Jornal da Unicamp
A esquerda brasileira está inquieta e parte
dela se sente desconfortável com o momento
político, como se estivesse sendo inculpada
das desigualdades sociais. Como o senhor analisa esse
quadro?
Octavio IanniNão
há dúvida de que a sociedade brasileira
está atravessada por injustiças sociais.
E não há dúvida de que esse quadro
de desigualdades deve ser superado aos poucos ou rapidamente.
Há que reconhecer, especialmente se se trata
de um presidente da República, essa realidade
e lidar com ela de maneira objetiva. Em absoluto não
cabe ao presidente satanizar categorias sociais sem
enfrentar a preliminar de como encaminhar uma solução
objetiva para os problemas da sociedade. Concretamente,
a preliminar de todas as preliminares é como
criar emprego para a grande maioria da população
que se encontra subempregada ou simplesmente desempregada.
É inegável que algumas corporações
dispõem de vantagens escandalosas. Mas é
importante reconhecer que os professores do sistema
público de ensino de primeiro, segundo e terceiro
graus têm sido gravemente prejudicados pelas
políticas governamentais desde a ditadura militar,
continuando com os governos civis e com o governo
atual, que se entregou gostosamente ao modelo neoliberal.
Portanto, quando o presidente está dizendo
o que disse, ele está simplesmente servindo
ou recitando uma diretriz do consenso de Washington.
E não está em absoluto revelando uma
visão de estadista sobre os problemas nacionais.
Aliás, ele não pode ser um estadista
porque o governo atual não dispõe de
um projeto nacional. Ao contrário, esse governo
instalou-se para resolver topicamente, ao acaso das
emergências, os problemas que vão surgindo.
JUO que o senhor
quer dizer com satanizar?
IanniAcho que tem de ser passada para
o público uma visão de conjunto para
não ficar nessa artimanha dos argumentos governamentais.
Um governo que vem a partir de movimentos sociais
está se dedicando muito apressadamente a satanizar
a atividade intelectual na universidade pública.
Portanto está contribuindo para favorecer a
privatização e o economicismo no primeiro,
segundo e terceiro graus, que é um item do
ideário de Washington, ou mais concretamente
uma exigência do Banco Mundial.
JUEm sua opinião,
quais seriam as conseqüências dessa postura
para o ensino superior público?
IanniOs governos militares e os governos
civis estão totalmente atrelados às
diretrizes do Banco Mundial, que desde os anos 60
e 70 começou a estabelecer favores financeiros
e tecnológicos mas, simultaneamente, passou
a impor exigências. É o Banco Mundial
que estabeleceu as exigências que estão
sendo implementadas no ensino público, como
o economicismo e a pesquisa e desenvolvimento. Desenvolvimento
do quê? Da nação, do povo? Não,
é do mercado, das corporações,
da economia capitalista. O que os governos militares
iniciaram os governos civis deram continuidade e este
governo, para decepção de grande parte
do eleitorado que votou no PT e no Lula, está
jogando a última pá de cal no projeto
nacional e no estado de bem-estar social que se havia
criado nas décadas anteriores à ditadura
militar.
JU Mas o que o governo
diz é justamente o oposto: que tem um projeto
nacional que outros nunca ousaram ter.
Ianni Todos estamos vendo que os americanos
estão jogando com a hipótese de que
o Brasil é o seu aliado preferencial na América
do Sul, e com isso ganhando a cumplicidade do governo
brasileiro e das elites brasileiras, no sentido de
fazer o jogo da Alca, com a hipótese de que
o Brasil poderia obter algumas vantagens em detrimento
das outras nações. A rigor, o que os
americanos propõe com a Alça na verdade
é uma redefinição da geopolítica
norte-americana na América Latina, e portanto
um realinhamento das nações latino-americanas
com a cumplicidade das elites brasileiras. Há
tempos que há uma cumplicidade das elites militares,
empresariais e alguns setores intelectuais com esse
jogo malicioso do governo americano, que faz de conta
que o Brasil é o aliado preferencial na América
Latina.
JU Em sua opinião,
o que teria levado o governo a adotar uma postura
inversa do que vinha pregando enquanto corrente ideológica?
IanniAcho que isso é comum a vários
partidos no Brasil. Eles não têm análise
do que está realmente acontecendo no país.
Na minha interpretação, desde 1964,
com a ditadura militar, e depois com os governos civis,
está sendo desmontado um projeto nacional que
era vigoroso. Embora não fosse o projeto dos
meus sonhos, porque era um projeto de capitalismo
nacional. Os militares, em função do
jogo americano da Guerra Fria, e depois os governos
civis em função das imposições
do FMI, do Banco Mundial e da Organização
Mundial do Comércio, trabalharam ativamente
o Consenso de Washington no sentido de desmontar o
projeto nacional. Pouco a pouco o Brasil se transformou
numa província do globalismo. Nos séculos
16, 17 e 18, o Brasil era uma província do
mercantilismo. Agora, no século 21, passou
a ser uma província do globalismo. E o presidente
pensa que é presidente de um estado nação.
Na verdade é o administrador de uma província
do globalismo. Mas ele não tem essa análise.
Eles estão jogando com a hipótese de
que, se o Brasil desmontar o seu projeto nacional
entrará no primeiro mundo. Isso é totalmente
enganoso. O exemplo do que ocorreu na Argentina, que
fez tudo isso um pouco antes do Brasil, é suficientemente
claro. É um desastre.
JU A que o senhor
atribui essa súbita atração pelo
globalismo?
IanniVou dar uma resposta que não
é acadêmica. O sensualismo do poder é
irresistível. O fascínio do poder e,
claro, a ilusão de que vai governar um estado
nação, induz os membros do governo a
crer que estão realizando uma tarefa meritória.
Na verdade estão contribuindo para que o país
se mantenha nesse estado, podendo até piorar.
Aliás, as corporações transnacionais,
não só norte-americanas, mas também
asiáticas e européias, escolheram o
Brasil como base principal de suas operações
na América do Sul. E esta é uma escolha
à revelia do governo e do povo. E uma escolha
que decorre da força que estas corporações
têm no cenário mundial.
JUAté que
ponto isso representa uma ameaça à soberania
nacional?
Ianni A soberania nacional acabou. Antes,
a soberania nacional era problemática. Hoje,
é uma figura abstrata. Qual a imagem mais evidente
do presidente, seja do passado (FHC) ou deste (Lula)?
São fotografias em salas de visita em várias
partes do mundo. Isso cria na opinião pública
uma ilusão de que existe uma nação.
Na verdade eles atendem os interesses das corporações
transnacionais, das organizações multilaterais
e da geopolítica do governo norte-americano
no mundo.
JU O senhor acha
que existe o risco de a sociedade cair numa grande
decepção?
IanniJá caiu. Mas o problema é
que a sociedade está tendo condições
muito limitadas de manifestação porque
a grande mídia está orquestrada com
o neoliberalismo. A grande mídia é diversionista.
Está havendo um processo de popularização
da imagem do Lula. A discussão sobre a Previdência
é conduzida satanizando os aposentados. De
repente, as pessoas que estão aposentadas nos
diferentes setores da sociedade são consideradas
como peso morto. Isso é uma loucura, uma barbárie.
Governantes dedicados a satanizar uma categoria social
porque já cumpriu suas tarefas. É o
reino da barbárie. Essa atitude da mídia
cria um estado de incerteza e de medo.
JU Há riscos
sociais nesse processo?
IanniA população brasileira
tem sido frustrada continuamente por reversões
causados pelos jogos do poder que são um desastre
para a população. Em 1945 havia um processo
de democratização que implicava numa
reconstrução do país depois da
ditadura do Estado Novo. Esse processo foi frustrado
por um golpe de estado. Em 1964, quando o país
estava numa tremenda ascensão democrática,
com conquistas sociais notáveis nos governos
de Juscelino Kubitscheck e João Goulart, as
elites militares associadas com o imperialismo deram
o golpe de estado. Depois, com a volta dos governos
civis, na chamada Nova República, há
também uma sucessão de frustrações.
E a maior de todas é esta, porque o atual governo
nasceu das lutas contra a ditadura militar e as injustiças
sociais. Então essa conjuntura é altamente
frustrante, com características diferentes,
mas semelhantes ao que ocorreu durante o golpe de
64 e o golpe de 45.
JU Como o senhor
analisa o discurso do presidente, quando ele diz,
por exemplo, que tem quatro anos para provar
que um torneiro mecânico pode governar esse
país com muito mais sabedoria do que ele já
foi governado?
Ianni Ele tem muitos motivos para fazer
essa afirmação porque ele também
foi satanizado devido à sua trajetória
política. Mas ele foi satanizado por ser um
símbolo das classes subalternas. É importante
lembrar que o PT e a liderança do Lula nasceram
da luta contra a ditadura militar e como uma reivindicação
das classes subalternas. Na medida em que se desenvolveu
o processo político, ele foi se ajustando,
negociando, acomodando. Não há dúvida
de que qualquer liderança política precisa
negociar. Mas o estado de espírito de muitos
que votaram no Lula é de uma profunda decepção,
porque nesse percurso o partido e o próprio
Lula largaram na estrada muitos compromissos. O comprometimento
crescente do governo com o neoliberalismo significa
o abandono de qualquer compromisso social, salvo na
retórica. Fala-se no Fome Zero, mas isso é
uma retórica vazia, porque o problema do país
não é dar um prato de comida para o
faminto, e sim dar emprego para as pessoas não
perderam a sua dignidade. Para que um governante saiba
o que é a dignidade dos humilhados e ofendidos,
dos desempregados, daqueles que vão receber
um prato de comida, é preciso ter uma visão
de conjunto que implica em ter um sentido de nação,
que não está se revelando no governo
atual.
JUMas a imagem do
presidente, principalmente no exterior, é muito
positiva.
IanniEssa imagem altamente colorida e
sonora tem a ver com a orquestração
do neoliberalismo. As corporações da
mídia são transnacionais. Por outro
lado, há setores da opinião pública
mundial que não estão bem-informados
sobre o que realmente está acontecendo. Estive
na Argentina recentemente e pude ver isso. Eles ainda
estão galvanizados pela imagem que se criou
no passado sobre o PT e o Lula. Eles ainda não
tomaram conhecimento de que a prática desse
governo não tem nada a ver com a sua história.
Estão apegados a uma imagem passada, que já
ficou anacrônica.
JUO senhor acredita
que essa lua-de-mel continuará por muito tempo?
IanniAcho que vai durar pouco. Aliás,
o discurso que o Lula fez no Rio Grande do Sul (Pelotas),
foi um discurso de alguém que já está
assustado com o terremoto no qual está metido.
Como já tive oportunidade de ouvi-lo em muitas
situações ao vivo nos tempos do ABC,
percebi que esse discurso feito no Sul revelava não
só aflição, mas também
alguns indícios de desespero. E a reação
é péssima, porque satanizar essa ou
aquela categoria social, culpar aqueles que levantam
objeções e tentar desmoralizar aqueles
que fazem alguma reflexão crítica, é
o pior caminho. O Genoíno (José Genoíno,
presidente do PT) está equivocado quando diz
que as críticas que a esquerda faz ao governo
atual são o mesmo que jogar água no
moinho da direita. Essa declaração é
maldosa, porque na verdade esse governo já
foi para a direita. Esse governo não é
mais um governo de esquerda. Foi uma promessa da esquerda,
mas não é mais de esquerda. Uma promessa
que não se cumpriu.
JU Como a esquerda
brasileira vai elaborar essa nova situação?
IanniA esquerda está demorando
para fazer uma análise objetiva sobre o que
aconteceu no mundo. Hoje o capitalismo entrou em um
novo ciclo de expansão em escala mundial. As
nações estão transformadas em
províncias do globalismo. Desde que se faça
uma análise objetiva sobre as forças
sociais que estão atuando em escala nacional
e transnacional será possível formular
uma nova política de esquerda. Caso contrário,
será uma política de nostalgia, sobre
idéias que eram muito bonitas e válidas
no passado, mas que já dançaram. O grande
problema é como caminhar para um diagnóstico
objetivo sobre a realidade contemporânea e como
desenvolver propostas. As classes sociais dominantes
no mundo estão altamente organizadas. A Conferência
de Davos, o G7, a OCDE, O FMI, o Banco Mundial, são
expressões de que as classes dominantes estão
orquestradas. E as classes subalternas estão
demorando a entender que esse quadro é novo.