesquisa com magistrados e a professora Maria
José Duarte Osis (FCM) da pesquisa com os promotores.
Com a colaboração da Associação dos Magistrados Brasileiros
(AMB) e de 29 Associações de Promotores e Procuradores
existentes no Brasil, os pesquisadores enviaram questionários
solicitando opiniões quanto à necessidade de mudanças nas
leis que tratam do aborto; as circunstâncias em que a prática
deveria ser permitida; e a conduta do juiz ou promotor
que atuou em casos de abortos não previstos em lei. O questionário
inclui pergunta a respeito da ADPF 54, relacionada aos
fetos anencéfalos, em debate no STF.
“Assim como em pesquisa anterior que fizemos com médicos,
em torno das mesmas questões, a maioria dos magistrados
e promotores foi favorável à ampliação da lei incluindo
outras circunstâncias em que não se puniria o aborto praticado
por médicos. A maior taxa se refere aos casos de malformação
com justificativa médica, sobre os quais já se criou uma
jurisprudência. Mas ainda é preciso entrar com petição
judicial e a concessão do alvará depende da opinião do
juiz”, esclarece Graciana Duarte.
Magistrados
Segundo a pesquisa promovida pelo Cemicamp junto aos associados
da AMB, 61,2% vêem necessidade de mudanças na legislação
para ampliar as circunstâncias em que não se pune o aborto
praticado por médicos; 16,8% endossam inclusive a proposta
de que o aborto deixe de ser considerado crime, independente
da circunstância em que é praticado, totalizando 78%
de magistrados favoráveis à ampliação da lei.
Perguntados sobre a Argüição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) apresentada ao STF, que trata da interrupção
da gestação quando diagnosticada a anencefalia, 62% dos
juízes que tinham uma opinião formada sobre o assunto responderam
que a ADPF deveria ser transformada em lei; 42% a consideraram
adequada; e pouco menos de um quinto opinou que ela não
é adequada.
Graciana Duarte atenta que, se a concordância dos juízes
com o aborto induzido no diagnóstico de anencefalia foi
de 79,4%, o índice é igualmente alto quanto a qualquer
malformação congênita que inviabilize a vida extra-uterina:
78,5%. “Ainda sobre as circunstâncias, 79% aprovam a interrupção
da gravidez quando há risco de vida para a gestante; 71,6%
em gravidez resultante de estupro, 56% se houver prejuízo
à saúde física da mulher, e 41% à saúde psíquica”.
No que se refere à prática, 10,7% dos juízes que atuavam
na área criminal informaram que já emitiram parecer favorável
a algum pedido de aborto não previsto pela lei. “Eu fiz
um mapeamento mostrando que as decisões favoráveis estão
concentradas no Sul – há maior resistência ao aborto no
Norte e Nordeste – mas há juízes com esta conduta em todo
o país. Questionados sobre as circunstâncias, 66% decidiram
favoravelmente por anencefalia, 16% por malformação fetal
e 18,5% por estupro (casos que nem deveriam chegar ao Judiciário,
já que estão previstos em lei)”.
Promotores
Chamou atenção na pesquisa junto aos promotores de justiça,
que 12,5% tenham se mostrado a favor da não-penalização
do aborto em qualquer caso, contra 3,2% que opinaram
que a prática nunca deve ser permitida. Sobre as circunstâncias,
86,7% indicaram permissão ao aborto em caso de risco
de vida para a gestante; 85,3% no diagnóstico de anencefalia;
83,7% em feto com qualquer malformação congênita que
torne impossível a vida extra-uterina; e 83,2% na gravidez
resultante de estupro.
Ainda quanto às circunstâncias, 60,7% dos promotores aprovaram
a interrupção da gravidez quando ela traz graves prejuízos
à saúde física da mulher; 42,4% na gravidez com graves
prejuízos psíquicos; 27,5% no caso de mulheres com HIV
positivo; 19% quando a mulher não possui condições financeiras
para sustentar o filho; 17,6% na falha do método anticoncepcional;
e 15,7% quando o parceiro da mulher não assume a gravidez.
De acordo com os pesquisadores, foi considerada baixa proporção
de promotores (26,1%) e de procuradores (12,6%) que informaram
já ter atuado em casos de aborto ilegal, haja vista a estimativa
de que no Brasil se realizam um milhão de abortos por ano.
A interpretação é de que, apesar das restrições legais
em relação ao aborto, elas não se traduzem em ações punitivas
por parte da Justiça.
‘Vivemos
sob uma ilegalidade consentida’
O juiz José Henrique
Rodrigues Torres, titular da Vara do Júri de Campinas,
um dos autores da pesquisa com magistrados realizada
pelo Cemicamp, vê o aborto muito mais como um problema
de saúde pública, que não deve ser enfrentado dentro
do sistema criminal. Na prática, é isto o que acontece:
além da baixíssima quantidade de inquéritos policiais
instaurados, quase nunca eles são transformados em
processo pelos promotores.
“No momento, temos apenas um processo em andamento aqui na Vara do Júri. Desde
que cheguei em 1987, não tive notícia de nenhum julgamento por abortamento
em Campinas. Se acontecem mais de um milhão de casos por ano no Brasil, isto
significa que não faz parte do sistema a averiguação e o acolhimento de denúncias.
Vivemos sob uma ilegalidade consentida”, observa Rodrigues Torres.
Na opinião do magistrado, a criminalização não tem sido eficaz para conter
a prática do abortamento, o que enfraquece a alegação de proteção à vida do
feto. “A criminalização persiste por que é fruto de uma ideologia patriarcal,
que visa ao controle da sexualidade feminina. É uma espada de Dâmocles pendurada
sobre a cabeça das mulheres, uma ameaça como forma de controle”.
Torres ressalta que um dos indicativos da pesquisa do Cemicamp é de que os
magistrados brasileiros, em sua maioria, não seriam favoráveis a uma descriminalização
total do aborto, mas tendem para a ampliação das circunstâncias em que a prática
seja permitida. “Um dado interessante é que muitos entrevistados se manifestam
contra o abortamento, mas mudam de opinião quando pessoas próximas têm esta
necessidade. Isto mostra como o problema é enfrentado. Surgem, então, as posições
favoráveis ao alargamento das hipóteses de legalização do aborto”.
Sobre o debate no Supremo Tribunal Federal em torno da proposta de permissão
do aborto na anencefalia, o juiz José Henrique Rodrigues Torres guarda a expectativa
de que seja aprovada. “Tenho firmado minha posição sobre o assunto nos processos
relacionados com anencefalia em Campinas, autorizando todos os casos, inclusive
com a concordância do Ministério Público. Já existe um consenso pela autorização”.
Também há consenso, acrescenta o magistrado, para outros casos de malformação
fetal com inviabilidade de vida extra-uterina, bem como quanto à não necessidade
de autorização judicial para aborto na gestação decorrente de estupro e de
risco à vida da gestante. “Os serviços de aborto legal já criaram sua estrutura
e as normas, é questão apenas de ampliar os serviços. Pessoalmente, não vejo
necessidade de autorização também para o feto anencefálico, sustento que não
há crime nesta conduta”.
Torres Rodrigues observa que em 1994, quando o Judiciário começou a receber
os primeiros pedidos de autorização para o abortamento, eram pouquíssimos os
juízes que a concediam. “Uma pesquisa informa que mais de 5 mil decisões favoráveis
já foram tomadas no Brasil. Os juízes vão se conscientizando de que não há
possibilidade de criminalizar as mulheres pelo aborto; ao contrário, é preciso
acolhê-las”.
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