Há
pouco mais de um ano, um jornal de circulação nacional
colheu a opinião de cerca de dez especialistas sobre o
caso de Marcela de Jesus Ferreira, que iria viver por 18
meses com diagnóstico de anencefalia. O fato causou comoção
e foi transformado em bandeira do movimento contrário ao
pedido de direito de aborto para grávidas de fetos com
esta malformação, em trâmite no Supremo Tribunal Federal.
Marcela faleceu no último dia 1º de agosto.
Na ocasião da reportagem, o ginecologista e obstetra Ricardo Barini foi o único
especialista a declarar que não se tratava de anencefalia. “Eu disse que só
havia uma possibilidade: se a criança estava sobrevivendo, não era anencefalia.
Exames de ressonância magnética já mostravam mais estruturas cerebrais, o que
indicava meracrania, uma variante raríssima dos defeitos de fechamento do tubo
neural, mas que também não permite sobrevida longa”.
Na opinião de Barini, Marcela sobreviveu por 18 meses devido ao aparato montado
ao seu redor, como respirador doméstico e alimentação por sonda. “Havia um
interesse político em mantê-la viva e a família, cujo desejo de que isto ocorresse
é incontestável, foi levada a crer na vitória. Inclusive, questionei por que
o grupo que assistia à criança não a submetia a uma avaliação de experts,
a fim de comprovar a anencefalia e eliminar qualquer dúvida”.
Entretanto, a própria Justiça considerou a hipótese de que o caso denunciava
um engano da medicina. Em junho de 2007, o Ministério Público de São Paulo,
baseado no fato de que Marcela sobrevivia sem cérebro havia sete meses, convocou
Ricardo Barini a incluir novas justificativas a um pedido de autorização para
um aborto na Unicamp. “A criança tinha o triplo da quantidade de cromossomos,
doença chamada de triploidia, que inviabiliza a sobrevida. Era um problema
genético e não neurológico”.
Ainda assim, o médico precisou registrar nos autos a sua declaração sobre o
caso de Marcela, acrescentando que a desconsideração de estruturas cerebrais
encontradas nos exames de ressonância magnética configurava um erro de diagnóstico.
“Agora, por ocasião das discussões no STF, uma junta médica decidiu analisar
o caso e concordou com meu diagnóstico de um ano atrás: não era anencefalia
e sim meracrania”.
Para não confundir
Na expectativa de que a interrupção da gravidez na encefalia seja aprovada
pelo Supremo Tribunal Federal, Ricardo Barini lembra que várias outras situações
clínicas inviabilizam a sobrevida dos bebês – e que, por semelhança, mereceriam
igual parecer por parte dos juízes. No entanto, o especialista receia que
a inclusão deste viés confunda o debate. “Como a solicitação ao Supremo é
para anencefalia, é melhor, antes, esclarecer este ponto”.
Dirigindo-se aos leigos, entre os quais se incluem os juristas, o médico explica
que o sistema nervoso central é formado a partir de um tubo, constituído por
um folheto que se dobra em si. “Há uma fusão na altura da metade das costas,
que depois de completa, como um zíper que corre para baixo e outro que corre
para cima. Se o zíper não fecha para baixo, temos a espinha bífida ou miolomelingocele;
se não fecha para cima, a anencefalia, ou a craniorraquisquise, mais grave,
já que o cérebro e toda a coluna ficam expostos”.
Barini observa que no caso de Marcela, a meracrania, há um fechamento normal
da parte inferior, enquanto que a parte de cima, mesmo sem fechamento ósseo,
apresenta uma membrana cobrindo o tecido nervoso. “Esta cobertura oferece certa
proteção, preservando parte do mesencéfalo, implicando em um pouco mais de
sobrevida. Já na anencefalia, inexiste esta membrana e a sobrevida é inviabilizada
pela exposição dos tecidos cerebrais ao ar ambiente. Em nosso serviço na Unicamp,
registramos o máximo de 72 horas”.
Ocorre ainda a hidranencefalia, quando a cabeça é formada, mas o cérebro acaba
trocado por água, devido a alguma obstrução circulatória precoce que provoca
a destruição do tecido cerebral. “Tivemos o caso de uma senhora que estava
requisitando autorização judicial para interrupção da gravidez. Uma instituição
entrou com recurso contestando o diagnóstico e, no período de idas e vindas,
a criança acabou evoluindo para óbito, ficando decidida a questão sem nosso
envolvimento mais direto”.
Outras situações
Para ressaltar como a questão é polêmica, o médico da Unicamp recorda que este
caso de hidranencefalia chegou a ser contestado na Justiça por ter sido confundido
com a hidrocefalia – anomalia completamente diferente, menos grave, mas com
sobrevida com limitações neurológicas importantes. “Se ainda está difícil
entender a anencefalia e suas variantes, não vale a pena estender a discussão
para outras situações. É melhor esperar passar o furacão”.
Entretanto, Ricardo Barini menciona outras doenças renais incompatíveis com
a vida extra-uterina, como a de bebês gerados sem rins e que não podem ser
salvos, exceto por um transplante imediato, o que não existe disponível para
recém-nascidos. Outro exemplo é a doença multicística renal, em que os rins
são substituídos por pequenos cistos de líquido, sem função excretora; não
produzem líquido amniótico, o que provoca a compressão do tórax e a hipoplasia
pulmonar. Há outros defeitos muito graves, como alguns problemas cardíacos
e defeitos do fechamento da parede do tórax e do abdômen, em que toda esta
parte do corpo fica exposta, sem possibilidade de correção cirúrgica.
Filme expõe dramas e dilemas de mulheres
Ninguém é a favor do aborto, tampouco a mulher que se submete à prática. Talvez
seja esta a principal mensagem do filme O Aborto dos Outros, da diretora Carla Gallo, que estreou no início de setembro em São Paulo e será
exibido no próximo dia 25 na Faculdade de Ciências Médicas
(FCM) da Unicamp, às 10 horas. Apresentado como “um filme
sobre a maternidade, afetividade, intolerância e solidão”,
o documentário traz depoimentos de mulheres que viveram
a experiência do aborto, da adolescente engravidada por
estupro à mãe que descobre a malformação do feto.
As filmagens ocorreram no Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Caism)
da Unicamp e em mais três hospitais que prestam atendimento para casos previstos
em lei, dentro do Programa de Aborto Legal: Hospital Pérola Byington, Unifesp
e Hospital do Jabaquara, estes da Capital.
“É um filme que precisa ser visto e comentado, cujo maior mérito está em abordar
a problemática do aborto com foco nas mulheres. Ele é duro do ponto de vista
emocional, mas mostra com serenidade e clareza que não se trata de uma experiência
fácil, mesmo para a mulher opta pelo aborto”, diz o ginecologista e obstetra
Ricardo Barini. Ele aparece no documentário realizando o ultrassom e depois
a interrupção da gestação de um feto anencéfalo, autorizada por um juiz de
Campinas.
O professor Aníbal Faúndes, da FCM, possui 50 anos de experiência no tema e
participa do filme também por ter protagonizado a primeira polêmica sobre o
aborto de um feto anencéfalo, em 1994. Então na direção do Caism, o médico
concedeu entrevista assumindo a defesa de uma professora processada e condenada
por aborto em Jundiaí. “Ela foi estuprada pelo ex-marido e engravidou. Eu declarei
que teria feito a interrupção da gravidez, visto que está prevista em lei desde
1940”.
Questionado pela jornalista sobre abortos de fetos anencéfalos, não previstos
em lei, Faúndes admitiu o procedimento, mesmo que na época ainda não se buscasse
o amparo judicial. “Disse que, para alívio da mulher que não suporta a idéia
de esperar por uma morte anunciada, interrompíamos a gravidez, já que de nada
adiantava a espera. No dia seguinte, a manchete foi ‘Unicamp faz abortos ilegais’.
O reitor pediu minha renúncia da diretoria do Caism, mas acabou recuando e
abriu um processo administrativo, após receber telefonemas e ler no jornal
um editorial e cartas apoiando minha posição”.
Aníbal Faúndes deixa claro, entretanto, que a decisão pelo aborto de um feto
com anencefalia era e é apenas da mãe. “Se ela quisesse manter a gravidez,
recebia todo o nosso apoio. É este o mal-entendido em relação à proposta em
discussão no Supremo: ela não obriga ninguém ao aborto. Outro mal-entendido
é que não estamos falando de crianças com deficiência mental – que quando nascem
merecem todo o nosso respeito – mas de fetos que simplesmente não viverão fora
do útero”.
Entretanto, o pior mal-entendido, lamenta Faúndes, é o de se acreditar que
os médicos que apóiam a mulher que deseja antecipar o parto de um feto anencéfalo,
sejam a favor do aborto. “Acaba de acontecer, neste dia 10, em Brasília, uma
marcha do Movimento Nacional da Cidadania em Defesa da Vida – Brasil sem Aborto.
É claro que todos gostaríamos de ter um Brasil e um mundo sem aborto, mas não
conseguiremos isto com marchas, nem condenando a mulher que aborta à cadeia.
Só se consegue com educação e colocando à disposição de toda a população, todos
os métodos eficazes”.
Não há opção boa
Ricardo Barini, por sua vez, reitera que a postura do serviço do Caism em relação
à anencefalia é de acatar o desejo da paciente, depois de orientada por uma
equipe multidisciplinar sobre o prognóstico da gravidez. “Eu digo a esta
paciente que não existe saída boa, qualquer opção é ruim. Se ela prefere
não interromper a gravidez por convicções pessoais, morais ou religiosas,
é melhor mesmo que prossiga, pois o conflito emocional pode piorar a situação”.
Por outro lado, quando a paciente decide imediatamente pela interrupção logo
após de avaliada, é aconselhada a pensar um pouco mais. “Para evitar uma decisão
intempestiva, sempre sugerimos que a mulher vá para casa e reflita com o marido.
Geralmente, ela não muda de posição, mas volta mais tranqüila para a internação
e o procedimento”.