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O passado sai do esconderijo
Tese analisa manifestações de grupos que preservam
memória afro-brasileira em Campinas

Grupos de Campinas escancaram o passado negro da cidade por meio da dança e da música. As performances afro-brasileiras de Urucungos, Puítas e Quijêngues, Jongo Dito Ribeiro, A Casa de Cultura Tainã e Maracatucá são vistas pela antropóloga Érica Giesbrecht como a chave do velho baú que escondia o passado negro de uma das cidades mais negras da região Sudeste no Brasil escravo. Antropóloga nascida em Campinas, ao ver pela primeira vez o grupo Urucungos, do qual faz parte desde 2004, não resistiu ao ritmo nem a sua riqueza documental e decidiu estudá-lo, entre outros grupos, em sua tese de doutorado na área de etnomusicologia. “Os grupos que pesquisei olham para esse passado e escancaram-no, por meio de performance, música, dança, figurinos, lugares, pessoas. Quando comecei a ensaiar, percebi que eles não faziam aquilo somente porque achavam bonito, mas tinham consciência do que estavam fazendo”, explica.

Para Érica, o corpo é o lado mais profundo das performances. Ela se ateve justamente na relação dos membros dos grupos com o corpo. A antropóloga explica que o corpo negro foi socialmente renegado, pelos traços, pela cor da pele. Mas, nos grupos, as pessoas construíram uma relação com o corpo que passa a valorizá-lo. “Quando dançam e batem aqueles tambores, a postura muda, o cabelo assanha e muda o posicionamento no mundo. A grande revolução para mim é o que muda de fato: a postura de entrar no teatro, de entrar no Cambuí [bairro nobre de Campinas], em qualquer lugar. Do jeito que está. Não é só ação afirmativa. É um corpo inteiro entrando e dizendo ‘sou negro sim. E daí?’ Não usam de subterfúgios burgueses para ser aceitos. E não aprendem isso em partidos políticos ou numa militância; aprendem dançando”, reforça.

Ela enfatiza que, enquanto dançam, o corpo trabalha, se movimenta e eles aprendem lições ancestrais, pois entendem que aquele corpo descende de pessoas que fizeram travessia forçada no Atlântico, com uma cultura específica e batalharam por sua liberdade. “Isso tudo está nas letras da música e no jeito de tocar tambor”, acrescenta Érica. A partir disso, eles querem entender suas próprias histórias.

Os grupos conseguem tirar o passado do esconderijo ao mostrar à sociedade que aquela música ou aquela dança existe, na opinião da antropóloga. E se existe é porque vem de algum lugar e, a partir daí, crianças e adultos entendem que o passado é muito mais rico do que se ensina na escola. “Ali, existe muita ancestralidade poderosa”, enfatiza Érica.

De acordo com Érica, alguns líderes desses grupos participaram de movimentos negros nitidamente políticos no passado, como o Movimento Negro Unificado (MNU). Na década de 1970, as pessoas que lidavam com as causas negras atentaram para o fato de que poderiam lutar contra o preconceito também por meio da cultura expressiva. Segundo Érica, houve um momento de ruptura entre movimentos políticos e culturais, embora os grupos culturais nunca tenham deixado de ser políticos e nunca tenha sido interrompido o diálogo entre ambas as partes. O que eles encontraram, na percepção de Érica, foi uma outra forma de fazer política. “Sinto isso na fala das pessoas. Essa mobilização dos grupos teve consequências para além da dança. Ela fez com que as pessoas se entendessem como expressivas”, reforça Érica.

Na origem, as culturas expressivas afro-brasileiras também eram estratégias de sobrevivência, lembra a pesquisadora. Capoeira, jongo, maracatu eram meios de integração e comunicação entre populações negras. Disfarçadas, essas atividades podiam servir como treino para o corpo para uma possível luta, para o culto ancestral ou para comunicar fugas. As músicas, muitas vezes, eram meio de ironizar os senhores de uma forma que eles jamais desconfiariam.

Hoje em dia, essas expressões têm ganhado força com a onda de valorização da diversidade cultural do novo milênio. Se logo após a abolição da escravatura a capoeira ou candomblé eram coisa de marginal, passaram a ser valorizadas como “patrimônio imaterial” na atualidade, segundo a antropóloga. “Isso nos daria uma falsa ideia de que deixaram de ser meios de luta.” Contudo, engana-se quem pensa que esses grupos têm a pretensão de ser avaliados apenas pelo viés da arte ou especificamente da música. Suas expressões são, para além de artísticas, formas sagazes de resistência, porque, por meio do treino do corpo, mudam o posicionamento de seus participantes diante do mundo.

“Se eu entrasse no mérito de discutir se é arte ou não, iria quebrar cabeça à toa. É uma expressão do ser humano. E essas pessoas decidiram que têm de lutar com isso”, esclarece. Ela pontua que alguns grupos nem mesmo se compreendem com artísticos: para os membros do Dito Ribeiro, por exemplo, o que fazem não é arte, fazem jongo e pronto, segundo Érica. A pesquisa também não tem a preocupação de avaliá-los como músicos, saber se leem partitura, de acordo com a pesquisadora. No Dito Ribeiro, eles não têm ensaios, mas sim encontros. Quando chegam ao local marcado, eles fazem a roda e imediatamente abrem espaço para o público entrar e aumentar o círculo.

No final da década de 1980, os brasileiros começam a dar maior visibilidade aos debates sobre cultura negra. Em Campinas, Raquel Trindade, pesquisadora da cultura afro-brasileira e diretora do Teatro Popular Solano Trindade (Embu das Artes-SP), chega com uma bagagem gigantesca de informações e encontra muitas pessoas com sede de aprender mais. É dessa fonte que o Urucungos bebe desde que foi fundado por Raquel, segundo Érica.

Em outro canto de Campinas, na Vila Castelo Branco, a Casa de Cultura Tainã começa a desenvolver um trabalho com os tambores de aço, o que, na opinião de Érica, marca a abertura do pan-africanismo em Campinas. “Desde a década de 1990 há muita gente bebendo dessa fonte”, acrescenta Érica. Esses movimentos chegam a Campinas e incutem nos praticantes um forte desejo de descobrir sua ancestralidade, saber de onde vieram pais e avós: “da Bahia ou da África?”. Eles querem, segundo Érica, saber como foi a vida desses negros em Campinas. Na década seguinte, há um grande interesse por informações que ajudem a tecer a memória da família de muitos membros dos grupos. “Eles pegam a memória das famílias Ribeiro, Balthazar, Estevam, entre outras, e se envolvem num movimento forte, principalmente a partir da primeira década de 2000, para entender e rememorar o passado negro em Campinas”, diz Érica.

Apesar de não estarem diretamente ligados à academia, muitos jovens desses grupos têm buscado hoje instrumentalização acadêmica. A própria Alessandra Ribeiro, líder do jongo Dito Ribeiro, é mestre em arquitetura e urbanismo. Segundo Érica, quando o pessoal do jongo ocupou a Fazenda Roseira, Alessandra quis entender melhor o processo de retomada. O avô, Benedito Ribeiro, trouxe o jongo para Campinas em 1930, mas a manifestação foi suspensa quando faleceu, e Alessandra decidiu fundar o grupo em 2003. “Ela é somente um exemplo, mas muitos membros se instrumentalizaram na academia. Muitos dos participantes da Casa Tainã foram capacitados e foram trabalhar em ministérios públicos”, acrescenta. A Casa foi pesquisada justamente pelas bases que ofereceu para a formação de outros grupos culturais negros.

Érica explica que a ideia do passado negro vem da ambiguidade do título. “Passado negro é algo a esconder, algo que não se quer mostrar. E, conhecendo Campinas, do Parque Oziel ao Cambuí, eu percebia que a cidade não queria mostrar esse passado, apesar de ter uma população negra de 14 mil pessoas na época da escravatura. Eu entendo essa relação de uma Campinas que não se vê negra”, explica. Ela enfatiza que Campinas foi um dos últimos impérios econômicos do interior de São Paulo, com a produção de café, mas isso não é reconhecido. De acordo com Robert Wayne Slenes, em 1880, era a maior população escrava do Brasil.

Hoje, todos os grupos realizam pesquisa com viventes mais velhos de sua comunidade. Quando isso acontece, descobrem que há um percurso para chegar à memória negra e para descobrir o que seu corpo faz nesse mundo. De acordo com Érica, o trabalho com os mais velhos consiste em entrevistas, conversas longas nas quais os mais jovens vão aprendendo histórias, hábitos, experiências, danças e músicas e documentando a memória de um passado negro, tirado do baú do descaso. “Tem uma hora que eles nos envolvem na dança. Até hoje me emociono quando estou lá”, comenta Érica.

Dissertação: “O passado negro: a incorporação da memória negra da cidade de Campinas através das performances de legados musicais”
Orientadora: Lenita Nogueira
Unidade: Instituto de Artes (IA)
Financiamento: Fapesp

 

 



 
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