|
Um discurso pautado pelo preconceito
Tese defendida na FE
revela barreiras
enfrentadas por pessoas com deficiência
A lei previdenciária 8.213,
de 1991, determina que empresas com mais de 100 funcionários,
e progressivamente com o aumento deste número, empreguem uma
cota de 2% a 5% de pessoas com deficiência e aquelas que passaram
por reabilitação profissional no INSS. Tal dispositivo, que
define quem são essas pessoas a partir de parâmetros objetivos,
enquadra-se na política de ações afirmativas. Medidas como
esta seriam desnecessárias se os empregadores naturalmente
empregassem os deficientes. Não é o que acontece. Eles continuam
sendo objeto de preconceito, tanto no discurso de pessoas
como no de instituições. Para investigar aspectos desta problemática,
a psicóloga Maria Eduarda Silva Leme desenvolveu sua tese
de doutorado, defendida recentemente na Faculdade de Educação
(FE).
A instituição dessa cota,
afirma ela, busca amenizar os efeitos da rejeição, predisposição
e mesmo negação do mercado de trabalho em absorver pessoas
com deficiência. Leme procurou analisar os discursos de instituições
sociais envolvidas com a questão de deficiência e trabalho
– empresas, Estado (através de órgãos públicos), terceiro
setor e os próprios deficientes – de modo a dar visibilidade
aos sentidos produzidos por elas sobre o tema. As ações afirmativas,
explica, visam favorecer um determinado grupo social que vive
em desvantagem, equiparando as suas oportunidades às do restante
da população. Conforme Leme, cuja pesquisa foi orientada pela
professora da FE Ana Luiza Bustamante Smolka, a questão, no
entanto, é mais complexa.
A psicóloga observa que os
discursos sobre a deficiência construídos ao longo da história
determinam que se tenha dos deficientes uma imagem ligada
a déficit e incapacidade. “As políticas públicas ainda não
têm contemplado essas pessoas como deveriam”, lamenta. “Nas
últimas décadas vêm ocorrendo avanços em áreas como educação
e trabalho, porém ainda em meio a muitas contradições”, salienta
a pesquisadora.
O
objetivo de Leme foi investigar os modos socialmente constituídos
de conceber e significar pessoas com deficiência e trabalho,
tomando por base certas condições concretas da sociedade brasileira
contemporânea, como a lei de cotas. “Pesquisei aspectos da
implementação da lei de cotas e de que modo as instituições
sociais envolvidas lidam com a questão e falam sobre o assunto.”
A lei, de acordo com Leme,
já tem 19 anos e somente a partir de 2003 começou a ser efetivamente
implementada em decorrência de uma fiscalização mais ostensiva
do Estado. Em sua opinião, um trabalho muito efetivo tem sido
conduzido em Campinas com várias ações do Ministério do Trabalho,
que tomou a frente desse processo. Constituiu em 2004 um grupo
interinstitucional de trabalho nesta direção, do qual participam
várias instâncias sociais que abordam a questão, como ONGs,
outros órgãos do Estado e até universidades”, sublinha.
Esse grupo promove encontros
regulares em que se discutem modos de consolidar a implementação
da lei. Além de fiscalizar seu cumprimento, realizam-se ações
educativas junto às empresas tencionando modificar concepções.
“Contudo não basta orientar as empresas; é preciso que se
produzam novos sentidos sobre a deficiência na sociedade”,
argumenta. “As pessoas com deficiência devem ser contempladas
por políticas públicas universais, todavia o que ainda ocorre
é que o seu atendimento acaba ficando, em grande parte, restrito
às instituições filantrópicas ou prossegue com um caráter
precário e incipiente.” Leme pontua que os deficientes possuem
capacidade de trabalho, desde que tenham acesso à escola e
à qualificação profissional.
Como as empresas que precisam
cumprir a lei falam do deficiente e de sua capacidade de trabalho?
Como o Estado, através de seus órgãos públicos que trabalham
implementando a lei, falam da pessoa com deficiência e de
trabalho? Como as ONGs que atendem aos deficientes, e supostamente
os preparam para o mercado de trabalho, falam sobre eles?
Qual é o seu discurso e que sentidos estão presentes nesse
discurso? Como o deficiente é significado pelo discurso vigente
e qual é o seu próprio discurso sobre sua vida, a deficiência
e suas possibilidades? Este é o âmbito da investigação.
Leme definiu o tema de pesquisa
em razão do lugar que ocupa num órgão público, em que atende
a essas pessoas e tem interlocução com instituições que também
trabalham com a questão. Ela traz assim, a partir desse lugar
singular em que se sobrepõem o papel de pesquisadora e o de
profissional, o Estado visto por dentro, operando em uma de
suas ações.
A análise dos dados deu visibilidade
às contradições presentes nos discursos relacionados à deficiência
e ao trabalho: ao mesmo tempo em que as empresas falam da
capacidade do deficiente, as marcas no discurso remetem à
dúvida e ao descrédito. “Assumem atitudes que vão da superproteção
ao estranhamento e desejo de distanciamento. Isso porque na
sociedade existe uma dificuldade em lidar com o diferente”,
sinaliza Leme.
As muitas contradições do
discurso, declara a psicóloga, são incorporadas pelo próprio
deficiente. Ele se sente capaz e deseja trabalhar, por outro
lado mostra ressentimento pelo preconceito, pelo modo como
falam sobre ele, pelo distanciamento e pela exclusão. A pesquisadora
registrou, nas suas observações, muitas histórias sensibilizadoras
que mostram tais contradições. “Os deficientes se empregam
por força da lei, mas às vezes um mesmo cargo ocupado por
uma pessoa sem deficiência numa empresa pode ter outra denominação
e outro salário para o deficiente, o que não é permitido por
lei”, revela.
Classificação
Em seu trabalho em um órgão
público, Leme tem como uma de suas atribuições avaliar se
as pessoas deficientes que atende estão habilitadas a desempenhar
uma determinada função laboral e se sua deficiência se enquadra
nos critérios da lei. A avaliação global é feita em conjunto
com um médico. Foi então que vislumbrou que estava em contato
com um contexto riquíssimo, o que contribuiu para delinear
um projeto de pesquisa que pudesse dar visibilidade a este
universo. Enquanto os atendia, descreve ela, ouvindo e acolhendo
suas demandas, suas dores, suas esperanças de terem um emprego,
às vezes nunca conseguido, realizava a avaliação relativa
à deficiência.
A psicóloga gravou reuniões
do grupo interinstitucional de trabalho e analisou cuidadosamente
os vários discursos, as relações entre as diversas instituições,
o jogo de forças ali presente e os papéis desempenhados por
cada uma. Gravou entrevistas com pessoas deficientes atendidas
em seu trabalho, sempre com as devidas autorizações. Outros
discursos registrados foram obtidos em conversas com empresas
e mediante palestras e eventos de trabalho. Leme reuniu material
audiogravado e por escrito entre 2005 e 2006.
A pesquisadora atua em reabilitação
profissional há muitos anos e especificamente com deficiência
desde 1995. Ela explica que a lei 8.213 abrange as deficiências
física, visual, auditiva, mental e múltipla, fazendo uma descrição
objetiva para o enquadramento dos casos. A física envolve
amputações e lesões severas que limitam funcionalmente o desempenho
motor. A deficiência visual refere-se à cegueira ou à visão
subnormal cuja acuidade visual não ultrapassa 0,3 no melhor
olho e com a melhor correção óptica. Já no caso da deficiência
auditiva, ela é considerada nas duas orelhas, com um déficit
auditivo de 41 decibéis ou mais em quatro frequências. Além
dessas deficiências, há a deficiência intelectual e a múltipla,
esta última assim caracterizada quando a ela se associam duas
ou mais deficiências.
Para o deficiente que não
se enquadra nos critérios da lei, a situação fica mais difícil
pois, embora também sofra rejeição pelas empresas, não conta
com o amparo legal, nota a psicóloga. Ao longo da pesquisa,
ela sentiu-se impactada pela percepção de que esse grupo também
excluído do acesso ao trabalho não pode beneficiar-se da lei.
Ao atender a uma mulher com visão monocular, que teve um dos
olhos enucleado (removido), soube que ela não conseguia arranjar
emprego, mesmo tendo concluído o ensino médio, por apresentar
uma deficiência. “Não se enquadrando nos critérios legais,
não era aceita, o que mostra a contradição intrínseca à própria
lei”, aponta.
Um ponto salientado por Leme
é a necessidade de uma compreensão mais profunda do discurso
que tem sido construído sobre a deficiência ao longo da história
– a memória discursiva – e que contribui para mantê-la ainda
excluída das políticas públicas. “O Estado deve implementar
com qualidade, de maneira universal, as políticas públicas
igualmente para a população de deficientes e de não-deficientes.
Só que o que ainda vemos, apesar dos avanços na legislação
e nas políticas, é uma parte do que deveria ser função do
Estado delegada a instituições assistenciais, muitas com origem
na filantropia, com tudo o que isso pode significar.”
A psicóloga relata que as
instituições recebem subvenção do Estado e fazem um trabalho
que julgam ser correto, pautando-se contudo por sua própria
conceituação e concepção de homem, de sociedade e de deficiência,
que é marcada por sua história de filantropia e assistencialismo.
“Está tão naturalizado que caiba a elas a prestação de serviços
aos deficientes que o Estado delega essas funções para o terceiro
setor. Por que ele persiste eximindo-se de suas obrigações?”,
inquieta-se. Para a pesquisadora, essas marcas historicamente
constituídas de assistencialismo precisam dar lugar a novos
sentidos, de modo a abrir outras perspectivas para esse grupo.
A
polifonia e as contradições
O que mais se evidenciou
na análise dos dados foram as contradições, o sim e
o não permeando os diversos discursos sobre deficiência
e trabalho. “As empresas, ao mesmo tempo em que os empregam,
duvidam que eles sejam capazes. Ao mesmo tempo que o
Estado implementa leis e executa políticas públicas
voltadas à população com deficiência, mantém parcerias
com instituições assistenciais filantrópicas”, reconstitui
a pesquisadora.
Essas contradições estão
presentes no discurso das próprias pessoas com deficiência,
comenta ela. “Queremos trabalhar e temos capacidade
para isso, ao mesmo tempo que sentimos dúvida e receio”,
ou ainda, “para arrumar emprego, precisamos de um certificado
que comprove nossa deficiência, mas aí ficamos marcados”,
comenta a psicóloga. Ao mesmo tempo que não querem se
sentir deficientes, buscam um certificado que garanta
o seu acesso ao trabalho, o que faz com que desejem
ser deficientes conforme a lei. A tese está repleta
deste dualismo. Leme salienta a interconstitutividade
dos sujeitos – o discurso mais amplo da sociedade constituindo
esses sujeitos. “O imaginário social afeta os próprios
deficientes, constituindo-os em meio às contradições”,
garante.
O ponto de ancoragem
teórica de Leme foi a perspectiva histórico-cultural
do desenvolvimento humano, particularmente as concepções
de Vigotski, que fala da constituição social do psiquismo.
“Somos constituídos numa cultura em meio a significações.”
Esta concepção teórica contribuiu para que a psicóloga
compreendesse como os deficientes são significados em
nossa cultura e como essas significações os afetam e
os constituem. Baseou-se ainda em concepções de Bakthin
sobre a dimensão ideológica da palavra, a polifonia
– as múltiplas vozes contidas no discurso –, e o psiquismo
como algo localizado na fronteira entre o organismo
e o mundo. “Psiquismo não é somente processo interno.
Localiza-se no âmbito onde se negociam as significações.”
Outra teoria que ancorou
o trabalho foi a análise do discurso (AD) de linha francesa,
em que estudou Pêcheux e Maingueneau. Leme assinala
que não fez uma análise de discurso em sentido estrito.
Apenas inspirou-se nela para realizar as análises. “A
análise do discurso nos alerta para a não-transparência
da linguagem. Não é tanto o que se diz que importa e
sim o como se diz, os efeitos de sentidos que produzem.
Também não é o sujeito o autor de seu discurso. Este
é atravessado pelo discurso do outro, que é absorvido
e incorporado do discurso mais amplo.”
|
|
|