Inspirado na novela A Interdição, de Balzac
(1799-1850), durante três anos o antropólogo
Alexandre Zarias vasculhou os arquivos do Palácio
da Justiça e cartórios de Campinas,
consultou processos, acompanhou outros em fase de
tramitação, além de participar
de audiências de interrogatórios e perícias
psiquiátricas. Ele queria entender como é
que se pode privar um indivíduo de exercer
certos direitos civis, como votar ou ter conta em
banco. É o que a justiça classifica
de pessoa interdita ou interditada, ou seja, aquela
que já não tem mais capacidade para
gerir seus próprios recursos, como receber
heranças ou os benefícios do INSS, por
exemplo.
O propósito do meu
trabalho foi tentar compreender como as instituições
família, justiça e medicina
discutem os significados da doença do indivíduo
que se pretende interditar. O grande problema da interdição
não é estudar quais são as doenças
que geram esse tipo de processo, mas sim analisar
a forma pela qual a família, a justiça
e a medicina compreendem, constroem e atribuem determinado
tipo de doença a uma pessoa, explica
Alexandre.
Ao todo, foram mais de mil registros
de interdições consultadas. Desse universo,
Zarias selecionou 100 processos, usando 40 para desenvolver
seu estudo. Sua investigação concentrou-se
em seis indivíduos três homens
e três mulheres. No estudo desses casos são
exemplificados os conflitos mais comuns entre a medicina,
a justiça e a família, a partir da história
de vida dessas pessoas classificadas como interditadas.
Em alguns casos, segundo o pesquisador,
existem conflitos entre a justiça e a medicina,
principalmente quando está em jogo a necessidade
ou não de proclamar a interdição.
Diz que o pedido para que a pessoa seja interditada
deve, sempre, partir de familiares ou do Ministério
Público. A interdição funciona
como uma ferramenta utilizada pela família
para que ela possa cuidar dos bens do interdito, como
receber os benefícios do INSS, por exemplo.
Caso contrário, esse benefício
não poderá ser concedido, diz
Alexandre.
Arquivamento O pesquisador é
autor da dissertação Negócio
Púbico e Interesse Privado: análise
dos processos de interdição, apresentada
recentemente no Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas (IFCH), sob a orientação da
professora Heloisa André Pontes. Segundo explica
Zarias, o processo de interdição compreende
três suposições: se o interditando
é incapaz para os atos da vida
civil; se ele é doente de fato e, por último,
nos casos em que a doença que apresenta
é a causa da sua incapacidade para desenvolver
qualquer tipo de atividade civil. Assim, durante
as três fases do processo (petição
inicial, interrogatório e perícia),
pode-se chegar a algumas imposições,
diz Zarias.
Por exemplo: o interditando
não é doente, e, portanto, é
capaz; o interditando é considerado
doente mas também é capaz; o interditando
é doente e, por isso, absolutamente incapaz
ou relativamente incapaz. Nessa última situação,
fica caracterizada a interdição. Nas
demais, o processo é arquivado e a capacidade
civil do indivíduo não sofre qualquer
modificação, isto é, a pessoa
não é interditada. Mas o pesquisador
explica que essas três imposições
variam conforme as bases processuais.
Pode-se concluir que na interdição
nem todo doente é incapaz, mas
todo indivíduo incapaz, total ou
relativamente, é um doente, argumenta
Zarias. Como é de praxe, antes de proferir
a sentença, o juiz deve ouvir o perito, que
pode ou não aceitar o seu parecer e decidir
pela interdição ou arquivamento do processo.
Em função do perfil dos indivíduos
que vão ser interditados, a justiça
e a medicina atuam basicamente de duas maneiras distintas:
como agências de encaminhamento (os interditados
já possuem histórico clínico
e necessitam de declaração de incapacidade
civil para o recebimento do INSS, para citar apenas
um exemplo); e como agências de controle. Nesse
caso, geralmente os interditandos não possuem
histórico clínico, pertencem a uma classe
social mais elevada e durante a tramitação
do processo é que a doença será
consagrada institucionalmente, ou seja, é
na justiça que a pessoa torna-se doente
, argumenta o pesquisador.
Embora a declaração
da interdição signifique uma supressão
de parte dos direitos civis, como votar, dirigir,
movimentar contas bancárias, não há
nenhum mecanismo legal que os impeça de realizar
tais coisas, ressalta Zarias. Isso significa
que a vigilância da vida da pessoa interditada
é exercida pela própria família.