LUIZ GONZAGA
BELLUZZO
A o idealizar a Unicamp, Zeferino Vaz preocupou-se em montar equipes que correspondessem a um projeto de universidade que tivesse qualidade acadêmica e estivesse comprometido com os problemas do Brasil e do mundo do seu tempo. Ele imaginou o Departamento de Planejamento Econômico a partir da idéia de que era preciso se re-estudar o Brasil, repensar a situação econômica e social brasileira, por meio de paradigmas que se distinguissem das escolas de economia e de ciências sociais então existentes. Zeferino apostou num grupo de jovens economistas que tinham a matriz teórica e analítica constituída pelo pensamento da Cepal, a grande escola de pensamento latino-americana.
A concepção de Zeferino era a de uma universidade muito voltada para a pesquisa. Preferiu montar a universidade em cima daquilo que ele considerava ciências básicas, fundamentais. Ele nos ensinou que a questão central era escolher corretamente os professores. Zeferino valorizava muito o que se convencionou chamar – com o perdão da má palavra – de capital humano da universidade. Para ele, isso tinha um peso muito maior do que as instalações físicas. Estava mais preocupado com o software do que com o hardware.
Nós trabalhamos muito próximos de Zeferino, que aqui chegou depois de uma experiência muito negativa na Universidade de Brasília. A Unicamp, em 1967, não era aceita por parte do establishment político e acadêmico. Acredito que nós demos uma contribuição, por mais deselegante que seja escrever sobre isso, quando fomos convidados para assessorar Dílson Funaro, em 1969 e 1970. À época secretário estadual, Funaro se interessou pela Unicamp. A situação fiscal do governo era muito boa, e o Dílson foi justo com a Unicamp e com o Zeferino, o que permitiu que fosse desencadeado o processo de construção do campus; os recursos financeiros começaram a chegar.
Voltando à história. A partir de 1967, o Departamento de Planejamento Econômico, que foi a origem do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, começou a construir o seu projeto, nos barracões da rua Culto à Ciência. A origem dos professores, a despeito de todos serem cepalinos, era muito diferente – uns tinham formação em direito e ciências sociais na USP, outros na faculdade de ciências econômicas da UFRJ, alguns tinham vindo de outras escolas. Mas todos tinham em comum o fato de terem se interessado pelas questões do desenvolvimento.
Nos anos subseqüentes, o trabalho se concentrou em duas linhas de pesquisa: nas transformações da economia capitalista ocorridas no século XX (na realidade desde o século XIX). Começamos a estudar as experiências de desenvolvimento comparadas. Passamos também a fazer uma rediscussão crítica do próprio paradigma cepalino em confronto com as teorias do desenvolvimento então em voga. A linha de pesquisa do instituto se concentrou em torno dessas questões. Isso nos levou a participar intensamente, já desde o início da unidade, do debate sobre as políticas públicas e as políticas econômicas no Brasil.
Uma boa parte dos professores, a despeito da situação política bastante restritiva, controlada de perto pelo regime militar, participou desse debate a partir de uma atuação no partido de oposição da época, o MDB. Isso fez com que muitos se tornassem, já nos anos 70, assessores do presidente do PMDB, Ulysses Guimarães. Nessa condição, produzimos dois programas econômicos para o partido, que foram na época amplamente debatidos: o “Constituinte com Anistia”, e, depois, o “Esperança e Mudança”.
Nós também começamos a assessorar os movimentos empresariais que, na verdade, reclamavam mudanças na política econômica, e que foram se colocando politicamente à margem do regime militar. Participamos da criação do Fórum Gazeta Mercantil, que produziu, em 1977, o chamado “Documento dos Oito”, programa que pedia a aceleração da abertura política e mudanças na política econômica. Isso foi conduzido por professores da Unicamp, a partir dos debates acadêmicos travados na universidade.
Cabe ressaltar que o trabalho intelectual desenvolvido no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, pelos professores fundadores do DEPES, sempre foi coletivo. As teses foram discutidas coletivamente, tanto as de doutoramento como as de livre-docência. Havia um ambiente de debate muito intenso dentro do instituto, e as teses foram todas feitas em torno desses dois temas: o desenvolvimento do capitalismo contemporâneo e a situação da economia brasileira nesse processo. Nenhuma das pesquisas, na verdade, escapou desse marco.
Isso é o que o pessoal denomina, às vezes de forma exagerada, de o “pensamento da Unicamp”. Precisamos ser mais modestos. O que nós temos é uma linha de investigação que singularizou, ao longo da história, o Instituto de Economia. Essa linha, digamos, mais influenciada pelo paradigma da economia política, da história econômica e social, nos levou ao debate público.
Na verdade, até hoje, os vários núcleos do Instituto de Economia continuam desenvolvendo essas linhas de pesquisa, levando em conta que aquilo que fizemos no passado é insuficiente para registrar as mudanças que ocorreram mais recentemente. Como a nossa abordagem é – e sempre foi – histórico-teórica, o esforço de revisão deve ser permanente. Não cristalizamos uma matriz teórica definitivamente, a não ser a orientação geral de que a economia é uma ciência histórica e social. Portanto, a teoria está sempre sujeita aos efeitos e às influências da mudança nas condições em que ocorre a vida econômica. Rejeitamos essa idéia de que nós temos uma matriz teórica imutável, a partir da qual possam ser explicadas todas as transformações que ocorrem no capitalismo e na sociedade contemporânea.
Sob essa orientação, nós – e os professores que ficaram – mantivemos essa linha, o que inevitavelmente dá vitalidade acadêmica. Muitos receberam reconhecimento internacional. Estamos sempre atentos ao que está ocorrendo no mundo; procuramos dividir de forma equilibrada a nossa atividade entre a atividade puramente acadêmica – e a teórica – e os trabalhos de economia aplicada.
Estivemos também presentes na reorganização da vida sindical brasileira, o que acabou se transformando numa atividade normal do instituto a partir da criação do Cesit. Desde o início tivemos uma relação muito próxima dos trabalhadores. Participamos na condição de assessores, por exemplo, da reunião da 1ª Conclat, em 79, em Niterói, na qual foram definidas as linhas de orientação para o rearranjo da estrutura sindical brasileira.
Procuramos manter, da mesma forma, nossa presença nos meios de comunicação. É preciso que os acadêmicos participem do debate público de uma maneira clara. Nem sempre os problemas podem ser tratados de uma maneira simplificada, mas o debate faz parte da obrigação do intelectual, principalmente aquele que trata de questões que atinjam diretamente o interesse público. Isso precisa ser feito com responsabilidade. Nós mantivemos essa orientação de não só produzir as teses e os trabalhos acadêmicos, mas também de difundi-los de uma forma eficaz, por meio da imprensa. Hoje, existe um conhecimento razoável do que seja a visão dos economistas da Unicamp.
A Unicamp hoje tem um peso muito importante na produção de conhecimento. Se essa produção pudesse ser medida per capita, ela seria considerada a mais produtiva das universidades brasileiras. A Unicamp foi criada sempre dentro do espírito de rigor acadêmico e, ao mesmo tempo, de relação com a sociedade mediante a participação no debate público. Esse foi oespírito com o qual Zeferino criou a Universidade. Ele foi além. Conseguiu protegê-la durante a ditadura militar, impedindo que os professores fizessem política dentro da universidade, mas incentivando a participação no debate público. Zeferino soube manter esse equilíbrio importante. Esse espírito foi preservado. E a Universidade que completa 40 anos tem uma grande participação na produção de conhecimento no Brasil.
Luiz Gonzaga Belluzzo é professor
aposentado na Unicamp.