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Benedict Anderson e as fronteiras
(e anomalias) do nacionalismo
SÍLVIO
ANUNCIAÇÃO
Se estivesse vivo, o historiador
e cientista político britânico George Hugh Nicholas Seton-Watson
(1916-1984) – herdeiro de uma vasta tradição liberal de historiografia
e ciências sociais e autor do melhor e mais abrangente texto
em língua inglesa sobre nacionalismo até 1983 – não teria
observado, com pesar: “Assim sou levado a concluir que não
é possível elaborar nenhuma ‘definição científica’ de nação;
mas o fenômeno existiu e continua a existir”. É que um ano
antes da morte de Watson, em 1983, o também historiador e
cientista político Benedict Anderson publicaria a ‘bíblia’
da área, trazendo não só as definições e análises de nação,
nacionalidade e nacionalismo, mas rompendo com as teorias
até então consagradas de nomes como Eric Hobsbawm, Ernest
Gellner e Elie Kedourie.
Na introdução de Comunidades
Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo
(Companhia das Letras), Anderson usa a observação de
Hugh Seton-Watson para justificar a publicação da obra. Este
livro, escreveu, pretende oferecer a título de ensaio, algumas
ideias para uma interpretação mais satisfatória da ‘anomalia’
do nacionalismo. A justificativa revelou-se desnecessária.
Quase 30 anos depois, o clássico já teria sido traduzido para
cerca de 30 idiomas, e as teorias e análises nele contidas
tornariam Anderson um dos mais influentes pensadores contemporâneos
da área de humanidades.
A
formulação de Anderson para o conceito de nação se apoia sobre
as expressões, por vezes paradoxais, de comunidade imaginada,
limitada e, ao mesmo tempo, soberana. “Imaginada porque mesmo
os membros da mais minúscula das nações jamais conhecerão,
encontrarão ou sequer ouvirão falar da maioria dos seus companheiros,
embora todos tenham em mente a imagem viva da comunhão entre
eles (…). Limitada porque mesmo a maior delas (…) possui fronteiras
finitas, ainda que elásticas, para além das quais existem
outras nações (…). Soberana porque o conceito nasceu na época
em que o Iluminismo e a Revolução estavam destruindo a legitimidade
do reino dinástico hierárquico de ordem divina. Amadurecendo
numa fase da história humana em que mesmo os adeptos mais
fervorosos de qualquer religião universal se defrontavam inevitavelmente
com o pluralismo vivo dessas religiões e com o alomorfismo
entre as pretensões ontológicas e a extensão territorial de
cada credo, as nações sonham em ser livres (…). A garantia
e o emblema dessa liberdade é o Estado Soberano”, expõe o
intelectual na introdução da obra.
O pensador e professor emérito
da Universidade de Cornell (EUA) esteve nos dias 18 e 19 de
agosto na Unicamp, em sua primeira visita ao Estado de São
Paulo. No Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH),
Anderson ministrou a conferência “Why we think that nation
is good” e conversou com alunos de pós-graduação que trabalham
com pesquisas relacionadas às suas obras.
A
visita de Anderson foi organizada pela professora Eliane Moura
da Silva, do Programa de Pós-Graduação em História e Ciências
Sociais da Unicamp (leia análise a seguir). A docente
ressaltou a importância da passagem do intelectual pela Universidade:
“Ele é um dos principais pensadores contemporâneos sobre temas
relacionados à antropologia, história e linguística. É muito
grande a influência no Brasil de suas obras, sobretudo de
Comunidades Imaginadas. Os cursos de graduação da Unicamp
em história e antropologia utilizam há muitos anos a obra
de Anderson em suas referências bibliográficas. Seu pensamento
tem uma influência enorme nos estudos latino-americanos”,
salientou.
Na entrevista que segue,
Anderson fala sobre os temas abordados nas conferências no
IFCH, analisa as manifestações nacionalistas no contexto de
globalização e discorre sobre os movimentos da Primavera Árabe.
Jornal da Unicamp
- Gostaria que o sr. falasse sobre o tema de sua conferência
proferida na Unicamp.
Benedict Anderson
- O que se espera de todos nós é que, às vezes, reconheçamos
que nossa nação não é boa. Em minha experiência, nós sempre
perdoamos nossa nação. A famosa expressão ‘certo ou errado,
meu país’, significa que mesmo que meu país esteja errado,
ele ainda é meu país. É bem diferente da ideia de religião.
Não haverá esta expressão: ‘Minha religião, certa ou errada’,
pois uma religião errada é impossível...
Falei também sobre algo que
não é muito discutido em termos políticos, que é a vergonha.
Trata-se de um sentimento muito interessante. Todos provavelmente
a experimentaram quando eram mais novos: foram levados por
sua mãe para algum lugar, e ela fala de uma maneira que não
te deixa confortável e você pensa: ‘Por favor, pare’. Você
quer enfiar a cabeça na terra, mesmo que ela seja uma boa
mãe...
É esse sentimento, o ‘por
favor, mãe, de novo não’, que é a vergonha. Se ela não fosse
sua mãe, você só acharia que ela estava falando muito alto,
mas porque ela é sua mãe, você sente vergonha. Esse sentimento
é muito interessante. Ele liga a ideia da nação à emoção,
e podemos encontrá-lo em várias situações.
JU – O sr. poderia
exemplificar?
Anderson
– Eu acabei de ir a Fortaleza, onde visitei um museu militar
pequeno, de apenas duas salas, com fotos dos militares da
Guerra do Paraguai. É claro que o museu tem referências sobre
os grandes heróis que derrotaram o Paraguai. Mais tarde eu
estava conversando com o guia do museu e ele me disse: ‘É
tão vergonhoso, é muito vergonhoso; nós quase cometemos um
genocídio. Oitenta por cento dos homens do Paraguai foram
massacrados, e eu me sinto envergonhado sempre que penso sobre
isso’. Ele não se sente culpado, não acha que a culpa é dele.
Mas o país que ele ama o faz se sentir envergonhado.
Na Guerra do Vietnã muitos
americanos pensaram: ‘Isso é uma vergonha para nosso país,
queremos amá-lo e vejam o que nosso governo estúpido está
fazendo’. E assim por diante. Eu tento encontrar as diferentes
razões que levam as pessoas a acreditar na bondade de seu
país. E a vergonha é importantíssima nisso. Há muitas dimensões
nisso, mas é aí que temos que começar. É algo que você não
encontra em jornais e revistas com frequência.
JU – O livro
Comunidades Imaginadas já foi traduzido para cerca de 30 idiomas.
Que contribuições o sr. acredita ter dado com os conceitos
contidos na obra?
Anderson –
O escritor nunca é um bom juiz para esse tipo de coisa. Mas
há, agora, obras sobre a história das ideias, sobre nacionalismo,
e meu livro é visto como uma transição na maneira como esses
livros eram escritos. Até aquele momento, nos anos 80, as
pessoas escreviam sobre nacionalismo muito bem no que se referia
aos movimentos nacionalistas: como eles começavam, como agiam
e quem os apoiava. E esses livros são escritos basicamente
de um ponto de vista esquerdista e com um viés materialista.
Eu promovi, digamos, uma mudança de interpretação. Este livro
está na fronteira: é basicamente materialista, mas é um pouco
desconstrutivista.
Eu creio que a razão para
que seja um sucesso por tanto tempo – são quase trinta anos,
não? – é que ele liga as duas coisas: em primeiro lugar, os
que estudam o pensamento sem se preocupar com as bases materiais
e os materialistas. O segundo ponto é que a maioria dos livros
sobre nacionalismo até aquela época versava sobre a Europa.
Este foi o primeiro texto teórico que fez um esforço real
para estudar o nacionalismo fora da Europa, nas Américas e
também na Ásia. Isso o torna mais atrativo para professores
fora da Europa, dá um lugar na ordem das coisas.
JU – Em que medida
a globalização tem influência nas manifestações nacionalistas?
Anderson
- Eu não tenho certeza que exista influência… É uma questão
de como você compreende a globalização. Os EUA, por exemplo,
estão fazendo tudo o que podem para bloquear o livre comércio
com a China. Eles não querem deixar os chineses investirem
lá, eles impõem todo tipo de tarifa sobre comida e outras
coisas.
Na Europa, também: Portugal
contra Alemanha, França contra os britânicos e assim por diante.
Você pode notar em momentos de crise que a autopreservação
da nação é muito forte. Não iria me surpreender se o euro
caísse eventualmente.
Você
pode ver a mesma coisa na Primavera Árabe. É muito visível
que a retórica e as imagens são de protestos nacionais. Como
numa imagem que eu vi de uma multidão na Síria prestes a ser
atacada: três ou quatro blocos de pessoas estão segurando
bandeiras da Síria. Você ouve os egípcios dizerem: ‘nós estamos
envergonhados’. ‘Nós’ são os egípcios. Não são ‘os muçulmanos’
ou os ‘árabes’ como um todo. E isso muda de lugar para lugar
e pode parecer surpreendente para algumas pessoas, pois muitos
acreditam que o que existe para os muçulmanos é o Islã, mas
esse não é o caso.
Outra coisa que eu penso é
que as pessoas esquecem que, apesar da internet oferecer possibilidades,
a maioria da comunicação que acontece nela ocorre entre pessoas
que falam a mesma língua, e normalmente estão no mesmo país.
Apesar de as pessoas poderem se comunicar com o mundo todo,
a porcentagem que realmente o faz é, na verdade, muito pequena.
Também com o aumento da espionagem
industrial entre grandes empresas, o surgimento dos hackers
e tudo o mais, há muitos que acreditam que o sistema de internet
aberto que temos hoje será lentamente bloqueado por forças
maiores numa tentativa de se protegerem. Esse acesso globalizado
não será assim daqui a dez anos. Será algo como um acesso
protegido. Parece difícil, mas eu acredito que vai acontecer,
e que o nacionalismo é um dos grandes culpados.
JU – Em que medida
a crise econômica mundial exerce influência sobre manifestações
nacionalistas?
Anderson
- Bem, temos que olhar para os dois maiores ‘jogadores’: China
e EUA. O que mais chama atenção é como os chineses dizem que
a ‘grande China’ é melhor que todo o resto. Eles estão indo
mais rápido, gastando mais dinheiro... Na China, agora, há
uma novela muito popular sobre a Dinastia Ching, que foi deposta
pela Revolução Chinesa. Agora essas pessoas, que antes eram
más, são maravilhosas. E a principal razão para que elas sejam
maravilhosas é que elas são as pessoas escolhidas para conquistarem
o Tibete e o interior da Ásia como um todo.
Há uma China que se sente
mais forte a cada dia, onde tudo é nacional: prestígio é nacional,
prosperidade é nacional, a unidade é nacional e assim por
diante. E eles não hesitam em bloquear links eletrônicos que
minariam essa imagem.
Do outro lado, temos os EUA,
onde a política está muito deteriorada há dez anos. Parte
disso é, com certeza, o sentimento de que o tempo em que os
EUA dominavam o mundo está terminando. A América está imersa
neste problema, sua indústria não está mais ganhando facilmente
de todas as outras, e americanos não são muito bons em lidar
com desapontamentos. Eles são amigáveis aqui e agora, mas
veremos muito mais coisas acontecendo na América. Eles não
conseguem suportar a ideia de não serem mais o número um em
tudo. Mesmo nas coisas pequenas: não gostamos do futebol deles,
eles já não são os melhores nesse futebol, eles não têm sucesso
no tênis e algumas vezes estão apanhando até no basquete.
Vinte anos atrás os atletas americanos dominavam o mundo.
Eu vejo que não serão nada agradáveis os desdobramentos nas
relações bilaterais entre EUA e China. Países menores resolvem
suas diferenças de maneiras mais apropriadas.
JU – Ao responder
sobre a globalização, o sr. faz menção à eclosão da Primavera
Árabe. Como o senhor analisa os movimentos por mais liberdade
nos países islâmicos? O sr. acha que essas manifestações são
nacionalistas?
Anderson -
Bom, foi uma espera longa quando você pensa que alguém como
Khadafi está no poder desde 1969. São mais de 40 anos. Parece-me
que os aparelhos eletrônicos de comunicação e a internet ajudaram
muito esse movimento: eles permitiram uma coalizão pública
por meio da qual muitos grupos se juntaram rapidamente para
derrubar esse líder militar. Mas a natureza dos movimentos
populares é tal que, assim que o objetivo é alcançado, a coalizão
começa a quebrar. Os objetivos de grupos diferentes começam
a ser trazidos para o jogo. Creio que é por isso que os egípcios
e os tunisianos estão passando por tempos difíceis. Quando
a ação é conjunta, torna-se muito mais fácil derrubar um regime.
Já construir algo posteriormente, que vá agradar a todos,
pode levar muito mais tempo... E a outra coisa que eu notei
na minha experiência assistindo a ditadores na minha parte
do mundo – o sudeste da Ásia – é que você pode derrubar o
regime, mas é muito difícil mudar os hábitos que as pessoas
adquiriram sob ele. Por exemplo: pessoas se acostumaram a
quebrar leis. Homens de negócio e empregados pagam juízes
atrás de portas fechadas. Parar de fazer isso é difícil, pois
a corrupção já está profundamente enraizada. Um segundo motivo
é que o povo está acostumado à política personificada, no
sentido de que os partidos políticos, aqueles que tinham bases
genuínas, foram destruídos pelos militares. O que sobra disso
é algo antiquado, como se duas famílias representassem as
duas únicas possibilidades. Esse é o tipo de política que
se tem agora no Yêmen e no Egito. Quando o sistema entra em
colapso, coisas como famílias, clãs ou tribos se tornam importantes
novamente.
JU – É a quarta
vez que vem ao Brasil. Como está sendo esta visita?
Anderson
- Fui a Fortaleza pela segunda vez… Eu acho o Nordeste muito
interessante. Uma das coisas de que mais gostei em Fortaleza
foi ir a um museu dedicado ao cordel; é simplesmente maravilhoso.
Uma coisa muito estranha da qual eu gostei muito foi uma história
em que uma mulher mata o cavalo do marido por ciúmes e foge
com um bode (risos). Eu sempre me divirto aqui, sempre há
algo novo para se ver.
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Colaboraram Everaldo Luís Silva, Mateus
Fioresi e Júlia Rany Campos Uzun
Quem é
Benedict O’Gorman Anderson
nasceu em 1936, em Kunming, capital da província de Yunnan,
na China. Descendente de irlandeses e de ingleses, foi criado,
desde criança, na Califórnia, nos Estados Unidos. É irmão
do historiador marxista Perry Anderson. Estudou em Cambridge
e se especializou em estudos da política e história da Indonésia
e do sudeste Asiático. É professor emérito da Universidade
de Cornell.
Além de Comunidades Imaginadas,
publicou outras cinco obras. Em Java in a Time of Revolution:
Occupation and Resistance, ele analisa a revolução na Indonésia
de 1945 no âmbito da ocupação japonesa. É um estudo em profundidade
sobre a crise e independência na Indonésia.
Também sobre o país, ele
escreveu, em 1985, In the Mirror: Literature and Politics
in Siam in the American Era e, em 1990,Language and Power:
Exploring Political Cultures in Indonesia. Suas obras mais
recentes são The Spectre of Comparisons: Nationalism, Southeast
Asia, and the World, de 1998, em que refina as teorias sobre
nacionalismo em Comunidades Imaginadas, e Under Three Flags:
Anarchism and the Anti-colonial Imagination, de 2005.
Um clássico do pensamento
ELIANE
MOURA DA SILVA
É
muito difícil fazer justiça em poucas palavras às sofisticadas
análises de Benedict Anderson sobre o nacionalismo. O livro
Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão
do nacionalismo (1983) é a mais original abordagem sobre
o tema. Especialista em Sudeste Asiático, ele viveu e realizou
pesquisas na Indonésia, Sião e Filipinas. O primeiro impulso
para escrever o livro sobre o tema surgiu durante o período
da Terceira Guerra da Indochina (1978-1979) entre a China,
Camboja e Vietnã ao observar que, desde a Segunda Grande
Guerra, toda revolução bem sucedida se definia em termos
nacionais. Dessa forma, pareceu a ele que compreender a
história do nacionalismo, tinha na questão cultural e nos
artefatos simbólicos, particularmente nas transformações
da consciência, o elemento central para pensar, definir
a existência das nações. Desenvolvendo seus estudos, teorias
e metodologias influenciado por pensadores como Erich Auerbach,
Victor Turner e Marc Bloch, entre outros, seu trabalho foi
ganhando uma dimensão e erudição que acabaram transformando
o livro num grande clássico da história do pensamento do
século XX.
Para Anderson, as origens
culturais das nações modernas podem ser encontradas em alguns
momentos históricos modernos: na mudança na concepção de
tempo, no declínio das comunidades religiosas e dos impérios
dinásticos, no desenvolvimento da cultura impressa de massas
(livros, jornais) em línguas vernáculas. Tendo especificado
as causas gerais subjacentes ao desenvolvimento das nações,
explorou as mudanças particulares em contextos culturais
e históricos. Começou por considerar a América Latina, onde
– de forma controversa e interessante – apontando as comunidades
crioulas das Américas como o meio onde a consciência nacional
emergiu antes de aparecer na maior parte da Europa e de
forma diferente da europeia em dois aspectos: conduzida
por elites crioulas e não por intelectuais; o idioma não
teve um aspecto tão fundamental uma vez que as colônias
partilhavam a língua comum das metrópoles imperiais.
Os nacionalismos na Europa
foram diferentes em dois pontos: em primeiro lugar, o papel
desempenhado pela imprensa em idiomas considerados nacionais
e a própria ênfase na língua nacional; em segundo lugar,
os problemas políticos que derivaram da existência de vários
impérios dinásticos do século XIX que nada tinham com qualquer
noção do moderno nacionalismo. Essas similaridades também
podem ser encontradas em movimentos nacionalistas e nos
conflitos políticos nos vastos territórios da Ásia e da
África.
Com referência aos nacionalismos
anticoloniais, Anderson vai demonstrar que foram inspirados
nos primeiros movimentos europeus e americanos. E tiveram
consequência da administração colonial partilhada entre
europeus e nativos ao longo de todo o século XIX. Isso permitiu
o surgimento de uma intelectualidade local, bilíngue e com
acesso aos modelos de nação e de nacionalismo, e que teve
papel fundamental para copiar, adaptar e aprimorar as experiências
anteriores. Nas condições do século XX, a construção de
sistemas culturais nacionais foi muito fácil.
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