| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 339 - 2 a 8 de outubro de 2006
Leia nesta edição
40 Anos
40 Anos, ano a ano
Reitor Tadeu Jorge
Roberto Romano
Vanguarda das decisões
Artigo: Luiz Gonzaga Belluzzo
Ciência que gera riqueza
Metas institucionais
A cápsula do tempo
Excelência
Artigo: Carlos Eduardo Berriel
Avanço na pesquisa
Artigo: Francisco Foot Hardman
Pós-graduação
Artigo: Ricardo Antunes
Extensão
Plano Diretor
Artigo: José Roberto Zan
Música Popular
O velho Zefa
 

12-13

A cápsula do tempo

Um conto de EUSTÁQUIO GOMES

Na manhã de 5 de outubro de 2066, dia, mês e ano do Centenário da Universidade de Campinas, umas oitenta pessoas juntaram-se no saguão da antiga biblioteca central, agora um centro de preservação bibliográfica, para presenciar a exumação de uma urna enterrada ali setenta e cinco anos antes. Ninguém podia imaginar que naquele mesmo dia, e antes mesmo que o conteúdo da urna fosse examinado, o artefato de vidro desapareceria misteriosamente para ser recuperado um mês depois, em circunstância dramática, para não dizer grotesca.

A urna, uma caixa com aparência de aquário, quadrada e não muito grande, jazia a um metro de profundidade rente ao pilar principal do saguão, e apresentava bom estado de conservação. A cortiça que revestia as paredes da cova cumprira bem o seu trabalho de prevenir os movimentos de expansão e retração do vidro. Não havia sinal de bactérias e o material contido na caixa (348 cartas “endereçadas ao futuro”, duas fitas cassete com imagens de época e alguns papéis de caráter institucional) estava perfeitamente íntegro. O reitor adiantou-se, desdobrou uma página que tirou do bolso da jaqueta e leu:

Esta urna viajou três quartos de século para chegar até nós, para nos trazer, do imaginário daqueles que nos precederam, alguma coisa dos sonhos do mais turbulento dos séculos. Agora que menos de três décadas e meia nos separam do fim de um outro século, é instrutivo refletir sobre o que esperavam de nós aqueles homens e aquelas mulheres do século da bomba, dos Beatles, da cinema, da televisão e dos primórdios da rede mundial de computadores, que nessa época ainda era chamada de internet. Presos a sua realidade contingente como estamos presos à nossa, esses personagens de um tempo findo, cujo óvulo e cujo sêmen guardavam o segredo de nossas vidas, quiseram expressar a angústia de sua finitude projetando em nossa direção as notícias de sua época, não as que constavam dos jornais impressos, mas as que compunham sua vida cotidiana. Enquanto as gerações de nosso século promoviam incursões aos recônditos do espaço e da mente, esta urna explorava as possibilidades de sua própria viagem, imóvel e ao mesmo tempo veloz, rumo ao coração do tempo. E, tendo finalmente aqui chegado, une os fios soltos de duas épocas separadas pelo calendário, mas na verdade jungidas como as extremidades de um arco voltaico estendido sobre a história.

Não era hábito do reitor ler discursos. Gostava de improvisá-los e o fazia muito bem. Daí a estranheza do público, a começar pelo timbre anacrônico da fala. Mas o equilíbrio voltou ao saguão quando o reitor tornou a dobrar a página e explicou que o que acabara de ler era um diversionismo literário de um certo Sidraque Matias, jornalista que esteve a serviço da universidade entre 1982 e 2010, redigido com a vaga esperança de que, justamente, fosse lido no ato da delacração da urna. Junto desse fragmento foi encontrado um relato da cerimônia de lacração, num tom que cheirava a apontamento de diário.

Francisco Borges, o autor da ilustração, é professor da Faculdade de Engenharia Civil da Unicamp. Atuou como ilustrador para publicações como Folha de S. Paulo e Brasil Mulher. Hoje, ilustra o jornal da Associação de Engenheiros e Arquitetos de Limeira.

Iniciadas as festas, dissipados os primeiros fogos e a sessão solene do Conselho, descemos em comitiva para lacrar e sepultar a urna co’as cartas ao futuro. O reitor à frente, marchamos entre as árvores da grande praça do Ciclo Básico, bordejamos o teatro de arena e entramos no saguão da Biblioteca com um ar de soldados da história. Lá encontramos à nossa espera a diretora da bibliotecária Leila Mercadante ao lado do vidreiro José Carlos Finezi, que projetara e construída a urna, e dois pedreiros. Também estavam lá um repórter do jornal da cidade e uma equipe de TV. No pilar central do saguão já estava afixada a placa de bronze que eu pessoalmente mandara fundir, com os dizeres:

CÁPSULA DO TEMPO
Lacrada em 5 de outubro de 1991
pelo Reitor CARLOS VOGT.
Situada na base do pilar em caixa de concreto de 60x60x50cm com
indicador externo em U registrando
o eixo vertical da Urna.

No princípio a cerimônia pareceu ligeiramente surreal por sua semelhança com um enterro de verdade no qual o orador, por chalaça, fizesse um discurso de batismo de navio. Levado pela intuição, Vogt falou de improviso, desprezando as folhas que trazia no bolso do paletó. Fez bem, pois logo percebeu que a ocasião não era para formalidades. Teve a gentileza de mencionar meu nome – “Sidraque Matias, o autor da idéia de mandar uma mala-posta ao futuro” –, concedendo-me o privilégio de iniciar os preparativos para a lacração. Com a ajuda do vidreiro depositei na urna, tirando-as de um saco, as centenas de cartas que haviam chegado de todo o país, enviadas por almas sonhadoras ou místicas que leram a notícia nos jornais e esperavam encontrar no futuro interlocutores mais gentis que seus contemporâneos. Depois o vidreiro encaixou a tampa na caixa e lacrou-a. Por um diminuto orifício sugou o ar que havia lá dentro com a ajuda de uma bomba manual. Em seguida o orifício também foi lacrado. Por um trançado de correias a urna foi baixada ao fundo. Correu-se a laje de concreto e o resto do serviço os pedreiros fizeram a sós, quando já todos, exceto o câmera da TV (a repórter ensaiava sua fala circulando pelo saguão), já tinham se retirado. Antes, porém, houve tempo para brincadeiras. Vogt, fazendo uso de seu humor cáustico, convocou todos os presentes para a delacração da urna dali a três quartos de século. Coincidência ou não, nesse momento o saguão foi varrido por uma lufada de ar frio que levantou abas e farpelas. Isso deu ao riso uma ressonância funesta e remota. Quando saímos o vento e o chuvisco fustigavam os flamboyants, mas na barra do horizonte ainda havia sol.

Outros papéis de Sidraque (né 1952) foram encontrados no fundo de uma caixa no Centro de Memória (deixados ali por acaso ou esperteza do escriba, que, parece, tinha verdadeira obsessão com o tempo metafísico), como por exemplo uma folha solta onde se ficava sabendo que “para Borges o tempo é uma dimensão imóvel dentro da qual se movem os homens e as coisas, palavras que um humorista tupinambá traduziu malevolamente em linguagem derrisória, ou seja, que em princípio não existe o tempo, mas apenas o passar do tempo.”

Parece não haver dúvida de que essa anotação foi feita sob o influxo de uma discussão que se deu na noite do mesmo dia, durante uma recepção na casa do pintor Bernardo Caro, da qual Sidraque deixou registro. Deu-se que, imbuído do espírito do tempo (zeigteist, foi a palavra dita) e mais ainda do cheiro de paella que vinha da cozinha, um filósofo designado como X. (possivelmente Rubem Alves) trouxe o tema da urna ao plano metafísico. Bergson, disse X., desdenhava as caixas de lembranças que conservam fragmentos do passado. Bergson estava errado, prosseguiu, justo ele que dedicou toda a sua vida a defender o primado da intuição sobre a dedução. Se a urna tinha a propriedade de viajar no tempo sem se deslocar no espaço, como dissera Vogt em seu discurso, havia nisso interesse filosófico e até científico. Sempre havia alguma coisa de revelador numa caixa que sai de um século e entra em outro. No inconsciente da geração que estava predestinada a romper a caixa dali a três quartos de século ainda estaria presente a fórmula mágica do “abre-te Sésamo”. Seres imaginários podem nascer do móvel de marchetaria, disse X. citando Poe. De fato era possível ver no cosmorama da caixa viajora o passar das gerações, a sucessão dos meses, das estações e de lustros inteiros com o seu espetáculo de catástrofes, tragédias e revoluções sanguinolentas, mas também de espantosas revelações que depois se tornaram rotineiras. Estamos no reino do devaneio, mas também naquela brecha do tempo onde se dá a fusão de presente, passado e futuro, concluiu X. Ao ouvir isso, um físico que Sidraque cognomina Y. (seguramente, César Lattes) diz que era obrigado a discordar de X. e, pela primeira vez na vida, concordar com a besta do Bergson. Quem abrisse a caixa no futuro olharia com frieza e desconfiança o seu conteúdo, disse, tanto mais que estará distante das paixões das cartas e dos ressentimentos e vaidades do tempo que elas representam (“se é que essas cartas representam o nosso tempo”, disse). Além disso a caixa partia de um mundo já excessivamente documentado, saturado do zumbido de todos os hertz, bits e bytes do vigésimo século d.C., não havendo nela o esperado interesse salvo se contivesse a fórmula do elixir da juventude, que é o que todos perseguem desde o imbecil do Paracelso, sapecou Y.

Era sabido que entre as 348 cartas da urna havia uma mensagem de Lattes. Essa remota conversa de setenta e cinco anos atrás, mais as induções dos apontamentos de Sidraque, fizeram circular a informação de que aqueles papéis guardavam de fato o segredo da recuperação do tempo, isto é, um achado matemático que dava acesso aos umbrais do passado. Achou-se assim uma possível explicação para o que teria motivado alguém a furtar um monte de papéis velhos. Reforçou essa crença uma espécie de crônica publicada por Sidraque numa revista de variedades em 2005, o ano da morte de Lattes, em que ele relata episódios inspirados pela face burlesca do físico. O fragmento que chamou a atenção do delegado de polícia foi o seguinte.

Daí que Lattes era abordado com freqüência para escrever prefácios e frases de apresentação para livros. Um desses livros versava sobre a possibilidade de alguém voltar no tempo utilizando o princípio de H. G. Wells em A máquina do tempo. Como Lattes vinha postergando a entrega do texto-chamariz (na verdade, uma frase para a quarta capa), recebeu um ultimato da funcionária da editora: “Ou o senhor nos entrega a frase até amanhã ou perde a oportunidade de aparecer no livro”. A moça, claro, não tinha a mínima idéia de quem fosse Lattes. Não lera, naturalmente, a obra em três volumes de Isaac Asimov intitulada Gênios da humanidade, em que só comparecem seis brasileiros: Santos Dumont, Osvaldo Cruz, Carlos Chagas, Manuel Dias Abreu, Mário Schenberg e Cesare Mansuetto Giulio Lattes. Como podia saber que em 1949, quando Lattes tinha apenas 24 anos, produzira artificialmente o méson pi a partir da aceleração de partículas alfa? E que duas décadas mais tarde determinara a massa das chamadas “bolas de fogo? No dia seguinte a moça voltou a chamar: “O senhor não vai levar dez anos para nos entregar uma simples frase, vai?”. E Lattes, que gostava de pilheriar com moças incautas ou mesmo cautas: “Se eu demorar dez dias ou dez anos vai dar no mesmo, minha filha”. “Como assim? Daqui a dez anos o livro vai estar na décima edição”. E Lattes: “Pode ser, mas até lá o nosso autor já terá construído a sua máquina do tempo. Nesse caso basta que ele viaje dez anos para trás e apanhe a frase. Assim a sua editora ainda vai poder aproveitá-la para a primeira edição.

O modo como Advíncula, o delegado, decifrou o enigma do furto da cápsula pertence ao fabulário metafísico da polícia de Campinas. À imprensa, Advíncula expôs uma complicada teia de deduções a partir da leitura do diário de Sidraque, juncado de códigos e senhas, segundo ele. O absconso cronista fizera da urna um negócio pessoal, espécie de rito ou sortilégio destinado a paralisar o tempo e mantê-lo em estado de suspensão. Esperava obviamente tirar proveito disso no futuro. No fundo talvez fosse louco, disse Advíncula. O que não estava claro era o nexo entre o diário (um caderno de três quartos de século atrás) e a descoberta do meliante. É possível que um anônimo tenha simplesmente informado o delegado de que “um velhinho que mora no sótão do Edifício Bellatrix provavelmente assaltou um museu”, pois como podia alguém guardar tantas cartas com estampilhas que pareciam vir do Império, a maioria das quais escrita à mão?

Quando o velhinho entreabriu a porta e Advíncula a forçou com o pé e entrou com seu grupo de elite, a primeira coisa à vista eram as cartas espalhadas no chão de linóleo. A caixa de vidro repousava num canto, vazia. Abrindo os braços como quem acreditasse mesmo poder impedir a passagem dos bárbaros, gesto que provocou o riso geral, o ancião grunhiu um impropério antes de apanhar uma zagaia no prego da parede. Passou a golpear a torto e a direito, fazendo Advíncula saltar ridiculamente para não ser atingido. Aquilo aborreceu o delegado, que ameaçou o macróbio com o asilo orbital, a última coisa que um ancião pode desejar hoje em dia. Mas ele só se rendeu quando foi privado de sua lança num momento de distração: um laço de luz o apanhou em cheio e derrubou-o sobre as cartas. Na polícia, recusou-se terminantemente a dizer quem era, nem que idade tinha. Mas Advíncula já sabia: havia consultado o Arquivo Morto. O velho tinha 114 anos.

Visões do centenário

D
ois momentos, duas visões do futuro. Em 1996, quando a Unicamp comemorou 30 anos, o Jornal da Unicamp pediu ao arquiteto Evandro Ziggiatti Monteiro, professor da Faculdade de Engenharia Civil (FEC), que fizesse um exercício de imaginação e projetasse o campus de 2066, quando a universidade completará um século. O resultado foi o ensaio do alto da página. Dez anos depois, o JU volta a procurar Evandro e fez a ele o mesmo desafio. Evandro não se recusou. O resultado pode ser visto logo abaixo. Numa descrição que fez de seu novo ensaio, Evandro relatou a existência de “painéis solares azul-metalizados e brilhantes plataformas metálicas nas coberturas de ancoragem dos novos veículos que começam a ganhar o céu”. E deu asas à imaginação: “Sobre a superfície fomos capazes de abolir as velhas unidades movidas a motores de combustão, embora muitas ainda percorram o subsolo como formigas a servir os prédios”.

 


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