Os professores Antonio Augusto Gomes
Batista (UFMG), Maria Rosa Rodrigues Martins de Camargo
(Unesp), Milton José de Almeida (Unicamp), o historiador
Peter Burke (Universidade de Cambridge) e os escritores
Affonso Romano de Sant'Anna e Ignácio de Loyola Brandão,
todos integrantes de mesas do 17º Cole, opinam sobre
o papel da leitura e avaliam o impacto da internet na difusão
do conhecimento.
AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA
1) Parafraseando trecho de poema de Manoel de Barros
que integra o temário do 17º Cole, como é
possível "transver" o mundo?
2) Qual o papel da leitura no mundo contemporâneo?
3) Qual o impacto da internet e das novas tecnologias na
difusão da leitura?
1)
Esta palavra é muito sugestiva -"transver".
Manuel de Barros, mais do que "transver" , "transverberou".
Literatura é isto, é a "transverberação"
do mundo. Gosto desta palavra, porque há aí
o "verbo", mas há a "ação",
tudo isto impulsionado pelo prefixo "trans" que
atravessa e impulsiona tudo. Poesia é isto,"transverberação".
A literatura é algo escrito, ligada ao verbo, mas
é também um modo de "ver". Por isto,
dizia Drummond, que quando ele morresse, morreria também
um certo modo de "ver" o mundo. E os escritores
são pessoas que através da palavra ensinam
as pessoas a verem e reverem o mundo. Veja só: o
mundo é um antes e um depois de Kafka. Ele nos ensinou
a ver o mundo de outro jeito. Você não vê
nunca mais o sertão da mesma maneira depois de ler
Guimarães Rosa.
Então, retomando um tema de que tratei em "A
cegueira e o saber" (Ed. Rocco), viver & escrever,
ou como costumo dizer, " escreviver" - é
um modo de aprender a ver, de revelar o modo de ver e de
ser. Como diriam outros, um modo de desvelar, revelar. Primeiro,
o autor se espanta com o que viu. O verdadeiro artista é
aquele que está vendo as coisas mais banais, sempre
pela primeira vez. É essa a grande lição
de Clarice Lispector, naquilo que, estudando sua obra, apontei
como "epifania": a revelação dentro
da banalidade da vida. Uma personagem sua sai para fazer
compras e pegar um bonde e, de repente, já não
é mais a mesma pessoa. No crepúsculo, no lusco-fusco,
nessa região intermediária, acontece a "epifania".
Sua vida se enriqueceu de uma estranheza maravilhosa e incomunicável.
Pois o artista é o que teima em comunicar a incomunicável
estranheza do mundo.
2) Ter sido presidente da Fundação Biblioteca
Nacional durante seis anos, ter viajado e conhecido as maiores
bibliotecas do mundo, ter convivido com grandes bibliotecários,
ter sido levado a pensar metodicamente sobre o livro, a
leitura e a biblioteca, tudo isto, enriqueceu minha vida
para sempre. Nem as mesquinharias da vida burocrática
conseguiram empobrecer minhas experiências.
A partir daquela época, não apenas como escritor,
mas como agente cultural vivenciei momentos exponenciais,
diria de certa "epifania" nessa relação
com o universo da leitura. Ainda agora estou entregando
para publicar um livro intitulado "Ler o mundo",
no qual vou reunir três tipos de materiais: a) as
crônicas que publiquei relacionadas com a leitura;
b) os ensaisos e conferências que fiz aqui e ali teorizando
sobre leitura-livro-biblioteca: e c) a história de
minha experiência na FBN e nesse universo nos últimos
20 ou 30 anos.
Nessa sociedade em que a tecnologia chega de modo avassalador,
em que qualquer suporte envelhece rapidamente, a questão
da leitura se impõe como tema central. Como digo
num determinado texto: "Tudo no mundo é leitura.
Tudo é decifração. Ou não. Depende
de quem lê". Por isto, até esse "ou
não" tem que ser lido e interpretado.
Me lembro que nos anos 90 do século passado, James
Billigton, da Biblioteca do Congresso Americano, nos anunciava
que ia passar todo o acervo daquela biblioteca para o CD
Rom. Tinha 200 milhões de dólares para isto.
Pois bem. Em menos de dois ou três anos, o CD Rom
deixou de ser o suporte ideal. Foi superado. Historicamente
passou a ser quase um incunábulo, coisa do passado.
No entanto, a questão da leitura permanece como desafio.
A internet é o exemplo disto. E está nos obrigando
a ler, reler nossas teorias. Da posição anterior
em que havia um modelo de comunicação baseado
na "estrela" - no qual a comunicação
se irradiava de um ponto central para a periferia, passamos
para um momento de irradiação da informação
em todas as direções. Isto é passar
do universo de Ptolomeu para o de Copérnico, de Newton
para Einstein. E lidar com leitura hoje é lidar com
essa revolução.
Me lembro que numa reunião com editores, na Câmara
Brasileira do Livro, tentando alertar-lhes para o novo sentido
da leitura na sociedade contemporânea, lhes dizia:
"quando eu falo de leitura não estou falando
de leitura, mas de leitura". E o diabo é que
tive que explicar isto não só para eles, mas
para um ministro tipo Antonio Houaiss.
3)
Não dá para fazer profecias. Todo dia tem
um artefato novo, um programa novo. O fato é que
as pessoas estão sendo obrigadas a ler e a escrever
mais e mais. A língua vai se modificar? Vai, é
claro. Sempre se modificou. Nossa percepção,
nossa velocidade de percepção vai se alterar?
Vai. Vamos ficar melhores? Não sei, gostaria.
E este é o grande desafio. As melhorias tecnológicas
não têm correspondido a uma melhoria ética
e estética. Veja a indigência da arte hoje
em dia, sobretudo as artes plásticas. E a ética,
onde foi parar com a superposição do particular
e do público, do centro e da periferia? Não
se trata de voltar a modelos cêntricos anteriores,
mas de fazer correções no rumo das coisas.
E nisto os artistas, os escritores têm imensa responsabilidade.
O imaginário ajuda a organizar a realidade. A realidade
é apenas a parte mais visível da ficção.
Quem sabe ler e interpretar não fica à deriva
diante do caos.
ANTONIO AUGUSTO GOMES BATISTA
1) Vamos deixar o principal da resposta ao Manoel
de Barros mesmo. Eu gosto muito dos trechos em que diz:
"A expressão reta não sonha./ Não
use o traço acostumado"; e ainda: "Arte
não tem pensa:/ O olho vê, a lembrança
revê e a imaginação transvê./
É preciso transver o mundo".
Gosto ainda mais da explicação que o próprio
Manoel de Barros dá para o último verso: "Isto
seja:/ Deus deu a forma. Os artistas desformam./ É
preciso desformar o mundo:/ Tirar da natureza as naturalidades".
Eu repito então com ele: é preciso (e é
possível) "transver" o mundo tirando "da
natureza as naturalidades" construídas pela
suposta obviedade das coisas e do mundo.
2) Eu não saberia responder a essa pergunta
de modo tão geral. Talvez pensar algumas condições
para respondê-la seja mais proveitoso. É preciso,
por exemplo, colocar em suspeição (tirar "as
naturalidades", como disse o Manoel de Barros) isso
a que se chama "mundo contemporâneo" e sua
suposta homogeneidade. Qualquer sociedade é marcada
pelo fenômeno da desigualdade social, que tende a
organizar distintos tempos sociais. A suposta "contemporaneidade"
não é a mesma para todos.
No Brasil, por exemplo, para uma parte importante da população
é o problema do acesso à língua escrita
que se coloca. Os dados do Indicador Nacional de Alfabetismo
Funcional (Inaf) mostram que cerca de 30% da população
brasileira possui um domínio muito restrito das habilidades
que permitem participar de modo pleno da cultura escrita.
Ao mesmo tempo, para outra parte da população,
os problemas que estão se colocando são inteiramente
novos: outro dia me encontrei com uma professora que, para
minha surpresa, trabalha numa escola privada, nas séries
iniciais, com robótica e com a linguagem computacional
necessária para o desenvolvimento de robôs.
Outro ponto que me parece importante é relativo à
idéia mesma de que a leitura tivesse um "papel".
A leitura é uma prática muito complexa para
que se possa falar em um único "papel"
ou "função" geral. Uma direção
possível para refletir sobre os papéis é
levar em conta a esfera da atividade humana a que se está
referindo: na jornalística?; na escolar?; na literária?
Na escola, por exemplo, está parecendo que ocorre
um fenômeno geral: uma presença maior de uma
leitura com fins instrumentais e ligadas a uma cultura técnico-científica,
em detrimento de uma leitura que tem um fim em si mesmo,
associada a uma cultura literária. As políticas
curriculares, em escala mundial, parecem atribuir cada vez
mais prestígio às práticas de leitura
e escrita associadas à cultura do primeiro tipo.
Como avaliar essas mudanças sem cair numa posição
nostálgica nem numa posição de deslumbramento
irrefletido é uma outra questão importante
para realizar uma discussão mais proveitosa do tema.
3) Evidentemente as novas tecnologias ampliam o acesso
a textos e modificam nosso modo de nos relacionarmos com
o conhecimento e com a informação (assim como
de nos relacionarmos com os outros; basta pensar no MSN,
no e-mail, no twiter e nos sites de relacionamento). Como,
porém, eu trabalho com sociologia, me interessam
mais de perto os efeitos sociais das novas tecnologias de
produção, transmissão e preservação
do conhecimento e da informação.
A introdução de uma dessas novas tecnologias,
historicamente, gera quase sempre o mesmo efeito, que em
sociologia se chama "estatutário": produz
uma divisão (e uma desigual distribuição
de poder) entre aqueles que dominam e aqueles que não
dominam essas tecnologias.
Para ir na contramão de certa fascinação
com o mundo digital: acabo de ler um excelente trabalho,
de Maria José Francisco de Souza, sobre a difusão
da escrita (em seus suportes tradicionais), numa comunidade
de meio rural do Norte de Minas. Ela estudou o modo como,
nessa comunidade de quilombolas muito marcada pela oralidade,
a escrita exerceu um efeito de expropriação
e de rearranjo na atribuição de poder e status,
analisando as memórias de benzedeiras e rezadeiras.
Com a difusão e a intensificação do
uso de uma tecnologia - a escrita - nas práticas
religiosas da igreja católica, essas mulheres perderam
de modo muito repentino seu lugar social e tiveram de inventar,
não sem uma forte carga de sofrimento, algum modo
de incorporar a escrita em suas vidas e reencontrar um lugar
num universo social e cultural que se alterou radicalmente.
IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO
1) Transver o mundo? Mas ainda não estamos
conseguindo ver o mundo. Imagine transver. A existência
da literatura, a compulsão dos escritores sempre
foi no sentido de ver o mundo. Como jamais conseguimos ver
o suficiente, escrevemos um novo livro, e um outro e mais
um. Os escritores se lançam em todas as direções,
de todas as maneiras, a cada momento, procurando modos de
ver o mundo, ver a vida, entender a existência, o
por quê da vida, o por quê do mundo.
Transver, no meu entender, é mais uma daquelas palavras
acadêmicas criadas para se teorizar em cima, elaborar
conceitos complexos e, muitas vezes, ininteligíveis.
Alguns levantam a questão do transver. O transver
daria teses de milhares de páginas para serem encadernadas
e guardadas nos arquivos.
E a preocupação com o ler? Quem lê de
que modo transvê? E os que não leem? Não
transveem? Para mim, a questão é ler, é
ver, é entender. E um dia transver. Aliás,
vou mais além, minha preocupação é
escrever, é criar. Se estou transvendo isto compete
aos ensaístas, aos analistas descobrirem.
2) Na primeira resposta está a resposta da
segunda pergunta. O papel da leitura é dar prazer,
é divertir, é entreter, é provocar
a cabeça, é questionar, é a partir
da leitura compreender a realidade a nossa volta, saber
em que mundo vivemos, qual é a nossa vida e em torno
de nós, é conhecer o meio, as situações,
as paixões, se embeber de emoções e
sentimentos. O papel da leitura é nos obrigar a pensar,
a refletir.
3) Por enquanto, acho que ainda nenhum. Leitor de
internet é leitor de internet. Um leitor particular
que deverá ser estudado. O leitor de livro em papel
é um. O leitor em vídeo é outro. É
muito cedo ainda para avaliar impactos e comportamentos.
Um novo meio está a nossa disposição.
Como utilizá-lo, de que maneira, o que fazer com
ele, como levá-lo a agir sobre as cabeças?
Nada sabemos. Fala-se , fala-se, mas tudo às apalpadelas,
todos no escuro, ou na penumbra. Mas os profetas do apocalipse
preveem o fim do livro. Ah, os catastrofistas! Eles são
um perigo, já tentaram acabar até com o mundo.
MARIA ROSA RODRIGUES MARTINS DE CAMARGO
1) Do poema de Manoel de Barros, salto para a poética
de Clarice Lispector quando diz que a palavra nada mais
é do que isca daquilo que diz, e do que não
diz, está nas entrelinhas, está nos interstícios
do dito, e do escrito; como um jogo de palavras, "transver"
o mundo transcende o dito e o escrito. Penso que a possibilidade
para "transver" o mundo pode estar nas fronteiras
fervilhantes entre o pensamento e a utopia. O pensamento,
como a instância crítica de entender o mundo,
e a utopia como a abertura de horizontes túrgidos
e prenhes para ver o mundo. A possibilidade, talvez, de
"transver" o mundo esteja no mistério que
nos conduz à terceira margem, para além da
imaginação. Penso que temos de experimentar...
2) A leitura no mundo contemporâneo tem papel
fundamental. Tão fundamental é o papel da
leitura, quanto fundamental é a abertura de espírito
para pensar o que vem a ser leitura, de que leitura estamos
falando. Para além de definições, ou
da intenção de alocá-la em paradigmas,
ou da pretensão de conferir-lhe responsabilidades
que vão além daquilo que é. Creio,
por exemplo, que ainda não conseguimos alcançar
a dimensão de leitura posta por Paulo Freire: da
leitura de mundo [incluso o contemporâneo] para a
leitura da palavra, para a leitura da palavra escrita, que
se volta para uma leitura de mundo plena de sentidos que
se modificam, que o modificam ao olhar e à compreensão.
Pode-se localizar, aí, o pensamento de que nos tornamos
adultos por sabermos ler quem somos.
Ler o/no mundo contemporâneo requer parar... olhar...
decifrar... pensar... argumentar consigo mesmo... Requer
manusear... sentir o cheiro... apreciar as cores, as sombras,
as luminosidades... Requer deixar o olhar vagabundo vagando
a página... vagando o mundo.
Tantas reticências, direis, não há lugar
para elas no mundo contemporâneo; talvez essa seja
a idéia de leitura a perseguirmos no mundo, num tempo
histórico em que a rapidez impera, e com ela, um
tanto de superficialidade nos fazeres cotidianos, também
na leitura.
Por outro lado, talvez possamos creditar também,
ao império da rapidez associado ao excesso contínuo
de informações que bate aos nossos olhos,
à leitura que urge virada tarefa [seja a escolar,
a científica, a literária], o encobertamento
da leitura sensível que, ao meu modo de ver, acontece.
Existe. É digna de registro.
Refiro-me à leitura do analfabeto que inventa modos
de ler para solucionar problemas do cotidiano em uma sociedade
cheia de letras; refiro-me à mulher que, com mais
de 40 anos de idade, frequenta uma sala de EJA e escreve
poemas dignos do nome; refiro-me ao graduando em ciências
biológicas que se encanta com o trabalho em uma cartolina
produzido pela Dona Célia [de 70 anos de idade, quase
analfabeta, re-configurando sua infância, pela memória];
refiro-me a Natanael, aluno da escola pública, "pobre,
sujinho, tem tudo para ser mais um fracassado etc"
que re-inventa a leitura lendo O dourado. Refiro-me ao sensível
incômodo turbilhão que gera a leitura solitária
de um livro de areia, entre quatro paredes, passando pela
paixão segundo gh.
Penso que a leitura no mundo contemporâneo é
isso; torná-la fundamental talvez seja pensá-la
na sua imanência, no que provoca em cada um/uma de
nós, no exercício de uma atividade tornada
vital.
3) Meus argumentos são frágeis para
opinar a respeito do impacto da internet e das novas tecnologias
na difusão da leitura; não tenho um acompanhamento
mais aprofundado de análises que abordem essa questão.
Do que vejo no entorno, posso dizer que a internet, como
um veículo de altíssima velocidade e quase
sem barreiras físicas, abriu um espaço quase
infinito quanto ao oferecimento de material de leitura.
Enquanto suportes tecnológicos, seja a internet,
ou a TV, ou os digitais, de fato, em muito se diferenciam
do suporte livro de papel, suportes que, em sua diversidade,
geram outros modos de leitura.
Abordar o impacto de tais tecnologias na leitura, ou a rede
de tensões que aí se estabelece, requer considerar
aspectos inerentes à diversidade do suporte, à
relação leitor-suporte-texto-autor, às
motivações e objetivos que pautam a leitura,
às mudanças que se relacionam quando um texto
se desprega de seu autor e, no trajeto de ser dado à
leitura, passa por intermediações da edição,
por exemplo. Nesse aspecto, há a considerar-se também
o impacto da tecnologia texto-livro e leitura.
MILTON JOSÉ DE ALMEIDA
1)"O olho vê, a lembrança revê,
e a imaginação transvê. É preciso
transver o mundo." A frase é bonita, mas deslocada
do resto da poesia, acho que de "As lições
de RQ", fica parecendo um conselho quase uma ordem,
quando para o poeta é uma forma de dizer algo sobre
a poesia, mas não é algo a ser seguido como
se houvesse ali uma ordem a ser observada, uma expressão
reta: primeiro se vê, depois se lembra do que vê,
e a imaginação transvê, pois ele na
mesma poesia diz: "A expressão reta não
sonha". Se você não imagina não
consegue ver o "mundo" e muito menos transver.
A imaginação vem antes de qualquer operação
visual ou mental.
2) De que mundo contemporâneo está
sendo perguntado? O mundo ocidental alfabetizado? A pergunta
é muito genérica para ser respondida.
3) Não sei a que tipo de leitura a pergunta
se refere: de livros, romances, poesias? A internet não
difunde a leitura, ela obriga a leitura, nela tudo é
lido. Não há uma tela na internet em que você
não tenha que ler alguma coisa! Agora, se a pergunta
se refere à qualidade dessa leitura, a internet é
igual ao mundo, suas ruas, suas cidades, suas pessoas, e
com a mesma sensação de insegurança...Tem
coisas boas misturadas com ruins, coisas ruins misturadas
com boas, ameaças e ternuras, como saber? Tudo depende
do ponto de vista de quem olha, e do juízo de valor
cultural e político com que se olha.
PETER BURKE
"Ao não conseguir ler
mensagens em Tóquio, nutri mais compaixão
pelos analfabetos que chegavam a Londres ou Paris no século
XVIII!"
1)
Parece-me que estamos atravessando uma era de transição,
como podemos ver, pelo crescente modismo, em diversas línguas,
do uso de palavras iniciadas com "trans". E ocorrem-me
os termos "transferência" (como em "transferência
de tecnologia"), "translation" (tradução
em inglês), inclusas aí a tradução
cultural, bem como a interlingual (ou tradução
translingual), e também "transculturação"
e o "transacionalismo"; na área de ciências
sociais, penso no interesse pela "transdisciplinaridade",
por vezes descrita como uma "transgressão"
(o que, literalmente, significa "atravessar",
"transpor").
Retornando ao poema e ao enaltecer do poeta à imaginação
- apesar de não conseguir traduzir com facilidade
"transver" (visão por certo ângulo?)
-, realmente parece-me que, hoje, têm sido desenvolvido
sérios esforços para olhar o mundo de um novo
modo.
Tais esforços estão ligados a nossa era dos
"pós" - "pós-moderno",
posto que ela é "pós-colonial",
"pós-nacional" e pós-socialista",
ao menos sob certos aspectos. Não é por acaso
que a "pós-modernidade" é frequentemente
descrita ou definida em termos de viagem, fluxo, liquidez,
transposição de fronteiras e limites de diversas
espécies.
2) Dar uma resposta séria para esta questão
demanda uma pesquisa comparativa, a qual não realizei,
mas, claro, posso transmitir minhas impressões pessoais.
Considerando que passo boa parte de meu tempo em cidades
onde é dada grande importância ao sistema de
transporte público, como em Londres, Nova Iorque
e Paris, vejo, frequentemente, pessoas lendo livros, jornais
e revistas a caminho do trabalho em (quase sempre) longos
trajetos em trens, ônibus e metrô.
Ainda que essas pessoas não lessem nada em outras
ocasiões, a carga horária que dedicam à
leitura diária é substancial! Em cidades como
São Paulo, onde um número maior de pessoas
vai de carro para o trabalho, elas ouvem ao invés
de ler - pelo menos espero; em outras palavras, há
variações relevantes na resposta à
sua pergunta. Outro aspecto refere-se à urbanização.
O mundo está cada vez mais urbanizado e viver em
grandes cidades requer a leitura de vários tipos
de sinalização. Lembro-me claramente caminhando
pelas ruas de Tóquio vinte anos atrás, consciente
de estar cercado de sinais, e de que suas mensagens seriam
de grande importância de ordem prática ("não
cruze a rua neste ponto", talvez) ao mesmo tempo em
que não conseguia lê-las. Comecei, então,
a nutrir mais compaixão pelos analfabetos que chegavam
a Londres ou Paris no século XVIII!
3)
Novamente, tenho que recorrer às minhas impressões
e falar com base em minha limitada experiência pessoal.
Tanto quanto posso observar, os e-books não são
importantes, podendo, não obstante, virem a sê-lo
no futuro. Por outro lado, os jornais on-line estão
superando em popularidade aqueles que têm o papel
como suporte.
Pensando em termos de futuro, podemos observar crianças
(no meu caso, dois netos que moram perto de nós e
nos visitam quase todos os dias) que cresceram com a internet.
Marco, especialmente, aos 9 anos, usa a internet todos os
dias. Ele é particularmente fascinado pelo Google
Earth. Mas, procurando ser mais abrangente, parece-me ser
extremamente significativo que crianças como Marco
estão sendo incentivadas em suas escolas, ao menos
aqui na Inglaterra, a realizar pesquisas na internet como
parte de seus deveres (com tarefas tais como "pesquise
´vespa´ e escreva cinco aspectos a seu respeito"
- este é um exemplo real da semana passada).
As crianças estão, portanto, desde muito cedo,
praticando uma forma específica de leitura - e há
vários nomes para isso em inglês - que minha
geração aprendeu consideravelmente mais tarde,
aos 16 anos, no mínimo, ou ao ingressar na universidade,
aos 18. Não vejo a internet como uma ameaça
à leitura, porém pode sê-la para um
determinado estilo de leitura: do começo ao fim do
texto, "de capa à contracapa"; como bem
pode ser um incentivo positivo a uma leitura feita de modo
diferente.
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