"Deve ser necessária grande
sagacidade num leitor para que
ele diferencie com acerto (...)
as incoerências de concepção
daquelas de vida”
(Herman Melville)
Estive pela primeira vez na Unicamp em fins de 1975. Acabava de findar meu curso de graduação e, prestes a começar minha pós-graduação, peguei a estrada para conhecer a nova Unicamp de que já se falava em São Paulo, cujo curso de pós nas ciências sociais já começava a se destacar pela linhagem crítica.
Com alguma dificuldade, ao passar por Campinas e encontrar o tal Tapetão que ligava à Unicamp, finalmente cheguei ao campus. Parecia uma ex-fazenda semi-urbanizada. Antes de sua entrada, deparávamos com um pequeno sítio urbano, o centro de Barão Geraldo (nome do barão do café proprietário da fazenda que teve parte doada para a Unicamp), circundado por muito verde.
Foi um encontro que não teve volta, tal a identidade que tive com a nossa Universidade: fiz aqui meu mestrado, concluído em 1980. Como ainda não havia doutorado no IFCH, fui fazê-lo na USP. Em fins de 1985, fiz concurso onde fui aprovado para ingressar no então Departamento de Ciências Sociais do IFCH, como docente de sociologia. Em 1994 defendia minha livre docência no mesmo Instituto onde, em 2000, tornei-me professor titular. E lá se foram mais de duas décadas como docente e três, se incluso o período discente, que se passaram como uma brisa breve.
Se faço esse breve esboço biográfico, é para dizer que meu depoimento dá-se a partir dessa experiência vivenciada. Como escreveu Elias Canetti, “para lembrarmos do tempo, que é contínuo, há um só meio: fragmentá-lo para obtermos as parcelas que dele conhecemos”. Vamos, então, abrir espaço para a recordação e o fragmento.
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Penso que se possa dizer que há um traço distintivo que marca nossa Universidade, que se formou uma escola da Unicamp. Se não me arvoro a falar aqui da Unicamp como um todo, incluindo as engenharias, as ciências puras e naturais, as biomédicas, me permito sugerir que nas humanidades e, dentro delas, nas ciências sociais em particular há um traço que singulariza a nossa escola. E recordar um pouco do IFCH talvez possa ajudar a reconstituir parte desta historia ou, pelo menos, oferecer uma leitura desta bela trajetória. Se acrescentássemos a Faculdade de Educação, o IEL, o (posterior) Instituto de Economia (que nasceu no IFCH), o Instituto de Artes, teríamos certamente uma leitura mais amplificada das humanidades, o que aqui não poderia fazer. Vou procurar, então, resgatar um pouco destes traços com o olhar de quem labora no IFCH.
Foi o professor Fausto Castilho quem deu a cara ao nosso Instituto. Com o dinamismo que lhe é próprio, dos olhos que ficam tilintando quando falam com ardor dos dilemas mais candentes do nosso mundo e do nosso pensamento, o IFCH nasceu em plena fase bárbara, sob o terror da ditadura militar. Por um traço muito particular, foi de certo modo preservado da voracidade dos militares repressores. Era como se a pequena Unicamp de Barão Geraldo estivesse relativamente à margem do saque, volúpia, tortura e assassinato dos DOI-CODs, OBAN e organismos abjetos assemelhados.
Seu reitor-fundador Zeferino Vaz tem certamente parte importante nesta história. Era um homem conservador que, entretanto, prezava o mundo cultural e científico que então desenhava e criava com vigor. E indicar Fausto Castilho para criar um Instituto das humanidades, sinalizava claramente nesta direção.
Não foi difícil perceber que algo novo e inusitado se gestava, distinta da Faculdade de Filosofia da USP, do mestre e querido amigo Florestan Fernandes, e também do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) de Guerreiro Ramos e do saudoso Nelson Werneck Sodré, para indicar uma (talvez imprópria) similitude.
No tempo que aqui vivi e presenciei, pude ver o nascimento de uma sociologia, ciência política e historiografia críticas, que pouco a pouco operavam uma cabal revisão da teoria, da sociologia, da teoria política, da história, em várias áreas e temáticas. Começo com o exemplo dos estudos sobre “trabalho, sindicalismo e movimento operário no Brasil”. Impressiona que, em plena fase do terror de estado, o magnífico acervo de história social que compreende o Arquivo Edgard Leuenroth tenha vindo parar no IFCH, quando poderia ter sido devastado pela ditadura ou comprado por uma universidade estrangeira.
O seu acervo, incomensuravelmente rico, foi matéria-prima para centenas de dissertações, teses e monografias que reescreveram a história e as teorias do trabalho, dos sindicatos dos campos e das cidades, da vida, da ação, das lutas e formas de expressão da consciência operária no Brasil, em plenos anos 70, onde fora campeava a pior fase do terror de estado.
Aqui o papel de alguns professores dos departamentos de Ciências Sociais e História foi fundamental, como também o foram os trabalhos meticulosos dos funcionários do IFCH e, no caso particular que enfatizo, do AEL. Não deveria citar nomes, para não incorrer em alguma omissão. Mas a labuta dos professores Paulo Sergio Pinheiro, Michael Hall, na aquisição e na organização do acervo, bem como a dedicação incomum da Marisa Zanatta e o caso exemplar de dona Wanda são simbólicos. Como também o é o labor de Lurdinha, por décadas, em várias secretarias.
As aulas de filosofia e teoria política do saudoso mestre Michel Debrun, o grupo de orientação digirido por Décio Saes, os estudos agrários sob condução de Nazareth Wanderley, as discussões com André Villalobos sobre “trabalho produtivo”, são também típicos e exemplares da vida intelectual que, pouco a pouco, passou a singularizar o IFCH. Os anos de chumbo da ditadura eram compensados pela vivacidade dos cursos, debates, pesquisas, teses, congressos que o Instituto fazia aflorar infindavelmente, num momento de sombras e cinzas em tantos outros espaços acadêmicos vasculhados e devassados pela ditadura e seus áulicos.
E foi partindo desta disposição que as ciências sociais, a história, a filosofia e a economia desenvolveram-se dentro do IFCH. No Departamento de Ciências Sociais, as três áreas a ciência política, a sociologia e a antropologia deslanchavam. Heterogêneas e polissêmicas, desenhavam uma relativa prevalência, nos anos 70 e inícios de 80, do que talvez se pudesse definir como um marxismo crítico e heterodoxo, onde Gramsci era intensamente lido e o debate com as obras de Marx, Lukács, Althusser, dentre tantos outros, era amplamente exercitado. As discussões sobre o método, os sentidos das ciências sociais, o estado, as ditaduras, as lutas sociais, a redemocratização, tudo aflorava com vigor e dinamismo.
Quem viveu esse período do IFCH sabe que aqui havia um espaço fértil para a polêmica (traço que, aliás, para nossa felicidade, ainda se mantém como marca do nosso Instituto), a boa controvérsia entre os docentes, o pulular das pesquisas inovadoras, a intensa participação discente.
Na história, gestava-se um novo olhar para o trabalho, para a cultura, para os temas da vida cotidiana. Do marxismo crítico de E. P. Thompson, passando pelos inspiradores da Nova História, pelo pensamento Foucault, a revisão era abrangente, contemplando temas da história da escravidão às artes. Na Antropologia pudemos ver o florescimento dos estudos etnográficos, a pesquisa da condição indígena, da cultura, o debate intelectual em torno do gênero, do feminismo, da sexualidade. Na filosofia, as aulas tratavam dos clássicos da antiguidade aos medievalistas, de Hegel a Wittgenstein, passando pela Escola de Frankfurt e Nietsche.
A economia, sob impacto do debate cepalino, recusava o império da econometria e apresentava a economia política como ciência, nas trilhas de David Ricardo, Marx, Keynes, inspirada ainda, naqueles anos de nascimento, na síntese elabora por Kalecki. Com cara própria fundou, anos depois, seu próprio Instituto, desvinculando-se do IFCH.
Contraditando uma excessiva especialização que poderia levar a uma espécie de taylorização das humanidades, aqui se enfeixava um leque de diálogos, polêmicas, discussões e concepções, geradores de um pensamento crítico e herético, com independência, liberdade e autonomia, pilares da atividade intelectual. Contra vários constrangimentos, sejam os ditatoriais, de ontem, ou os do mercado e sua razão instrumental, dos nossos dias.
Era grande a interface entre os departamentos, talvez pela origem comum: tanto a sociologia, quanto a ciência política e a antropologia tiveram sua gênese no mesmo Departamento de Ciências Sociais, que só tardiamente se separou. Tiveram, sempre, a marca interdisciplinar.
Na Faculdade de Educação, que sempre teve interlocução com o IFCH, pudemos usufruir dos diálogos com o conhecimento amplo e libertário do pedagogo Paulo Freire e com a sabedoria insubmissa e enciclopédica de Maurício Tragtenberg. Interlocução, vale ainda recordar, sempre presente com o IEL.
Foi, então, uma jovem geração de alunos graduados especialmente (mas não só) pela USP, saída do país pelas atrocidades e perseguições da ditadura, que fora realizar seus estudos de pós-graduação no exterior e, no retorno ao país, foi acolhida pelo IFCH (e tantos outros institutos da Unicamp). Por esse percurso, fervilhava o debate recente na Europa e que vinha encontrar desaguadouro em nossas salas de aula, nos debates, congressos, pesquisas, artigos, livros, teses etc.
Junto a essa jovem geração de cientistas sociais que participou da criação do IFCH, a nossa casa soube acolher figuras nacionais e internacionais que vieram construir e consolidar a vida em nossa Universidade. O filósofo Michel Debrun, já mencionado, os sociólogos Octavio Ianni, Juarez Brandão e Leôncio Martins Rodrigues, o antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira, são exemplares.
Dentro deste debate cultural, deste cenário político, dessa pluralidade de concepções teóricas e científicas, do mergulho intenso nas pesquisas, na movimentada vida estudantil que combatia a ditadura, nas batalhas pela redemocratização e pelas transformações que precisam tocar nas profundezas do Brasil, dentro dessa verdadeira ebulição intelectual que fez a cara de nosso Instituto a das nossas humanidades (e em boa medida, creio que de toda a nossa Universidade) resultou o discreto charme da Unicamp.
Ricardo Antunes é professor titular de Sociologia do IFCH/Unicamp. Foi Diretor do Arquivo Edgard Leuenroth e coordenador do Mestrado em Sociologia, ambos no IFCH. Foi representante dos professores titulares no Consu. É pesquisador do CNPq e autor de vários livros e artigos, no Brasil e no exterior. Recebeu os prêmios Zeferino Vaz (Unicamp) e Cátedra Florestan Fernandes (CLACSO).