Nunca pergunte ao adepto da arte digital qual programa
de computador ele utilizou para produzir uma obra.
Pode ser uma pergunta terrível do ponto
de vista do artista, alerta Emerson Freire,
que vem estudando as influências da tecnociência
na produção de imagens artísticas
contemporâneas. A tecnologia hoje disponível
permite copiar e difundir imagens digitais ilimitadamente,
sem perda ou deterioração, ou manipulá-las
até que não restem vestígios
originais, o que representa uma nova fase de produção
imagética.
No entanto, já não
se trata apenas de trocar o pincel por pixel,
salienta o pesquisador. É necessário
partir da tecnologia, questionando-a, transformando-a
e explorando-a, a fim de produzir novas relações
entre homens e máquinas, acrescenta.
Há artistas hoje que se encontram nesse estágio,
valendo-se de teorias e processos científicos
de ponta, para visualizar no computador, por exemplo,
objetos que não existem na realidade natural
e produzir imagens tão belas quanto fantásticas.
Assim, esses recursos imensos
levados ao campo das artes formam o pano de fundo
e moldam a pesquisa de Emerson Freire. Seu projeto
de pesquisa ficou entre os oito premiados pelo Itaú
Cultural instituto que firmou tradição
no fomento, formação e difusão
da cultura brasileira contemporânea ,
dentre 340 trabalhos inscritos na categoria Rumos
Pesquisa, criada este ano para estudos da relação
entre artes e mídias.
Mestre em política
científica e tecnológica pela Unicamp,
graduado em informática, o pesquisador inseriu
as artes no tema de doutorado, sob orientação
do professor Laymert Garcia dos Santos, do departamento
de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas. Se esta interseção de áreas
já soa estranha, o título dado ao projeto
parece ainda mais inusitado: Mapeando o Genoma
Artístico: As influências da tecnociência
nas expressões artísticas. Esta
metáfora parece bizarra embora, metáforas
nem sempre sejam inocentes , mas vem do solo
comum existente entre informática, genética
e arte, ou seja, o código que é
expresso em uma linguagem, justifica.
Freire explica que, no computador,
as combinações são obtidas das
primícias eletrônicas de corrente (ligado/desligado),
abstraídas para zeros e uns,
a linguagem binária. A engenharia genética,
por sua vez, redefiniu o corpo humano ao decifrar
o seu genoma, transformando-o em um software, uma
espécie de programa de computador cujos códigos
binários (genes) podem ser alterados
(ligados ou desligados) através de reações
químicas ou alterações de calor,
por exemplo. Já o artista que toma a tecnociência
como fonte de inspiração e realização
das idéias, trabalha com suas informações
codificando-as e expressando-as na linguagem artística
de sua escolha.
Muitas vezes, o artista
que recorre à edição de imagens,
por meio de ferramentas como Coreldraw ou Photoshop,
acaba simplesmente expondo mais o objeto técnico
que propriamente a criatividade. Os resultados tornam-se
homogêneos e previsíveis. É um
processo repetitivo, que segue a lógica do
mercado de gerar grandes disponibilidades, observa
Freire. A intenção, então, é
compreender melhor como se dá esse investimento
da aliança tecnociência/capital global
sobre as artes, a qual, por um lado, fornece temas
para reflexão e/ou novos materiais, possibilitando
estéticas novas e, por outro, procura gerar
uma visualidade padronizada, apesar da aparente diversificação.
Kawaguchi Daí,
o fato de o japonês Yoichiro Kawaguchi figurar
entre os principais personagens da pesquisa de Emerson
Freire. Ele subverte a lógica, é
um dos artistas mais originais na criação
de imagens animadas em computador. Normalmente, ele
próprio desenvolve o software, como o Morphogenesis
Model, que reproduz a forma e o ritmo de crescimento
das conchas dos moluscos e de outras espécies
submarinas da região onde mora. Na modelagem
e animação surgem formas de complexidade
crescente, chamadas de semi-orgânicas,
porque seguem princípios naturais de nascimento
e crescimento dos organismos vivos, informa
Freire.
Para Kawaguchi, o fato de
a linguagem binária computacional permitir
a manipulação dos bits que formam as
imagens digitais, fazem do computador o instrumento
ideal para promover a sinergia entre arte, ciência
e natureza. No software que ele criou há
uma auto-evolução da imagem, ela tem
vida própria e não pertence mais ao
artista. Seu desejo não era apenas a reprodução
de aspectos da fauna ou da flora, mas recriá-los
virtualmente. Ao invés de re-produzir, produzir,
reforça Freire.
Eduardo Kac
O brasileiro Eduardo Kac é outro artista que
serve de referência e contraponto para o pesquisador
da Unicamp. Kac manifesta sua arte por meio de fotografia,
telepresença, holografias, performances públicas
e robótica, entre outros recursos. Na área
da telepresença, um de seus projetos conhecidos
é o Ornitorrinco, um telerobô controlado
de longas distâncias, via conexão telefônica,
por várias pessoas ao mesmo tempo, as quais
recebiam um feedback visual em forma de paisagens
fixas ou em movimento. Na opinião do autor,
as pessoas experimentavam
um espaço remoto
inventado a partir de uma perspectiva que não
as suas próprias, suspendendo temporariamente
a base de identidade, a localização
geográfica e a presença física.
Eduardo Kac é o inventor
da holopoesia fundindo poesia com
holografia e um dos pioneiros da arte biotecnológica,
realizando diversas experiências artísticas
no campo genético. Ele causou polêmica
com Alba, uma coelhinha transgênica na qual
enxertou um gene extraído de uma medusa que
habita o oceano Pacífico. A coelha emite uma
luz fluorescente esverdeada quando é exposta
à luz ultravioleta, conta Freire. O artista
pretendia criar uma das primeiras quimeras do mundo
real, resgatando o mito grego da quimera um
animal formado pela junção de partes
de diversas espécies. Kac queria levar Alba
para casa a fim de domesticá-la, mas foi impedido
por colegas envolvidos no projeto, já que fora
do laboratório o animal poderia se reproduzir
gerando resultados imprevisíveis.
Caixa preta Emerson Freire terá
mais dois anos de pesquisa até defender sua
tese de doutorado. O prêmio do Itaú Cultural
significou, além de uma ajuda de custo durante
quatro meses, o acesso privilegiado ao acervo
catálogos de exposições nacionais
e estrangeiras, livros, fitas e à infra-estrutura
em equipamentos do instituto. No ano que vem, Freire
pretende entrevistar Kawaguchi e Eduardo Kac, entre
outros, dentro do objetivo principal de conhecer o
dia-a-dia da produção desses artistas.
Será como tentar abrir a caixa
preta, obter detalhes sobre o aprendizado do
artista em relação ao objeto técnico
e de como o transporta para suas obras. Assim, vou
procurar mapear um pouco desse genoma artístico,
isto é, decifrar o que puder do código
(gene) escondido por trás de sua criatividade.