O público e o privado
nos reassentamentos
Geógrafa avalia impactos
e consequências de remoção de famílias em Cubatão
O
reassentamento de populações que ocupam áreas de risco ou
de preservação ambiental, geralmente em moradias precárias
que dão origem às favelas, tem se constituído uma ação comum
adotada pelo poder público. As famílias são removidas de áreas
impróprias ou de ocupação ilegal para conjuntos habitacionais
construídos especificamente para recebê-las, situados junto
a bairros consolidados.
Apesar deste aparente benefício,
o reassentamento há muito tempo tem sido visto como uma política
pública problemática por gerar uma série de consequências
negativas para as populações envolvidas. Apesar dos estudos
técnicos que realizam e da consciência dos problemas envolvidos,
os promotores dessas iniciativas não os têm conseguido evitar.
Em contato com essa realidade
– com base em estudo da remoção dos habitantes do Jardim São
Marcos para o Jardim Real, na cidade paulista de Cubatão –,
a pesquisadora Fernanda Cristina de Paula constatou que as
opiniões dos moradores revelam-se antagônicas e discordantes
em relação ao reassentamento. Para ela, essas manifestações
estão relacionadas com suas experiências, idiossincrasias,
histórias de vida, e à forma de se relacionarem com o antigo
bairro e com o novo conjunto habitacional.
Diante desse quadro, pareceu-lhe inicialmente difícil estabelecer
parâmetros que permitissem avaliar a pertinência da política
pública adotada e o grau de sua aceitação. Ela constatou,
entretanto, que, além das idiossincrasias que envolviam as
opiniões, havia um ponto comum: todos se referiam à reestruturação
de suas vidas em razão do reassentamento.
Percebeu então que o problema
dessas populações estava nos aspectos negativos da reestruturação
de vidas, que levava à não-aceitação, ao desgosto, ao abandono,
à venda da nova residência, ao retorno a outras áreas de risco
ou à conformação de um conjunto de problemas sócioespaciais
no próprio local do reassentamento.
Fernanda colocou-se então algumas questões. Como prever as
consequências do reassentamento? Como evitar uma reestruturação
negativa da vida? Como se dá esta reestruturação? Que fatores
e processos a envolvem? Que componentes estão em jogo quando
moradores se manifestam a favor ou contra a iniciativa?
O estudo deu origem à dissertação
de mestrado “Constituições do habitar: reassentamento do Jardim
São Marcos para o Jardim Real”, orientada pelo professor Daniel
Joseph Hogan, falecido recentemente, e apresentada ao Departamento
de Geografia, do Instituto de Geociências (IG), na área de
Análise Ambiental e Dinâmica Territorial. Nele, a geógrafa
graduada pela Unicamp aborda impactos da mudança de residência
nessas famílias e analisa a política adotada para suas remoções.
Para ela, as consequências
dessas mudanças podem ser consideradas de antemão e o contorno
de problemas resultantes seria facilitado levando-se em conta
que tipo de habitar os moradores têm internalizado, o modo
como pensam esse habitar, desde que esse conhecimento seja
usado para o planejamento do novo espaço. Ela conclui que
esse caminho evitaria uma série de problemas gerados nos reassentamentos.
E acrescenta: “Falta a compreensão do que leva a pessoa a
gostar ou não de morar no novo local. Os parâmetros que os
promotores dessas iniciativas levam em consideração não são
suficientes. Esse é o questionamento que faço na dissertação.
Eu me sentiria muito gratificada e feliz se pudesse participar
dessas decisões e contribuir na escolha das soluções a serem
adotadas.”
Em relação a Cubatão, Fernanda
lembra que a expressiva industrialização do município levou
a terríveis impactos ambientais, minimizados por medidas adotadas
nos últimos anos, embora não totalmente eliminados. Quando
da instalação das indústrias, não foi planejada a parte essencial
da cidade e a consequência foi a instalação de bairros de
migrantes sobre os morros, nos mangues e a proliferação de
favelas tanto em áreas perigosas como naquelas que geram comprometimento
ambiental. Em 2006 se detectou que mais de 50% da população
da cidade vivia em áreas de risco ou em favelas, o que gerou
a adoção dos reassentamentos.
Quando a pesquisadora chegou
ao município, havia se consolidado o reassentamento do Jardim
São Marcos para o Jardim Real. Diante da constatação de que
essa mudança implicava em uma reestruturação da vida – na
medida em que muda o espaço em que a casa se situa –, adotou
um estudo que, além de permitir clarear os problemas daí advindos,
auxiliasse na reflexão e no planejamento desse tipo de política.
O trabalho
Como
em função do reassentamento as mudanças se processam no cotidiano,
nas pequenas e fundamentais atividades centradas na casa,
ela foi levada a considerar que o cerne da reestruturação
da vida está na articulação entre espaço, indivíduo e modo
como ele habita. Apoiada nas formulações sobre o sentido do
habitar discutida pelo filósofo Martin Heidegger, ela analisa
no trabalho o papel da casa, do bairro, da articulação entre
lugares privados e públicos e da apropriação do espaço como
fenômenos que compõem o habitar e que entram em xeque frente
ao reassentamento.
No Jardim São Marcos, os reassentados
habitavam residências isoladas e dispunham de quintal. Passaram
a morar em apartamentos em um conjunto residencial, construído
pela prefeitura, constituído por oito prédios de quatro andares,
dois pátios internos e um centro de convivência. Situado do
outro lado da cidade em relação ao bairro anterior, o novo
espaço é envolto por matas, mas próximo a um bairro consolidado.
Entre os moradores, ela encontrou
os que consideravam a saída do bairro como a morte, os que
se queixavam do aumento do gasto com transporte, da falta
de lugar para plantar e criar animais para a sobrevivência,
da perda de privacidade decorrente da aglutinação das moradias
e da ausência de espaços entre elas – e, até, os que se mostravam
a favor da remoção.
O trabalho de campo e as entrevistas
que realizou com moradores e funcionários da prefeitura a
levaram a concluir que a mudança compulsória determinava à
reorganização do trabalho, do lazer, da convivência com os
vizinhos e impunha um novo modus vivendi. Procurou entender
como essa alteração se processa, pois considera que a elucidação
da reestrutura da vida imposta pela mudança permite, no seu
entender, clarear as queixas e insatisfações e pode apontar
na direção de medidas que conduzam a mudanças sem traumas.
Fernanda enfatiza que o reassentamento
muda fundamentalmente o modo de habitar dessas populações
e isso ocorre porque muda o espaço e, consequentemente, as
ações e relações condicionadas por ele. Estudando como era
o espaço que habitavam e como é o atual, conseguiu equacionar
os problemas decorrentes do reassentamento.
Uma das primeiras questões
com que se deparou foi a mudança de casa para apartamento.
Foi aí que se propôs a discutir o sentido do habitar. Para
tanto se valeu das teorias de Martin Heidegger acerca do habitar,
em que o filósofo articula fenomenologicamente a relação entre
homem e espaço. Ela diz que o filósofo considera o habitar
como necessidade e intenção de moldar o espaço ao que é próprio
de cada um. A partir daí, ela questionou os moradores para
entender o que lhes fazia sentido – o que lhes era próprio
– na tentativa de caracterizar um próprio que dá certo, um
verdadeiro habitar.
Fernanda esclarece ainda que
a fenomenologia constitui uma forma de encarar como se produz
conhecimento. Segundo ela, todo o conhecimento que se tem
do mundo parte daquele adquirido no dia a dia e decorre da
experiência vivenciada diuturnamente. A fenomenologia, diz
ela, tenta resgatar esse conhecimento, que se dá na vivência
do cotidiano.
Os parâmetros
Com base nas idéias abstratas
de Heidegger e tentando trazê-las para o concreto, ela sistematizou
o significado do habitar em quatro elementos. Estes elementos
permitem compreender a articulação entre indivíduo e espaço
na ação de habitar, que é impactada pelo reassentamento e
constitui fonte de possíveis consequências negativas desta
política pública.
O primeiro dos quatro elementos
é o espaço habitado – casa e bairro – e consequentemente a
relação entre as pessoas em função de como esses elementos
são construídos.
Fernanda constata que “a mudança
para uma nova residência com morfologia espacial completamente
diferente da anterior obriga a um novo modo de agir, de ser
e de estar. A supressão do quintal é um exemplo disso. Para
muitos moradores, a consequência disto é tanto econômica –
horta e criação de animais que auxiliam a sobrevivência –
quanto existencial, pois entre os moradores uma parcela considerável
mantém ligação com a terra”.
O novo bairro, diz ela, é
constituído por sacadas, escadas, pátios internos, um bar,
pequena creche e centro comunitário. Do antigo perderam o
rio, a rua como espaço de “vaguear”, a mata, a ONG, a proximidade
de indústrias em que podiam conseguir pequenos serviços e
até determinados tipos de assistências.
O segundo elemento refere-se
ao estatuto que rege esses espaços. O maior bem da casa é
o fato de ser privada. A nova moradia traz, nesse particular,
muitos problemas e coloca os ocupantes em um morar que lhes
é totalmente estranho, que gera conflitos. A pesquisadora
diz que sem atenção e cuidado na construção de um privado
e público, o habitar perde sentido.
Ela explica que “o sentido
da casa não se completa se não se considera um elemento importante:
a articulação entre lugares privados e públicos. A liberdade
de ser e estar, que caracteriza a casa, só é possível porque
esta constitui o lugar privado por excelência. A casa se organiza
para resguardar o privado e se abrir de tal ou qual modo para
o público, permitindo a ligação com eles, mas nunca o cerceamento
da privacidade”.
Na manifestação de um morador,
não é vida digna viver amontoado em apartamentos, uns sobre
os outros. Rusgas entre vizinhos passam a ser comuns em razão
dos problemas na articulação entre o público e o privado.
O terceiro parâmetro adotado
considera o modo como se age em função dos espaços. Ela explica:
“As pessoas agem em função da casa e do bairro, tentando apropriá-los
ao seu gosto de ser e estar. A apropriação do mesmo espaço
não é a mesma para todos e depende da forma de ser de cada
um. Esses novos moradores foram compelidos a apropriar espaços
que não escolheram”.
Enfim, o quarto elemento levado
em consideração por Fernanda, diz respeito ao construir o
próprio habitar. A pessoa só estará totalmente satisfeita
com o lugar em que mora quando consegue construir o espaço
em função do que ela é. E isto se consubstancia na manutenção
de uma horta ou criação de animais no quintal, na relação
com os vizinhos e em tudo o mais que a pessoa desenvolve para
se sentir bem.
Fernanda lembra que, com a
mudança, os moradores do Jardim Real passam a ter o benefício
de um bairro consolidado ao lado do seu, onde podem usufruir
do comércio, da padaria, dos serviços públicos, da praça,
do rio. Mesmo depois de um ano de reassentamento, eles se
recusavam a frequentar esse bairro e preferiam ir para o centro
da cidade, pois se sentiam olhados com reserva, como favelados,
por parte dos moradores do bairro vizinho.
A pesquisadora esclarece que
nesse bairro consolidado os moradores já tinham se apropriado
do espaço e reagiam de alguma forma à ocupação dos que chegaram,
gerando um conflito surdo. O interessante, diz ela, é que
mesmo não contando no São Marcos com escola, posto de saúde
e comércio, as pessoas preferiam ter continuado lá. Os eventuais
ganhos advindos do novo espaço não os faziam esquecer as perdas.
Ao final da dissertação Fernanda
se pergunta: como construir a massa de residências necessárias
atendendo à imposição dos custos, do uso de solo, das restrições
de orçamento do poder público e, ao mesmo tempo, respeitar
o dado profundo do ser, qual seja, o sentido verdadeiro do
habitar? Ela acredita que “a atitude do levantamento da constituição
do habitar balize concepções do poder público e participe
como etapa do planejamento dos reassentamentos.”
Publicação
Dissertação: “Constituições
do habitar: reassentamento do Jardim São Marcos para o Jardim
Real”
Autora: Fernanda Cristina de Paula
Orientador: Daniel Hogan
Unidade: Instituto de Geociências (IG)
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