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Posse em 1982 pôs fim a grave crise institucional

A mais grave crise vivida pela Unicamp, quando esteve sob intervenção do governo do Estado durante cinco meses, só começou a ser superada com a posse de José Aristodemo Pinotti na reitoria em 19 de abril de 1982. Embora não fosse o candidato preferido da comunidade (na lista indicativa, que ainda não era regimental, ele foi apenas o décimo primeiro colocado) fez composições internas e iniciou um processo de institucionalização que conferiu leis próprias e pacificou a instituição. O presente texto, que narra esse esforço de conciliação e a tumultuada cerimônia de posse do terceiro reitor da Universidade, integra o livro O Mandarim – história da infância da Unicamp, publicado pela Editora da Unicamp em 2006 e reeditado em 2007.

EUSTÁQUIO GOMES

“Há uma dinâmica de criatividade nos conflitos: discuti-los é chegar a algo novo”, disse Pinotti em seu discurso de posse (Foto: Arquivo Siarq) A três semanas de sua posse como o terceiro reitor da Unicamp na linha de sucessão de Zeferino Vaz, Pinotti deu uma entrevista a O Estado de S. Paulo em que relativizou a crise da Unicamp inserindo-a num contexto de normalidade histórica. Lembrou que a primeira universidade do mundo, a de Bolonha, vivera um período de conflito logo após sua implantação em 1088, e que da crise da Universidade de Paris nascera, em 1249, a Universidade de Oxford.

— A meu ver, é importante que a crise não seja prolongada e que seja aproveitada para que se façam modificações necessárias, permitindo um novo período de crescimento. Uma crise curta pode ser sadia para a universidade, porque pode ser criativa, esta é a essência da universidade — o seu poder de criação. Uma crise longa seguramente é uma crise negativa para a universidade e pode sepultá-la de vez, se não for solucionada.1

Ciente de que era preciso, o quanto antes, começar a cauterizar as feridas da crise, Pinotti não perdeu tempo: chamou à mesa de negociação os descontentes, a começar pelos oito diretores exonerados. Sua primeira providência foi trazer Maurício Prates e Eduardo Chaves [respectivamente, diretores da Faculdade de Engenharia e da Faculdade de Educação] à Chácara Gramado, o haras onde vivia à margem da rodovia Campinas-Mogi Mirim. Disse a eles que pretendia pacificar o quanto antes a univesidade.

— Do que vocês precisam para retirar os processos? indagou.
Falando em nome dos oito diretores exonerados, ambos relacionaram quatro pontos que, se atendidos, abririam caminho para a paz: a reintegração imediata dos diretores, a anulação da portaria que os exonerara, o pagamento das gratificações de cargo que Plínio lhes suspendera havia seis meses e, por último, a garantia de que se iniciaria um processo de institucionalização da Unicamp. Pinotti concordou com tudo e até acrescentou um ponto mais: estava disposto a reintegrar também os 14 funcionários demitidos. Foi mais além, prometendo-lhes “o espaço político que desejassem, desde que não na esfera da mais alta administração, que já estava definida”.2 Reunidos naquele mesmo dia para analisar o assunto, os diretores exonerados acharam a proposta mais que razoável e, em bloco, dias mais tarde, assinaram um acordo na Justiça para a retirada das ações judiciais. Apesar das insatisfações que ressumavam e se reavivavam esporadicamente, inclusive depois da tumultuada posse de Pinotti na noite 19 de abril, a verdade é que a Unicamp, a partir dali, começou a retomar sua normalidade. Foi em tom construtivo, por exemplo, que a Associação de Docentes deu partida ao ano letivo de 1982 — já em si um indício de normalidade — listando as condições que seu novo presidente, o cientista político Eliézer Rizzo de Oliveira, julgava necessárias para a restauração da democracia interna:

... a reformulação dos estatutos [que deveria contemplar necessariamente] a desvinculação da carreira docente do exercício de funções administrativas, a ampliação da representação discente no Conselho Diretor, a descentralização administrativa da Unicamp em direção a uma maior autonomia das unidades, a volta imediata dos funcionários demitidos, a defesa e a ampliação das eleições diretas nas unidades para a escolha dos dirigentes universitários e o estabelecimento de compromissos da Reitoria em acatar tais deliberações, a necessidade de o Conselho pronunciar-se nas campanhas salariais, colocando-se ao lado das reivindicações dos docentes e funcionários.

Muitas dessas exigências já estavam na pauta de Pinotti, acertada com os economistas três meses antes. No dia da posse, podia-se dizer que a pacificação já estava em curso, embora não ainda em velocidade de cruzeiro. À falta de um salão na universidade com mais de 300 lugares, Pinotti deslocou a cerimônia para o principal anfiteatro da cidade, o do Centro de Convivência Cultural, com 500 poltronas. Ali poderia acomodar não só professores e autoridades, como também a vasta legião de convidados que mandara listar — da sociedade campineira, do país e do exterior. Todos os atingidos pela intervenção estavam presentes, exceto Maurício Prates (“por desconforto moral”, segundo o próprio). Rubem Alves, para fazer jus ao ofício que lhe solicitava “comparecer em vestes talares”, surgiu com uma soberba vestimenta de senador romano emprestada do reverendo James Wright, ex-professor da universidade americana de Notre-Dame, que então residia em Campinas.3 Vendo nisso um sinal de derrisão, os estudantes explodiram em aplausos quando Rubem surgiu no salão. Assim vestido, Rubem colocava-se à altura dos “guardas suíços” guarnecidos de lanças que os organizadores da festa, a pedido de Pinotti, postaram de cada lado do palco. Com Rubem, Pinotti gracejou antes do início da sessão, provocando o riso dos circundantes:

— Devo admitir que você ofuscou a minha beca verde.
Tudo isso serviu para espairecer os ânimos, mas também assanhou os estudantes que se comprimiam nas laterais do anfiteatro. Sob a beca, Pinotti exibia uma portentosa bota de gesso, consequência de uma queda de motocicleta sofrida dias antes, ao atravessar um campo de futebol. Foi claudicando que desceu a escadaria interna do teatro, sob intensa vaia dos estudantes. A zoada prosseguiu quando ele começou a ler seu discurso, aumentava quando ele subia o tom, para em seguida baixar a uma espécie de cantilena que despertava o riso, mas também o constrangimento da platéia. Nesse ponto Pinotti deu um golpe de mestre e, por assim dizer, iniciou ali seu estilo florentino de comandar, capaz de aliar a autocracia à sedução. Um cronista da cidade resumiu assim o episódio:

Aquele salão de Campinas, nessa noite abafada de abril de 1982, era bem o retrato da universidade conflagrada, dividida e imobilizada que espera o seu novo reitor — sob litígio, sempre! — como a tribo que consagra seu novo chefe para em seguida contestar-lhe a autoridade. Compreendi que não lhe passavam somente a toga, mas também um barril de pólvora. Ao iniciar as saudações de seu discurso de posse, o novo reitor viu-se impossibilitado de continuar, tal a zoeira que vinha das galerias. Tememos pelo que poderia suceder. Elevando a voz, mas sem perder a serenidade, ele disse: “Vocês foram respeitados em seu direito de entrar e participar; exijo agora que respeitem o meu direito de falar e de ser ouvido”. A platéia incrédula viu as galerias silenciarem. O princípio da autoridade havia recuperado alguns pontos.4

A partir dali, Pinotti discursou até o fim sem ser interrompido. O público, tomado da exultação que com frequên­cia acomete as multidões quando identificam a figura de uma autoridade nova, passou a aplaudir de um modo tão frenético as melhores (e as piores) passagens do discurso que terminou por inibir (literalmente, destruir) a resistência dos estudantes. Um ponto alto foi quando o novo reitor, já com a toga nos ombros, citou a teórica Mary Parker Follet, renovadora do pensamento administrativo americano a partir da década de 20:

— Conflitos não devem ser eliminados, mas integrados. Há uma força construtiva nos embargos conflituosos. Há uma dinâmica de criatividade nos conflitos: discuti-los é chegar a algo novo.

No parágrafo final, dirigiu-se a Zeferino Vaz como se ele estivesse presente, o mesmo Zeferino com quem tantas vezes conflitara, mas que chegou a pressagiar que Pinotti seria reitor um dia:

— Meu caro Zeferino Vaz, abrigado em sua capa e protegido por seu espírito, prometo dar o melhor de mim para dirigir a universidade que o senhor construiu, dirigiu e respeitou.
Foi aplaudido de pé.

 

1 “Como Pinotti pretende dirigir a Unicamp — uma escola em crise”. O Estado de S. Paulo, 2/2/1982.

2 Depoimento de Chaves em seu site pessoal. Com efeito, na gestão Pinotti (1982-1986) Maurício Prates foi coordenador do Núcleo de Automação Industrial, criado especialmente para ele e seu grupo; Eduardo Chaves foi assessor especial para convênios e contratos; e Rubem Alves atuou como assessor de relações internacionais.

3 James Wrigth, evangélico americano que organizou o projeto Brasil Nunca Mais com o arcebispo de São Paulo, D, Paulo Evaristo Arns, de 1979 a 1985.

4 Eustáquio Gomes, introdução ao livro Ação e Reflexão, coletânea de artigos e discursos de José Aristodemo Pinotti, Papirus, 1996.


BIOGRAFIA

Nascido em 20 de dezembro de 1934, José Aristodemo Pinotti era filho do dentista Alfredo Pinotti e da educadora sanitária Anna Bove Pinotti. Formado em 1958 pela Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), foi professor titular e chefe do departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Unicamp de 1972 a 1982; diretor da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp de 1970 a 1971 e de 1976 a 1980; diretor executivo do CAISM, de 1985 a 1986; diretor executivo do Instituto da Mulher do Hospital das Clínicas de São Paulo e chefe do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da USP.

Em 1982, então professor da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, assumiu como reitor efetivo da Universidade, dando início à reconstrução física do campus e à implementação de um amplo processo de institucionalização interna e de reforma dos Estatutos. Em 1983, é instalada a Prefeitura do campus e amplia-se a discussão da reforma institucional da Universidade, que funcionava com estatutos emprestados da Universidade de São Paulo (USP). A reforma das leis internas contou com a participação de professores, alunos e funcionários, num processo semelhante ao de uma Constituinte.

No mesmo ano, são inaugurados o Parque Ecológico, responsável pela manutenção do campus e de sua área verde, e o Serviço Médico e Odontológico para a comunidade interna. Surge a Orquestra de Câmara da Universidade e consolida-se a instalação do Centro de Informação e Difusão Cultural (Cidic), órgão que desencadeou a modernização do Sistema de Bibliotecas e a política de preservação da memória da Universidade. Naquele ano Pinotti também assina contrato de empréstimo junto à Caixa Econômica Federal (CEF)/Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social para término das obras do Hospital das Clínicas (HC) e é oficialmente criado o Instituto de Geociências (IG).

Em 1984 é criado o Instituto de Economia (IE) e são retomadas antigas obras paralisadas, que ao final da gestão dobrariam a área útil do campus. No ano seguinte, o último de Pinotti à frente da Unicamp, surgem novas unidades: a Faculdade de Educação Física (FEF), cujas primeiras atividades foram desenvolvidas pela Assessoria Técnica da Reitoria para Educação Física e Esportes (Atrefe), criada em 1972; e do desmembramento da Faculdade de Engenharia de Alimentos e Agrícola (FEAA) originam-se a Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) e a Faculdade de Engenharia Agrícola (Feagri). Um dos seus maiores orgulhos foi ter criado, em 1986, o Caism, hospital voltado ao atendimento da mulher e do recém-nascido, desenhado em moldes ingleses de assistência.

Especializado em ginecologia pela Università Di Firenze (Itália), o médico era membro da Academia Paulista de Medicina e professor-adjunto da Universidade La Sapienza (Itália). Teve passagens pelos hospitais Hospital Pérola Byington, onde fez sua residência, e pelo próprio Sírio-Libanês. Tem mais de 1.300 publicações, entre as quais 37 livros científicos, mais de 450 artigos em revistas e jornais especializados nacionais e estrangeiros, duas teses publicadas, dois livros de poemas e colunas sobre saúde assinadas em jornais.

O médico também atuou na vida política, entre cargos de secretário da Educação e da Saúde tanto do Estado quanto da Prefeitura, entre 1987 e 95. Em 1995, ele assumiu cargo de deputado federal, pelo PMDB, e conseguiu sua segunda legislatura em 2002. Pelo DEM (ex-PFL), ele foi eleito para sua terceira legislatura. 

(Eustáquio Gomes,
atua como jornalista na Unicamp
desde março de 1982)


 
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