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Método usa análise espacial
em estudos epidemiológicos
FCM desenvolve software que supera
limitações de outros programas
CARMO
GALLO NETTO
Ao ouvir referências à utilização de análises espaciais em
estudos epidemiológicos, o leitor não familiarizado com o
tema, em uma inferência apressada dos significados possíveis
para os termos epidemiologia e espacial, pode pressupor que
doenças infecciosas são estudadas modernamente com a utilização
de satélites. Com efeito, no início, os estudos epidemiológicos
remetiam-se a apenas doenças infecciosas que preocupavam as
autoridades de saúde do século XIX. Hoje, os dicionários de
uso mais corrente consideram a epidemiologia como “um ramo
da medicina que estuda os diferentes fatores que intervêm
na difusão e propagação de doenças, sua influência, seu modo
de distribuição, sua evolução, e a colocação dos meios necessários
a sua preservação”. Ocorre que, principalmente a partir da
segunda metade do século XX, passaram a ser enquadrados como
epidemias os mais diferentes agravos que acometem os agrupamentos
humanos, além dos infecciosos, tais como acidentes no trânsito
e no trabalho, intoxicações decorrentes de atividades profissionais,
infarto agudo do miocárdio, mortes violentas, entre outros.
A propósito,
o professor Ricardo Carlos Cordeiro, um dos quatro docentes
que atuam no Laboratório de Análise Espacial de Dados Epidemiológicos,
do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências
Médicas (FCM) da Unicamp, que se dedica ao estudo e à aplicação
de métodos de análise espacial de dados em epidemiologia,
esclarece que essa é uma área da Saúde Pública e não apenas
da medicina que estuda as relações entre exposições e ocorrências
de doenças. As exposições são as mais diversas como químicas,
físicas, sociais, ou seja, envolvem qualquer tipo de risco
que possa estar relacionado com doença. Ele explica que “essa
relação entre exposição e adoecimento é tratada na epidemiologia
no âmbito de uma população humana. Quando se estuda qual a
relação entre esses fatores e as doenças que eles provocam
em populações humanas, se está no âmbito da epidemiologia”.
Em relação
à questão espacial, o professor esclarece que, desde o seu
nascimento, a epidemiologia considerou a localização dos lugares
de ocorrência de doenças que afetam as populações essenciais
para seu entendimento. Essa preocupação assumiu particular
importância mais recentemente, nos últimos 30 anos, com o
desenvolvimento de métodos estatísticos e computacionais que
permitem melhor entendimento dos fenômenos e de suas soluções.
Cordeiro esclarece que “a análise espacial de dados pressupõe
a utilização no método epidemiológico das informações de localização
dos doentes, dos fatores causadores da doença em suas várias
gradações e de tudo relacionado a ela”. Esses fatores são
basicamente as pessoas adoecidas e as fontes de contaminação
e de adoecimento, que, tratados numérica e quantitativamente,
permitem estimar o risco de doença em função do espaço geográfico.
O docente
explica que o risco de adoecimento não é constante em todo
o espaço em que as pessoas vivem. Assim, o risco de ser atropelado
é diferente numa grande via, num local mais tranquilo ou no
campo. A possibilidade de assalto ou de violência por arma
de fogo varia ao longo do território. A variação de risco
constitui o cerne da análise espacial de dados em epidemiologia
e, mais importante, permite entender porque a ocorrência se
manifesta de determinadas maneiras e gradações.
Esse
estudo necessita de informações sobre os indivíduos doentes
e não doentes e do ambiente como um todo, mas principalmente,
e isso é crucial, da situação geográfica desses indivíduos,
basicamente latitude e longitude. A localização pode ser conseguida
por meio de um GPS, mas em várias situações utiliza-se uma
malha chamada base cartográfica digital que permite identificar
regiões da cidade e chegar às coordenadas sem sair do laboratório.
Dessa forma, exemplifica o entrevistado, um acidente pode
ser localizado na base cartográfica sabendo em que rua ocorreu.
Embora aparentemente simples, a elaboração da base cartográfica
digital demanda um trabalho complexo.
Quando
o agravo envolve difícil definição do momento da ocorrência,
utilizam-se aproximações e hipóteses. Assim, se a ideia é
dar importância a fatores domésticos das pessoas, trabalha-se
com endereço da residência. Se a doença está relacionada com
a atividade profissional, considera-se seu local de trabalho.
Nos casos relacionados às vias urbanas procura-se, por meio
de entrevistas, determinar os caminhos percorridos pelos indivíduos.
As necessidades e possibilidades, esclarece o pesquisador,
dependem do objeto a ser estudado.
Desenvolvimento
de programa
Uma
das atividades centrais do laboratório foi o desenvolvimento
de programa que permitisse analisar os dados do ponto de vista
epidemiológico. Nesse particular, o professor considera que
o laboratório já fez uma série de contribuições tanto no âmbito
brasileiro quanto internacional: “Examinando a produção científica
nessa área, constatamos que, como tudo que diz respeito à
pesquisa, oferece potencialidades e limitações. Trabalhando
essas limitações, desenvolvemos nos últimos cinco anos um
método de análise espacial que levou a um software que permite
superar algumas limitações dos programas até então existentes.
Esse modelo de análise único serve ao estudo de diferentes
agravos e, naturalmente, demanda ajustes e acertos para cada
aplicação”.
O professor
considera o produto do laboratório inédito porque outros grupos
de pesquisa que trabalham com o mesmo problema não conseguem
determinados tipos de análises por falta de ferramenta adequada.
“E nós estamos começando a fazer isso com a ferramenta, que
é o software que criamos”, enfatiza.
O trabalho
mobiliza uma equipe multidisciplinar que envolve matemáticos,
estatísticos, analistas de sistema, epidemiologistas, basicamente.
Mas no tratamento de problemas concretos exige outros profissionais
como nutricionistas no caso da obesidade, médicos especialistas
no estudo da dengue. Utiliza também engenheiros e geógrafos
nas questões cartográficas.
O laboratório
trabalhou com dengue em Campinas durante a sua maior epidemia
na cidade que ocorreu entre 2005 e 2007, estudando a distribuição
do risco no município, particularmente na região Sul. Observou-se
então que o risco de adoecimento para os tipos clássico ou
hemorrágico da doença eram diferentes do ponto de vista da
distribuição espacial, constatação que só foi possível com
a aplicação do programa desenvolvido.
Outra
pesquisa realizada durante um ano envolveu a totalidade de
acidentes do trabalho em Piracicaba, ocorridos na população
trabalhadora informal, sem carteira de trabalho, atendida
em um dos sete pronto-socorros municipais. A utilização da
distribuição espacial permitiu observar como esses agravos
se distribuem na cidade em termos de localização, estrutura
viária, distribuição dos mercados informais dimensionando
suas gravidades.
A distribuição
espacial dos casos de Aids em Campinas foi estudada com base
no domicílio do indivíduo portador da doença com o objetivo
de entender como se distribui esse risco no perímetro urbano
da cidade. No mesmo município, pesquisa equivalente foi realizada
em relação à obesidade.
Para
o pesquisador, a descoberta de que tipos diferentes de doenças
podem apresentar locais de risco diferentes permite tratar
com mais especificidade cada um dos tipos, possibilitando
promover ações de prevenção específicas para cada região.
Para dirimir estranhamentos relacionados ao emprego do mesmo
modelo matemático-estatístico e computacional para o estudo
de casos tão díspares, o pesquisador diz que “tudo está relacionado
com tudo”. Explica que a questão é dimensionar quão fortes
ou fracas são essas relações, caracterizando-lhes o grau.
Na obesidade, por exemplo, apenas o local de moradia não explica
o perfil corporal do indivíduo. Mas a localização da moradia
está relacionada a uma série de outros elementos como faixa
de renda, hábitos alimentares, estilo de vida, estes sim fatores
preponderantes na aquisição de peso. Por isso, diz, “estudando
o lugar em que essas pessoas vivem, consegue-se determinar
o grau de influência desses fatores na obesidade dos indivíduos.
O local é o marcador social de hábitos, de estilos e modos
de vida que se refletem entre outras coisas no peso”.
Diferencial
No Laboratório
de Análise Espacial de Dados (epiGeo - alusão à epidemiologia
e distribuição geográfica), trabalham alunos de pós-graduação
em mestrado e doutorado, além de alunos de pós-doutorado.
O laboratório é mais especificamente procurado por profissionais
da área da saúde.
Entre
as várias inovações decorrentes do método nele desenvolvido,
o professor menciona o fato de que até então as análises espaciais
de dados classificavam os indivíduos em apenas dois grupos:
doentes e não doentes. Mas em uma série de circunstâncias
é importante refinar essa classificação. Os indivíduos podem
ser acometidos por diversos tipos de dengue. Situação análoga
acontece com a Aids em que ocorrem formas clínicas mais ou
menos graves. O mesmo ocorre em relação aos tipos de acidentes
e aos graus de obesidade. Existem, portanto, uma série de
circunstâncias em que é importante tratar os indivíduos em
categorias diversas. E, para tanto, não havia método disponível
até então.
A criação
da metodologia exigiu um entendimento teórico da situação
a ser estudada, levou à necessidade de reunir ferramentas
analíticas – matemáticas e estatísticas – para responder a
perguntas para que se pudessem a partir daí executar os cálculos.
É quando então se utiliza o software criado, que demanda vários
dias de cálculos mesmo nos computadores de grande porte disponíveis
no laboratório.
Tese
Tese
recentemente apresentada por Ana Carolina Cintra Nunes Mafra
e orientada pelo professor Cordeiro, que aborda o “Uso de
modelagem multinomial na estimação da distribuição espacial
de risco em estudos epidemiológicos” reporta-se à parte do
programa desenvolvido no laboratório e rendeu recente publicação
no periódico BMC Public Health. A ferramenta desenvolvida
é multinomial porque permite análises que classificam os indivíduos
em vários grupos, o que não é possível na tradicional análise
binomial que permitia a utilização de apenas dois grupos:
doentes e não doentes.
O estudo
de Ana Carolina contribuiu para o denominado software livre
R. Ele é produzido livremente por especialistas do mundo inteiro
que colaboram para sua melhora contínua e está disponível
gratuitamente na internet. A contribuição do laboratório para
esse software consta de um pacote de funções que ainda não
recebeu denominação específica. Cordeiro conclui dizendo que
o trabalho potencializa as ferramentas analíticas dos epidemiologistas
municiando-os com recursos que permitem entender melhor o
processo de determinação e distribuição das doenças, possibilitando-os
a estarem mais capacitados a sugerir ações de prevenção. E
conclui: “É o que no final das contas vai servir para alguma
coisa. Pretendemos e queremos que esse método melhore a vida
das pessoas”.
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