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Infância
e educação norteiam o material literário escrito e editado
por Monteiro Lobato (1882-1948), no Brasil, e Paul Faucher
(1898-1967), na França. Estes dois nomes da literatura infantil
produzida entre as décadas de 1920 e 1940 são abordados na
tese “O livro para crianças em tempos de Escola Nova: Monteiro
Lobato & Paul Faucher”, desenvolvida por Tâmara Maria
Costa e Silva Nogueira de Abreu, sob orientação da professora
Marisa Lajolo, no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)
da Unicamp. Uma das conclusões de Tâmara é que as duas analogias
possíveis entre os dois escritores estão nas representações
da infância que eles manifestam – em que a criança é um ser
inteligente e ativo –, e no projeto pedagógico vinculado ao
projeto editorial desses autores, com base nas concepções
modernas de infância e educação defendidas pelo movimento
da Escola Nova. A tese traz, em um de seus capítulos, uma
análise aprofundada das obras Reinações de Narizinho e Je
découpe, ambas de 1931.
Depois de investigar uma gama
de acervos, entre os quais o Centro de Documentação Alexandre
Eulálio (Cedae), outra conclusão de Tâmara é que não houve
um Monteiro Lobato na história da literatura infantil francesa,
assim como não houve um Paul Faucher na literatura para crianças
no Brasil. “Homens como Lobato e Faucher, cujas ações interferiram
na história cultural e transformaram definitivamente o livro
e a edição para crianças em seus países, são raros, tanto
pela originalidade de seus livros como pela modernidade de
suas ideias naquela época”, explica.
Estudar
a história dos livros de Monteiro Lobato e de alguns álbuns
de Faucher, segundo a pesquisadora, levou à constatação de
que entre eles não há semelhanças óbvias, nem de natureza
literária nem formal/material.
De acordo com o estudo, os
dois escritores contribuíram para desenvolver o mercado editorial
em seus países. Faucher foi o criador dos célebres Álbuns
do Père Castor, que a casa Flammarion edita desde a década
de 1930.
Segundo Tâmara, os dois autores
teriam sido influenciados pela Escola Nova, cujas ideias e
debates não se restringiam aos pedagogos, mas circulavam em
jornais e revistas dos quais participavam intelectuais de
várias áreas. A adesão dos autores ao movimento teria se dado
por meio dos livros que eles produziam como contribuição para
formar crianças mais críticas, com espírito de iniciativa
e reflexão. Faucher, segundo ela, além de ser editor da casa
Flammarion, era reconhecido como militante do movimento escolanovista.
Sua atividade mais marcante foi inventar álbuns modernos para
crianças, tendo dirigido a criação de 320 títulos em vida.
A
pesquisadora enfatiza que, na década de 1920, o Brasil tinha
uma massa de analfabetos e a França se recuperava dos prejuízos
da Primeira Guerra, ou seja, livros para crianças eram privilégio
de poucos. Já na década de 1930, com a expansão da escola
pública brasileira, as matrículas se multiplicaram no país
e a edição para crianças vivia o seu melhor momento, tanto
no Brasil quanto na França. Ela acrescenta que, comparadas
as tiragens dos dois títulos mais vendidos por eles na década
de 1930, História do Mundo para Crianças (Lobato) e Ribambelles
(Faucher), constata-se que ambos tiveram seis edições, com
tiragens médias superiores a 8 mil unidades. “O que não é
pouco para a época”. Foram impressos, segundo a pesquisadora,
50.084 exemplares no Brasil e 52 mil na França, dos títulos
mencionados, entre 1932 e 1940.
Tâmara acredita que o trabalho
de ambos teria sido uma referência importante na formação
cultural de uma geração. “No caso brasileiro, autores consagrados
da literatura infanto-juvenil já se declararam admiradores
e influenciados por Lobato, entre eles Ruth Rocha, Ana Maria
Machado, Tatiana Belinky, Bartolomeu Campos Queirós e Ziraldo”.
A pesquisadora lembra que a contribuição dos livros de Lobato
para a formação de uma geração de intelectuais consta da tese
de doutorado de José Roberto Whitaker Penteado, cujo estudo
foi publicado no livro Os filhos de Lobato. Mas ela prefere
não afirmar que hoje esses seguidores exerçam a mesma influência
que Lobato, por exemplo, teria exercido sobre seus leitores.
Ela ressalta que naquela época o único entretenimento para
crianças era o livro. “Hoje há uma enorme diversidade de suportes,
referências e influências formando os jovens escritores de
amanhã.”
A pesquisa permitiu concluir
que Lobato previa práticas de leitura individuais e Faucher,
ao contrário, previa práticas de leitura socializadas para
seus livros. Na opinião da autora, isso indica que “a leitura
era concebida de maneira diferente em cada escritor, embora
aos resultados esperados da prática possam ser os mesmos”.
Para ela, “Lobato parece entender que a leitura é um ato silencioso,
momento de crescimento interior, individual, e seus proveitos
não se dividem. Faucher parece considerar a leitura como uma
oportunidade de socializar conhecimentos, promover certa comunhão
de ideias e emoções por meio das atividades e leituras compartilhadas.
Tais visões estariam alinhadas com uma função mais pedagógica
da leitura, da parte de Faucher, e uma função mais estética
da leitura, da parte de Lobato.”
Neste trabalho, um longo estudo
sobre a década de 1930 mostrou que as tiragens iniciais para
obras de Lobato e Faucher são próximas, mas, ao longo dos
anos, os álbuns Père Castor atingem e mantêm tiragens mais
altas do que as de Lobato a cada edição, o que indica a existência
de um leitorado infantil mais numeroso na França do que no
Brasil, segundo Tâmara. Pelos dados reproduzidos nas tabelas
da tese, constata-se que “a escola brasileira ainda estava
em expansão, o analfabetismo e a evasão escolar ainda eram
altos, e a leitura era uma competência rara. A quantidade
de crianças que tinham concluído o primário somava menos de
5% da população de 10 a 14 anos no Brasil em 1940.” A pesquisadora
afirma não ter encontrado estatísticas detalhadas de escolaridade
na França dos anos 1930 para comparar.
Ainda de acordo com Tâmara,
as teorias científicas da época estariam presentes nas obras
dos dois escritores. “É justo reconhecer o valor da biologia,
da medicina e, sobretudo, da psicologia na concepção de infância
manifestada em seus livros. Em Faucher, há uma contribuição
direta da psicologia para a elaboração de seus álbuns, mas
em Lobato essas teorias perpassam a obra de forma indireta,
nas representações da criança e do leitor lobatiano.”
A
respeito da recepção dessas obras pela crítica da época, as
resenhas e os artigos veiculados no jornal O Estado de São
Paulo e na Revista do Brasil dos anos 1920 eram feitos por
colegas de Lobato e traziam muitas críticas positivas aos
seus livros infantis. Já nos anos 30, a imprensa pedagógica
católica, liderada pelos intelectuais do grupo de Alceu de
Amoroso Lima e da Comissão de Literatura infantil do Ministério
Capanema, criticava acirradamente a obra de Lobato. No caso
da França, a pesquisadora só teve acesso às opiniões manifestadas
nas cartas das centenas de professores primários, pedagogos,
intelectuais e artistas correspondentes de Paul Faucher. “Todas
as opiniões eram positivas e entusiasmadas pelos seus álbuns”,
afirma.
Para Tâmara, Lobato, como
escritor, e Faucher, como livreiro, adotaram soluções criativas
diante das dificuldades pelas quais a indústria de livros
brasileira e francesa passaram na década de 1920. Ela explica
que a situação era de grande instabilidade financeira, inflação
crescente, desvalorização da moeda, greves de trabalhadores
gráficos por redução de carga horária, aumento do salário
e melhores condições de trabalho, além de leis cada vez mais
protecionistas contra as importações e impostos exorbitantes.
Cartas trocadas entre Faucher
e brasileiros como Lourenço Filho, Gustavo Capanema e Rubens
Borba de Moraes foram encontradas pela pesquisadora nos arquivos
de Faucher, localizados no distrito francês de Meuzac. Tais
contatos poderiam ter feito com que os álbuns do escritor
francês fossem traduzidos e editados no Brasil, porém isso
não aconteceu. “Aquelas cartas nos revelaram ter havido uma
correspondência de ideias entre educadores e editores do Brasil
e da França, e, mais concretamente, uma troca de livros infantis:
os álbuns do Père Castor chegaram ao Brasil em várias remessas
entre 1937 e 1940, endereçados a Rubens Borba de Moraes, Lourenço
Filho e Gustavo Capanema.” Apesar de as cartas revelarem a
declaração de interesse, por parte de Rubens Borba, em adaptar
a obra para o português, e o fato de tê-las colocado em exposição
nas bibliotecas infantis de São Paulo em dezembro de 1937,
não se tem notícia da continuidade dessa correspondência –
como ocorreu com Lourenço Filho.
Em uma carta encontrada por
Tâmara, em 1940 Lourenço Filho agradece a Faucher pelos cinco
‘novos’ álbuns recebidos e lhe envia três livros da coleção
Biblioteca Infantil (Melhoramentos), dirigida por ele, pedindo
a opinião do editor francês. “Desconhecemos a razão pela qual
os álbuns de Faucher nunca chegaram até Lobato ou Octalles
– até onde sabemos. Tampouco se sabe por que Lourenço Filho
não demonstrou interesse em indicá-los para publicação pela
editora Melhoramentos, ou sugerir tradução/adaptação pela
Comissão de Literatura Infantil do governo”.
Tal desinteresse, na opinião
de Tâmara, podia estar ligado ao fato de que, livros dessa
natureza, “que promovessem mais atividades artísticas do que
textos literários, fossem considerados de natureza recreativa
em vez de educativa, não se adequando, portanto, às diretrizes
educativas do ministério Capanema – cujas bases estavam na
educação formal por meio da escola e nos livros de leitura
literária para a “formação” das mentalidades. Essa formação
excluía a pedagogia da autonomia e a moral laica dos livros
de Faucher”, diz Tâmara.
Artigos
Tâmara
Maria C. S. N. . Monteiro Lobato e Paul Faucher: uma história
comparada do livro infantil. Investigações (Recife), v. 20,
p. 37-53, 2007.
LAJOLO, Marisa. ; ABREU,
Tâmara Maria C. S. N. ; ALBIERI, Thaís de Mattos ; CHIARADIA,
K. N. ; GENOVA, M. B. ; MENDES, E. R. ; ROCHA, Jaqueline N.
; SILVA, Raquel Afonso da ; ZORZATO, Lucila Bassan . A Chave
do Tamanho: uma guerra de verdade e uma chave de mentirinha.
Projeto História (PUCSP), v. 32, p. 369-381, 2006.
Publicação
Tese: “O livro para crianças em tempos de
Escola Nova: Monteiro
Lobato & Paul Faucher”
Autora: Tâmara Maria Costa e Silva Nogueira de Abreu
Orientadora: Marisa Philbert Lajolo.
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)
Financiamento: Fapesp e Capes
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