| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 350 - 5 a 12 de março de 2007
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Violência é abordada por documentários premiados,
alguns considerados obras-primas do gênero

Cenas reais de um Brasil real

A jornalista Maria Beatriz Colucci, autora da tese: filmes têm forte ligação com o contexto histórico (Fotos: Mário Luna/Divulgação)Os últimos anos vem ocorrendo um boom do cinema documentarista no Brasil. É o cinema documentando a história, e talvez trabalhando os temas de forma menos apressada e superficial que a televisão, menos etérea que o rádio, mais impactante que o jornal, menos diluída que a internet e com maior repercussão que os livros. A superação de modelos e a renovação da linguagem, a cada produção distribuída no mercado, asseguram o vigor dos documentários contemporâneos.

A violência urbana, um dos problemas mais candentes do Brasil atual, tornou-se tema de filmes premiadíssimos, alguns apontados como obras-primas do gênero e merecendo a atenção dos pesquisadores da academia. Quatro deles – Notícias de uma Guerra Particular (1999), O Rap do Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas (2000), Ônibus 174 (2002) e O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003) – foram objetos de estudo da jornalista Maria Beatriz Colucci, em tese de doutorado defendida no Departamento de Multimeios do Instituto de Artes (IA) da Unicamp. A tese, intitulada Violência urbana e documentário brasileiro contemporâneo, teve a orientação do professor Adilson José Ruiz.

“A grande expansão do cinema documentarista, não apenas em termos de produção como de consolidação dos espaços de exibição, levou-me a investigar o que esses filmes estavam abordando”, explica Beatriz Colucci. Ao identificar o número significativo de filmes que faziam um recorte sobre a violência urbana, a pesquisadora dirigiu o foco para esta temática, chegando às quatro obras acima mencionadas depois de uma viagem panorâmica pela produção nacional.

Na opinião de Beatriz, os filmes selecionados têm forte ligação com o contexto histórico em que foram produzidos e, tomados em conjunto, compõem uma etnografia da violência urbana no Brasil do final do século 20 e início do século 21, mesmo que o termo etnografia seja usado na tese de forma mais aberta, não restrita ao trabalho antropológico. Ao mesmo tempo, ela procurou analisar as relações midiáticas apresentadas, as formas de negociação estabelecidas entre documentaristas e documentados e a aproximação do documentário à idéia do filme híbrido que incorpora explicitamente os recursos dramáticos do cinema de ficção.

Imagem de Ônibus 174: drama transmitido ao vivo pela tevê é recontado com profundidade (Fotos: Mário Luna/Divulgação)“Não me propus a apresentar uma crítica de cada filme, pois seria um trabalho praticamente sem fim: quanto mais contato com uma obra, mais detalhes surgem. Também não pretendi considerar os filmes como um modelo para analisar a violência urbana”, ressalva Beatriz Colucci. “Apenas busquei destacar elementos presentes nas obras que evidenciassem o recorte feito”, completa.

A guerra no morro - Notícias de uma Guerra Particular, dirigido por João Moreira Salles e Kátia Lund, retrata o conflito entre a polícia e os traficantes do morro da Dona Marta, no Rio de Janeiro, e o cotidiano dos moradores sob o fogo cruzado. Foram dois anos colhendo depoimentos, entre 1997 e 1998, período marcado por uma repressão violenta aos traficantes nas favelas cariocas. “A repressão culminou na prisão e na morte de grandes lideranças e desorganizou todo o comando do narcotráfico, o que levou à situação que estamos vendo hoje”, diz a pesquisadora, referindo-se às ações que agora são organizadas de dentro dos presídios e aos “meninos do tráfico” que protagonizam atos de puro terror.

“É um filme que influenciou a linguagem dos demais e que traz muito desta etnografia da violência urbana, por causa das situações retratadas”, acrescenta Beatriz. Notícias de uma Guerra começa com imagens da queima de drogas apreendidas e passa a entremear as vozes dos policiais, dos traficantes e dos moradores, como das crianças que guardam na ponta da língua as marcas e os modelos das armas usadas pelo tráfico. Ou do garoto de 10 anos que sente frisson por viver perto da morte e do policial que se vangloria por matar.

Vemos e ouvimos ainda sobre o treinamento na corporação e as investidas na favela, onde os traficantes, armados até os dentes, postam-se à espreita. Menores recolhidos na casa de regeneração, que relembram como começaram a vida no crime. Traficantes que tentam uma fuga debaixo de balas. O enterro do policial, o enterro do traficante. O experiente capitão desesperançado – “A polícia é o único braço do Estado que sobe o morro” – que se confessa cansado do confronto.

Jovens mascarados de O Rap do Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas: justiceiros no subúrbio do Recife (Fotos: Mário Luna/Divulgação)O próprio chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, delegado Hélio Luz, afirma que a polícia é corrupta e que a repressão serve apenas para manter uma sociedade injusta. “Todos os discursos acabam convergindo e transmitem a mesma mensagem”, observa Beatriz Colucci, acrescentando que o diretor Moreira Salles obteve do chefe da Polícia o acesso a locais nunca antes filmados, como o depósito de armas da corporação. “Não fosse o contexto do Rio na época, creio que esse filme não teria sido realizado como foi”.

A morte ao vivo - Em 12 de julho de 2002, o ex-menino de rua Sandro do Nascimento seqüestrou um ônibus na zona sul do Rio de Janeiro e fez 11 reféns, em pleno dia. A partir do cerco armado pelas viaturas da polícia e da mídia, foram quase cinco horas de negociações, com armas e câmeras apontadas para o ônibus. Dois tiros ressoaram ao vivo pelo país: do soldado que mirou em Sandro mas atingiu de raspão a professora Geisa Gonçalves, e o disparo de Sandro, que estava perto demais para errar e matou a refém que lhe servia de escudo. As emissoras não registraram o que aconteceu dentro do camburão, do qual o seqüestrador, dominado vivo, saiu morto por asfixia.

“No documentário Ônibus 174 destaquei as relações midiáticas, já que o diretor José Padilha partiu principalmente das imagens de arquivo das emissoras que filmaram o seqüestro”, explica Beatriz Colucci. O diretor, no entanto, não se limitou a reeditar as imagens do drama transformado em fenômeno de audiência. Se ficasse nisso, o filme serviria apenas para acentuar a comoção pela violência contra a professora e a intolerância para com o bandido, cujas circunstâncias da morte foram encaradas com desdém.

“As reportagens televisivas não oferecem espaço para aprofundar os assuntos”, afirma a pesquisadora. Padilha, ao contrário, contou com muito mais tempo e com instinto jornalístico para buscar as razões que levaram Sandro a cometer aquele crime, examinando documentos oficiais, colhendo depoimentos de parentes e companheiros, reconstruindo a história de vida do seqüestrador. Fica-se sabendo, então, que Sandro foi um dos sobreviventes da chacina da Candelária e como um típico menino das ruas transforma-se em bandido.

“Além de voltar no tempo, Padilha retrabalhou o material jornalístico de forma interessante, carregando as imagens com uma intensidade ainda maior. Há uma aproximação com a estética do reality show”, compara Beatriz Colucci. Em uma das cenas mais marcantes, Sandro enfrenta as câmeras da televisão e ameaça: “Isso aqui não é filme de ação!”.

O músico e o matador – O Rap do Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas (2000), dirigido por Paulo Caldas e Marcelo Luna, gira em torno de dois personagens reais que vivem o mesmo universo das favelas do Recife. Garnizé, 26 anos, toca bateria na banda de rap Faces do Subúrbio, exibe tatuagens de Malcolm X, Luther King e Che Guevara, e é líder comunitário em Camaragibe. Helinho, 21 anos, um justiceiro que tem simpatizantes na comunidade e apelidado de O Pequeno Príncipe, é acusado de matar 65 bandidos – as “almas sebosas” – em Camaragibe e em bairros suburbanos da capital pernambucana.

“Alguns documentários se estruturam quase como uma reportagem, mas O Rap do Pequeno Príncipe tem cenas que são ficcionais, produzidas para acentuar o discurso dos personagens”, informa Beatriz Colucci. A imagem de um revólver sendo disparado para o alto, por exemplo, enche a tela enquanto Garnizé conta como conheceu o amigo Helinho e como ele matou o meliante que o assaltou. Para a pesquisadora, este documentário se destaca por uma proposta de renovação de linguagem, sendo o filme mais apoiado no hibridismo e na fragmentação, marcas do cinema contemporâneo.

“Além disso, diferentemente dos outros filmes, que fazem uma representação estigmatizada da favela como espaço de exclusão ocupado apenas por marginais, este documentário mostra como os moradores comuns levam a vida: a roda de amigos, o futebol dos domingos, o dominó, as festas religiosas, o baile funk, o trabalho social”, conta Beatriz. É o rap, segundo a pesquisadora, que dá sustentação ao discurso, como na cena de um almoço com os integrantes do Faces do Subúrbio e do Racionais MC’s, que falam sobre a sua música e a violência.

No presídio, Helinho lembra como matou as “almas sebosas” e conta com o coro de jovens mascarados, também justiceiros, que narram suas proezas. A mãe culpa as más companhias pelo destino do filho e pede perdão pelos crimes. Um velho carro de som percorre as ruas de Camaragibe, pedindo aos populares que assinem um abaixo-assinado pela libertação do matador. “Mas Helinho já morreu”, informa Beatriz.

Do cartaz de O Prisioneiro da Grade de Ferro: câmera é passada aos detentos para registrar a realidade dentro das celas (Fotos: Mário Luna/Divulgação)A vida nas celas – O Prisioneiro da Grade de Ferro, de Paulo Sacramento, traz imagens bastante incomuns, se não inéditas, em que os detentos, dentro das celas, mostram sua técnica para fabricar cachaça, montam trouxinhas de maconha, exibem improvisadas armas brancas, fazem confidências sobre sexo e depõem contra a comida, a sujeira, a superlotação e o atendimento médico infame. Menos privadas, mas igualmente raras, são as cenas do pagode e do rap, das orações, das visitas e do jogo de futebol.

Como o diretor conseguiu aquelas imagens e depoimentos reais, possíveis apenas de encenar em filmes de ficção? “Paulo Sacramento promoveu um workshop com os detentos do Carandiru e durante meses uma equipe ensinou a eles o manejo da câmera e os detalhes de iluminação e de fotografia. Assim, o diretor teve acesso a uma realidade mediada pelos próprios personagens”, explica Beatriz Colucci.

Os presos, portanto, são co-autores do documentário. Além disso, o espectador fica sem saber onde começam e terminam as imagens produzidas pelos detentos e pelo diretor. “Todo documentário é fruto de uma negociação entre documentarista e documentado, mas aqui a negociação é muito mais evidente por causa de um procedimento adotado pelo diretor. Ele simplesmente diluiu a sua voz, misturando-a com as dos personagens e dispensando o papel de mediador que existe na maioria dos filmes”, observa Beatriz.

As filmagens de O Prisioneiro da Grade de Ferro ocorreram um ano antes da implosão do Complexo Penitenciário do Carandiru. A abertura do documentário é simbólica, com as imagens da implosão rodadas da frente para trás: uma espessa nuvem de fumaça enche a tela, mas vai se dissipando ao tempo em que se erguem paredes e grades, até que o Carandiru reaparece imponente, a fim de que Paulo Sacramento mostre o que acontecia dentro dele.

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