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Qual mulher é mais feliz?
Comentários
à entrevista de Susan Pinker “Mulher é mais feliz quando
reconhece diferenças de gênero”, concedida a Ricardo Mioto,
publicada na pág. A22 da Folha de S. Paulo em 21 de março
de 2010
Antes de mais nada, nenhum movimento feminista que se preza
nega a existência de distinções biológicas de gênero, pois
isso seria uma cegueira incurável! Não reconhecer, no entanto,
que importantes distinções de gênero são socialmente construídas
seria negar o peso da história na conformação do homem e da
mulher modernos.
Susan Pinker afirma que a
diferença salarial no mercado de trabalho entre homens e
mulheres deve-se à priorização do trabalho sobre outras
atividades por parte dos primeiros! E por que motivo mulheres
solteiras workaholics, cujo interesse principal é
seu trabalho e sua carreira, são também discriminadas? E
defende o ex-reitor da Universidade Harvard, Lawrence Sommers,
que perdeu o cargo ao escandalizar todo o meio acadêmico
por declarar que “existem questões de aptidão intrínseca,
e em particular da variabilidade de aptidão”, como aquela
que aponta que os homens tendem a ter uma gama maior de QI
do que as mulheres. Portanto, é de se esperar que mais homens
que mulheres sejam encontrados nos pontos extremos da aptidão
(tanto acima como abaixo da média). Summers sugeriu que essa
variação, em combinação com outros fatores, “explica
provavelmente uma quantidade razoável deste problema.”
Afirmou que do seu ponto de vista, esta é uma causa mais
importante do problema que “a diferente socialização e
os padrões de discriminação”, conclui Susan.
Concordamos com Susan Pinker
quando afirma que mulheres com filhos pequenos preferem trabalhar
meio período. Mas se houve uma revolução no século XX foi
a invenção da pílula e a difusão de meios de contracepção,
o que permite que a família planeje o número de filhos que
quer criar. Quando os filhos deixam a fase de dependência
física da mãe, esta pode voltar a exercer suas atividades
profissionais e construir uma carreira. A maternidade já foi
uma restrição importante para a vida profissional da mulher
quando não era possível seu controle mais estrito.
Susan cita o fato de que na
Holanda as mulheres que trabalham meio período – tenham filhos
ou não – não podem ser demitidas, e comenta o caso de uma
jornalista, mesmo solteira e sem ter filhos, que tirava para
si um dia da semana para tocar piano. É claro que essa lei
foi criada para proteção do período da maternidade, e o caso
citado é uma exceção à regra, mas quantos homens não fariam
a mesma escolha se lhes fosse dado esse privilégio? Isso não
os tornaria menos homens!
O fato de 75% dos homens serem
mais competitivos, gostarem de assumir riscos, serem apaixonados
por carros e procurarem ter sempre mais dinheiro que seus
semelhantes, conforme afirma Susan, entendemos ser um caso
típico de condicionamento social. Em outras sociedades outros
valores eram mais cultivados e não havia a ganância individualista
própria da fase atual do capitalismo. Se as mulheres não se
caracterizam por esses valores isso também se deve em boa
medida a sua socialização dirigida para criação de pessoas
dependentes e sem ambição. Mas é claro que há mulheres ambiciosas
também, cada vez mais!
Susan afirma que "ciência
é estatística, quando você estuda ciência está analisando
probabilidades". Talvez aí se encontre a fonte
do raciocínio de Susan! Quando você tem um conceito tão
reducionista da ciência você pode provar qualquer coisa,
por mais absurda que seja. Essa pseudociência baseada em
simulação de modelos estatísticos e econométricos na qual
eu, economista, fui inicialmente formada, deixa de lado todo
o arcabouço teórico que está por trás do comportamento
das variáveis estatísticas. Por sorte tive a oportunidade
de conhecer teorias alternativas que realmente constituem
ferramentas para o entendimento da realidade que se vive.
As estatísticas servem para reforçar argumentos científicos
embasados em sólidas construções teóricas. Não se deve
esquecer que uma identidade estatística pode ser lida a partir
de dois lados. Uma coisa é dizer que A = B porque B causa
A e outra bem diferente quando se verifica que na verdade
é A que está causando B. Isso a estatística não permite
determinar. Só a teoria científica.
Uma forma canhestra de forçar
um argumento é levá-lo ao extremo. Com isso qualquer afirmação
se torna pretensamente verdadeira. Isso ocorre quando Susan
por exemplo (ela faz isso em outras passagens da entrevista)
diz que “As mulheres foram discriminadas por tanto tempo
que as pessoas tem uma aversão à ideia de que existe uma
diferença natural, biológica”. Ora, ninguém nega
a diferença natural, biológica. Ao contrário, as mulheres
sempre dizem “Vive la diference!” .
Para Susan, aceitar as diferenças
biológicas naturais faz as mulheres se sentirem “menos
isoladas com seus sentimentos. Se ignoramos as diferenças,
estamos forçando mulheres a assumir cargos e trabalhos nos
quais boa parte delas não serão felizes, talvez como executivas
ou engenheiras”. Ora, uma coisa é reconhecer que o
trabalho estafante que se exige hoje nas empresas faz com
que se deseje ficar mais tempo em casa, dedicada a outras
atividades, principalmente quando seu trabalho não é reconhecido,
seus salários são menores que os de homens de igual ou menor
capacidade e o acesso a cargos de maior responsabilidade,
mas que implica desafios mais interessantes, lhes é negado!
Outra coisa muito diferente é tomar a decisão de restringir
seus interesses aos afazeres domésticos e atividades recreativas
e culturais. Sem mencionar que a sociedade atual não comporta
mais a manutenção adequada de uma família apenas com o
salário do marido.
Susan afirma, por exemplo,
que “a maioria das mulheres gosta de trabalhos como assistência
social, pedagogia, profissões na área da saúde, mas salários
nessas áreas costumam ser menores”. Na verdade, essas
são as profissões para as quais as mulheres são socializadas
desde crianças, através da boneca que deve ser cuidada.
E é nelas, também, que as mulheres são mais bem aceitas
no mercado de trabalho. E não é que elas “escolham”
essas profissões e por azar elas são mal remuneradas! Não!
É porque esse trabalho é realizado principalmente por mulheres,
que os salários são mais baixos, porque as que o executam
são pessoas menos valorizadas no mercado! É um fato conhecido
que a feminilização das profissões reduz sua remuneração.
Um caso bem divulgado é o da Medicina na União Soviética
(quando o país tinha esse nome), exercida na maioria das
vezes por mulheres, cujos salários eram bastante inferiores
aos de outros profissionais do mesmo nível.
O fato de as mulheres serem
menos reivindicativas que os homens não se deve a uma atitude
mais passiva, como alegado por Susan (embora possa existir
algo disso pela socialização e não por diferenças biológicas
com os homens) e sim à maior probabilidade de insucesso nos
pedidos de aumento aos chefes!
Como exemplo da importância
das diferenças naturais entre os sexos, Susan comenta sua
experiência quando jovem em um kibutz em Israel, onde
as mulheres executavam trabalhos pesados contra sua vontade,
por exigirem maior esforço físico. Aí se introduziu uma
divisão natural do trabalho por sexo, não prevista na organização
dos kibuts, conclui Susan. Ora, é conhecido pelos
historiadores que a primeira divisão do trabalho da história
da humanidade foi a divisão do trabalho por sexo. Engels
afirma na “Origem da família, da propriedade privada
e do Estado”: “Num velho manuscrito inédito, redigido
em 1846 por Marx e por mim, encontro a seguinte frase: ‘A
primeira divisão do trabalho é a que se fez entre o homem
e a mulher para a procriação dos filhos’ ”. Numa
economia primitiva como a praticada nos kibutz essa era talvez
a única divisão de trabalho possível. Mas estamos falando
aqui de uma sociedade industrializada, globalizada, onde a
força física é exigível em um número mínimo de tarefas,
sendo as demais realizadas pelas máquinas. Essa é outra
revolução a favor da liberação da mulher do estreito rol
de tarefas a elas reservado na atividade industrial. Foi por
isso que cresceu sensivelmente a presença feminina no chão
de fábrica no Brasil a partir dos anos 70 do século passado.
Susan ainda cita entrevistas
com algumas mulheres para respaldar suas afirmações. Acompanhando
argumento por argumento, vemos que a pretensa cientificidade
de suas afirmações – pelo menos a partir da entrevista
– derrete no ar! Não se mantém nenhuma de suas premissas
e as conclusões a que chega não decorrem de nenhum argumento
sólido, mas de impressões e suposições não ancoradas
em um diagnóstico claro da realidade do mundo feminino. Ela
trata de dar caráter científico a suas afirmações quando
diz que “O Segundo Sexo (de Simone de Beauvoir)... está
ultrapassado. A ciência avançou muito... Não tínhamos
ressonância magnética nem o mapeamento do genoma humano...
Hoje estamos entendendo como os hormônios afetam o comportamento
humano”, diz Susan.
Ora, ela não esclarece em
sua entrevista de que maneira seu conhecimento científico
levou às conclusões a que chega sobre o trabalho feminino,
a preferência inata das mulheres pelas atividades domésticas
e a felicidade que retiram de poder realizá-las!
Sandra
Negraes Brisolla é professora associada do Departamento
de Política Científica e Tecnológica (DPCT) do Instituto
de Geociências (IG) da Unicamp
Elza
da Costa Cruz Vasconcelos é prpfessora associada
do Departamento de Eletrônica Quântica (DEQ)
do Instituto de Física Gleb
Wataghin (IFGW) da Unicamp
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