Salvando bebês. Ainda no útero
Procedimentos vão de cirurgia de
correção
de hérnia diafragmática à transfusão feto-fetal
MANUEL
ALVES FILHO
A
maior foto desta página traz duas mulheres sorridentes com
um bebê. Mais do que retratar a alegria de ambas, a imagem
resume uma história que mescla amor, solidariedade e dedicação.
A personagem da esquerda é Sandra Locatelli, mãe biológica
da criança. A da direita é Mônica Tsuruda, mãe substituta,
como é chamada aquela que empresta o útero para gerar o
filho de outra pessoa. O bebê é Mariana, verdadeira protagonista
de uma epopéia. Portadora de hérnia diafragmática, a menina
teve que ser submetida a duas cirurgias delicadas, uma delas
antes do parto, para poder superar o problema. Os procedimentos
foram realizados por uma equipe multidisciplinar do Hospital
da Mulher-Caism, unidade que compõe o complexo hospitalar
da Unicamp. “Apenas metade dos bebês submetidos a essa abordagem
consegue sobreviver. Antes desse método, 90% das crianças
morriam. Mariana e as duas mães são vitoriosas”, afirma
o cirurgião pediátrico Lourenço Sbragia Neto, um dos integrantes
do grupo.
Salvar a vida de bebês tem
sido a obsessão desse time, formado por especialistas em
áreas como obstetrícia, cirurgia pediátrica, anestesia e
neonatologia. Entre as técnicas aplicadas com esse objetivo,
duas têm se destacado em razão dos resultados alcançados,
comparáveis aos obtidos em países desenvolvidos. “Ambas
são realizadas com a criança ainda no útero da mãe, por
meio de procedimento endoscópico”, explica o especialista
em medicina fetal Fábio Peralta. No caso da hérnia diafragmática,
deformidade apresentada por Mariana, o feto desenvolve-se
com um orifício no diafragma, músculo que separa o tórax
do abdome. Isso faz com que um ou mais órgãos, como intestino,
rim e fígado, desloquem-se para cima, impedindo dessa forma
o desenvolvimento dos pulmões. Trata-se de um problema raro,
que atinge uma a cada 4 mil gravidezes.
A
terapêutica empregada pela equipe do Hospital da Mulher-Caism
para corrigir a hérnia diafragmática é composta por duas
etapas. A primeira consiste na introdução, por via endoscópica,
de um microbalão de látex na traquéia do feto, técnica desenvolvida
originariamente na Bélgica. A minúscula bexiga é posteriormente
inflada, medida que impede a saída do líquido amniótico
produzido no pulmão, que por sua vez se expande. O balão
tem que ser retirado algumas semanas antes do parto. A segunda
intervenção ocorre depois do nascimento, por volta da segunda
semana de vida do bebê. É nessa ocasião que o cirurgião
pediátrico faz a correção da deformidade. “Muitas vezes
nós temos que reconstruir o diafragma com o auxílio de uma
prótese sintética”, detalha Lourenço Sbragia.
Antes do advento desse método,
conforme o médico, quase a totalidade dos bebês que apresentavam
hérnia diafragmática morria. “A nossa casuística ainda é
pequena, mas os resultados obtidos aqui no Caism com o uso
dessa técnica assemelham-se aos relatados na literatura,
que apontam para uma taxa de sobrevivência da ordem de 50%.
Das 12 crianças que operamos, duas ainda estão sendo gestadas,
cinco estão vivas e bem e cinco morreram. São dados que
nos deixam contentes, mas que nos levam a buscar índices
ainda melhores”, considera o cirurgião pediátrico. Conforme
Fábio Peralta, a hérnia diafragmática pode ser identificada
a partir das 12ª semana de gestação. Já a cirurgia para
o implante do balão é feita entre a 24ª e 28ª semana. “Por
isso o pré-natal é extremamente importante. Somente por
meio do acompanhamento contínuo da gravidez é que temos
a chance de identificar e tentar corrigir problemas dessa
ordem”, alerta o ginecologista e obstetra.
Gêmeos
O outro procedimento intra-uterino adotado pela equipe do
Hospital da Mulher-Caism é voltado ao tratamento da chamada
transfusão feto-fetal, que ocorre por ocasião da gestação
de gêmeos. Nesse caso, os dois fetos estão conectados por
uma única placenta. Nessa situação, um vaso sanguíneo costuma
interligar os bebês, o que faz com que um “roube” sangue
do outro. “Quando isso acontece, normalmente um dos fetos
morre”, esclarece Fábio Peralta. Para tratar o problema,
os especialistas também lançam mão do procedimento endoscópico
para corrigir o problema ainda antes do parto. Com a ajuda
de uma micro-câmera e de um laser, eles identificam o vaso
sanguíneo e o cauterizam. “Essa é a melhor técnica para
tratar esse tipo de problema. Se ela não for aplicada nos
casos que têm indicação, a taxa de óbito de um ou de ambos
os bebês supera 90%. Ademais, metade das crianças que sobrevivem
apresenta algum dano neurológico”, informa o ginecologista
e obstetra.
Com
a ajuda da nova técnica, que começou a ser utilizada em
1989 e que foi adotada há cerca de dois anos pelo Caism,
o índice de sobrevida das crianças atingiu índices comparáveis
aos obtidos internacionalmente. “Aqui, em 75% dos casos
nós conseguimos assegurar a sobrevivência de um dos bebês.
Em metade dos casos, os dois bebês sobreviveram. Das 30
crianças que sobreviveram por conta do procedimento, nenhuma
apresentou dano neurológico”, comemora Fábio Peralta. Segundo
ele, esse tipo de problema também é raro, atingindo uma
em cada 5 mil gravidezes. A transfusão feto-fetal também
pode ser identificada a partir da 12ª de gestação. O ideal
é que a cirurgia seja realizada entre a 18ª e a 24ª semana.
“Depois disso os riscos para os fetos e para a mãe aumentam
muito. Também nesse caso, o pré-natal surge como um aliado
importante para diagnosticar e tratar o problema nos tempos
certos”, acrescenta.
Antes do uso do laser, a
medicina se valia de um método menos sofisticado para tentar
tratar a transfusão feto-fetal. Este, observa Fábio Peralta,
ainda pode ser empregado em locais que não contam com um
serviço de alta complexidade como o disponível no Caism.
Nesse caso, os médicos optam por esvaziar o líquido que
se acumula na barriga da mãe e que muitas vezes leva ao
parto prematuro. “Drenar esse líquido tende a prolongar
a gestação, o que pode ajudar a salvar um ou os dois bebês.
Ocorre, entretanto, que nessa circunstância o índice de
sobrevida dificilmente supera os 50%, sem contar que o risco
de dano neurológico aumenta consideravelmente. Retirar o
líquido é tratar apenas o sintoma e não a doença em si”,
compara o ginecologista e obstetra.
Leitos
A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp)
está financiando dois projetos de pesquisa experimental
no Laboratório de Cirurgia de Lourenco Sbragia que permitem
estudar o impacto do crescimento pulmonar nos procedimentos
fetais adotados pela equipe do Caism, cujos resultados estão
ajudando tanto a salvar vidas quanto a formar pessoal altamente
qualificado para atuar na área da saúde. A despeito dos
excelentes indicadores alcançados até aqui, o grupo tem
uma preocupação extra, que reside na falta de leitos para
abrigar os recém-nascidos que apresentam doenças sérias.
“De modo geral, eu diria que contamos com pessoal, equipamentos
e técnicas de primeiríssima linha, comparáveis aos apresentados
pelos centros do primeiro mundo. Todavia, esbarramos num
problema estrutural, que é a falta de leitos para recepcionar
o neonato. Muitas vezes, não adianta fazermos as cirurgias
intra-uterinas aqui, para deixar que a criança nasça em
outro lugar. Muitas vezes tomamos conhecimento de bebês
que morreram depois do parto, quando tinham tudo para sobreviver
se o parto tivesse sido realizado aqui. Assim, estamos trabalhando
para ampliar o número de leitos para atender esses casos.
Não é uma tarefa fácil, pois envolve decisões em várias
instâncias, inclusive no âmbito governamental, mas estamos
lutando para isso”, adianta Ricardo Barini, também integrante
do grupo e professor de ginecologia e obstetrícia da Faculdade
de Ciências Medicas (FCM) da Unicamp. Bebês como Mariana
e as famílias deles agradecem o esforço.