O Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) vem, desde o final dos anos 90, ampliando e diversificando suas ofertas de cursos de graduação. Em 1999, teve início a Licenciatura em Letras no período noturno. Ao mesmo tempo, foi criado um bacharelado em Lingüística, com grade curricular especializada, correspondendo à tradição acadêmica de pesquisa que marcou sempre a origem da Unicamp e de seus institutos e faculdades, em especial na área de Humanas.
Esse processo reformador, essencial à vitalidade de uma instituição de ensino-pesquisa que sempre foi referência no plano nacional e internacional, ampliou-se nos anos seguintes, com nossa participação na criação do novo curso de Fonoaudiologia, em parceria bem sucedida com a Faculdade de Medicina, graças à ponte interdisciplinar estabelecida de há muito entre nossos neurolingüistas e a área médica, combinando de modo equilibrado pesquisa de ponta e assistência a portadores de diferentes manifestações de afasia.
No hoje super-especializado ambiente da universidade contemporânea, essa aliança entre saberes médicos e humanísticos poderia parecer à primeira vista algo estranha. Mas, no fundo, ela apenas retoma e atualiza, no quadro da pesquisa mais avançada, o caráter indiciário que caracterizou a ciência médica no seu alvorecer e florescimento. Entre muitos outros exemplos dessa afinidade eletiva, poderíamos citar com destaque o campo da psicanálise, de que temos também parcerias importantes, e o da fonética e fonologia, cujas repercussões nos domínios da medicina legal e forense levaram a resultados notáveis, a partir de laboratório pioneiro instalado no IEL no final dos anos 80. Aqui, também, agora no mapeamento minucioso de voz, língua e redes cerebrais, o aspecto indiciário e humanístico mais antigo da ciência médica e dos estudos da linguagem reencontram-se graças às aquisições mais modernas da lógica e da informática.
A outra dimensão forte de nossa vocação indiciária expressa materialmente no lugar estratégico que ocupam a Biblioteca e o Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulalio (CEDAE) no organograma do IEL são as pesquisas de teoria, crítica e história literária que se desenvolvem entre nós. Nesse campo, entre as seis áreas de pesquisa existentes, abrimos deliberadamente espaço para domínios interdisciplinares com fronteiras fluidas, capazes de responder contemporaneamente à produtiva crise dos paradigmas nas ciências humanas (ao que consta cada vez mais generalizada como crise dos conceitos positivistas de ciência e cultura): é o caso de Literatura e Outras Produções Culturais já incorporada na nova configuração de áreas/subáreas em curso na Capes e no CNPq , de História e Historiografia Literárias também já assimilada nas classificações formais e de Literatura Geral e Comparada completamente afim ao formato pluralista de nossa principal entidade nacional, a Associação Brasileira de Literatura Comparada (Abralic).
Como conseqüência dessa perpectiva acadêmica não-estanque, atenta em evitar os mitos enclausadores do beletrismo e da “fundação nacional”, tão comuns nos cursos tradicionais de letras, criamos em 2004 o novo bacharelado em Estudos Literários, que teve sua primeira turma de ingressantes em 2006. Projeto inovador no panorama dos currículos existentes, adaptado às circunstâncias e limites de nosso corpo docente, e valendo-se igualmente dos aspectos mais positivos da reforma geral das Licenciaturas em Letras (implantada em 2005), seu eixo principal é o da pesquisa, leitura, crítica e escrita em torno dos objetos literários mais diversificados no tempo, espaço, culturas e gêneros discursivos. Se existe, pois, um foco extremamente dirigido e elaborado nos domínios específicos de tradições teóricas e práticas textuais configuradas, não se poderia descurar, sob pena de esclerose precoce, do eixo generalista, organicamente interdisciplinar, que qualquer estudo literário de relevo hoje deve conter e reclamar. Por isso, o currículo inclui uma porção significativa, muito superior às médias correntes, de disciplinas eletivas nas Humanas (dentro e fora do IEL) e, também, complementarmente, em quaisquer das áreas de saber presentes no catálogo de cursos de graduação da Unicamp. O que deveria ser, sem dúvida, prática corriqueira e usual torna-se aqui passagem obrigatória, porque, lamentavelmente, é mister reconhecer, a estrutura departamentalizada de nossas unidades de ensino-pesquisa e, por extensão, de nossas graduações e pós-graduações, acabou por converter a maioria de nossos currículos em “celas disciplinares” fechadas e completamente antagônicas ao espírito universalista que forjou, há séculos, a idéia de instituições superiores de ensino, estudo e produção de saberes humanos cumulativos e interconexos.
Ao começarmos essa nova experiência de ensino, cujo componente de iniciação à pesquisa está também integrado de modo prioritário à grade curricular, vem-me à lembrança o curso básico em Ciências Humanas, que tive o privilégio de fazer, no início da década de 70, sob a concepção original e arrojada do filósofo Fausto Castilho, primeiro diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH). De lá certamente nasceu meu espírito, compartilhado por vários colegas hoje docentes no IFCH, IEL, Instituto de Economia (IE), Faculdade de Educação (FE), Instituto de Geociências (IG) e Instituto de Artes (IA), entre outras unidades, acerca das Humanidades como núcleo reordenador dos saberes não só de nossas respectivas áreas mas também dos valores e critérios de definição e atualização das políticas científicas e tecnológicas.
Longe de propugnar, na reminiscência nostálgica daqueles anos heróicos, a volta a um espaço universitário quase “artesanal”, produto de momento singular de crise e resistência (Castilho e outros diretores-fundadores imaginavam, por exemplo, o desenho de um campus sem circulação interna de automóveis sonho perdido na correria noise atual de motores, celulares e fanfarras que concorrem, em horas impróprias, com o silêncio da leitura e a voz insistente mas volátil dos mestres), momento superado pela história mundial, da qual o Brasil, queiramos ou não, ainda constitui-se em apêndice dependente e secundário, trata-se, bem ao contrário da paisagem dominante, de repensar a locação atual da cultura universitária, ousando fugir de acomodações administrativas feitas ao arrepio dos valores acadêmicos e ao sabor de conveniências particulares, corporativas e estranhas à produção inovadora de conhecimento teórico, empírico, bem como de seus indispensáveis instrumentais críticos.
A livre circulação de nossos estudantes de graduação e pós-graduação entre as várias áreas da universidade vê-se hoje travada por um engessamento de grades curriculares, “celas disciplinares” e sistema inquisitorial de pré-requisitos. Precisamos enfrentar isso. Ao mesmo tempo, obrigações escolares às vezes excessivas impedem que os alunos, sobretudo na área de Humanas, participem mais efetivamente da vida cultural, científica e artística contemporânea, fator decisivo na formação de conceitos e no treino da crítica independente.
Integrar as humanidades não pode ser palavra-de-ordem retoricamente abstrata. Iniciativas concretas são viáveis e urgentes. Seminários multi e interdisciplinares abertos; publicações mais ágeis sobre temas nacionais e internacionais; exercícios críticos desarmados de filiações apriorísticas a propósito da literatura e ordens discursivas; práticas lingüísticas e textuais avessas a todo monolingüismo imperial e autoritário; crítica político-cultural continuada como perspectiva formadora; seriam, enfim, muitos os modos e conteúdos de ações que pudessem repor, no centro da Unicamp, as humanidades como campo de laboratórios avançados de pensamento e crítica, de teorização sobre a história da ciência e da cultura, da arte e da literatura, de produção de novos universais que justifiquem nossa posição e nome, não a reboque do mercado globalizado, este mesmo que está defronte a nós, e que só tem universalizado a miséria, as guerras e a degradação completa do meio ambiente planetário. Porque as humanidades podem e devem, ainda, salvar a universidade da compartimentação tecnoburocrática e da administração dos homens como coisas. Ou então, na mão contrária, desistir de vez de sua vocação humanista e adaptar-se como mecanismo subsidiário na grande engrenagem global em que o capitalismo ocidental aprisionou, há muito, as utopias educativas da razão iluminista.
Francisco Foot Hardman é professor titular do Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem. Ingressou na Unicamp em 1971, como aluno de graduação da segunda turma de Ciências Humanas do IFCH.