ALCIR PÉCORA
Há
um silêncio insistente pegado ao tropel das notícias
que acompanham o voo 447 da Air France, desaparecido em
meio ao Atlântico, na noite do último dia 8.
Talvez porque, a rigor, não possam ser inteiramente
notícias, relatos de acontecimentos que se dão
a conhecer.
Pois há um vazio instalado no lugar da catástrofe.
Um vazio residual, um silêncio ineludível entre
as vozes e imagens. Vazio de causas do acidente, vazio de
comunicação do avião sinistrado, vazio
de imagens do desastre; vazio de comunicados terroristas;
vazio, por ora, até de paranoia.
A falta de terreno para as notícias salta ainda
mais à vista nas galerias de fotos que os jornais
tentam montar, com obrigatória criatividade, para
dar uma dimensão mais humana, mais factual e discursiva
para o desastre.
O que mostram são fotografias de aviões semelhantes
ao usado no voo 447 (que mais acentuam a consciência
de não ser ele o verdadeiro do que a semelhança
com ele), de radares modernos em navios, ou de militares
com binóculos a perscrutar a presumível cena
da queda, sempre com a mesma insuficiência de quem
nos mostrasse os olhos em lugar da coisa supostamente avistada.
Marcas da ansiedade
No lugar do acidente, há a proliferação
de imagens dos familiares a descer dos ônibus ou a
cruzar escoltados os aeroportos do Rio e de Paris, com os
olhos cobertos de dor e perplexidade. Mas a própria
abundância dessas imagens vicárias marca sobretudo
a ansiedade pelas notícias que não vêm,
pela insistência da tragédia em não
se consumar, de não apresentar justificativas para
a sua ocorrência.
Não há muitos objetos capazes de representar
vicariamente a extensão cabal do desastre. Há
o céu e há, sobretudo, o mar. Mas o mar confunde,
indistingue, abstratiza, mais do que evidencia a tragédia.
Assinalam um traçado no mar, mas ele não
parece suficiente para expressar o trágico. Mencionam
uma cadeira, objetos coloridos, uma parte metálica
de alguns metros, mas metros não contam para o mar.
Compreende-se o apego aos objetos partidos para valer como
demonstração patética do desastre invisível.
Não era por outro motivo que Aristóteles,
na "Retórica", notava a eficácia
de exibir camisas ou outros objetos com o sangue das vítimas
para tornar presentes aos jurados a violência dos
criminosos diante da ausência dos corpos mortos no
tribunal.
Mas não há sangue, não há culpados,
não há traços humanos especialmente
comoventes.
De tudo o que se vê, evidencia-se tão somente
o alto-mar. Sua magnificência está mais próxima
da metáfora metafísica, seja da morte, seja
da fortuna, que dos afetos trágicos. Mais do que
piedade e compaixão, o mar exibe a sua própria
grandeza.
Por isso, no mar, em busca dos sinais dos mortos do voo
447, mais se encontram os sinais de nossa própria
insuficiência. No mar, como no espaço abissal,
é difícil sustentar um drama subjetivo individualizado:
nele se enxerga melhor a nossa condição comum
do que nossa vida particular.
Como suplicar ao seu sem fundo que se apiede, como o vingado
coração de Aquiles [na "Ilíada",
de Homero] diante das súplicas do pai para restituir
o corpo do filho amado?
Que esperança de enternecê-lo e de prantear
os corpos dos mortos, para que os façamos parte de
nossas cerimônias e os aceitemos então como
parte de nossas memórias e, portanto, como experiências
que se pode viver, mesmo insuperadas?
Sem catarse
Desse
modo, não há tragédia, pois não
há relato de ação; não há
catarse possível, pois não há erro,
nem há vítimas que se dão a ver, assim
como nos faltam os despojos sujos, tocantes, de vida interrompida.
Tampouco há sublime pós-moderno, pois não
há absolutamente o horror do inenarrável:
há apenas a narração exígua
do que se mostra imenso à vista.
Os jornalistas, mais ou menos obrigados a recompor uma
história dramática, senão uma grande
tragédia - não por má intenção
ou indiferença, mesmo ao contrário, para dar
uma dimensão sensível à dor -, estão
cada vez mais na pele do pintor inepto de Horácio,
que apenas sabendo pintar árvores, não sabia
como fazer para plantá-las na paisagem marítima.
Mas há apenas a dor dos que a sentem, mais nada.
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ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária
no Instituto de Estudos de Linguagem (IEL) da Unicamp e
autor de "Máquina de Gêneros" (Edusp).
Este texto foi publicado na edição de 7 de
junho da Folha de S.Paulo (caderno Mais!)