Modelos anatômicos são
obtidos
por meio da
técnica de prototipagem rápida
LUIZ
SUGIMOTO
Estudo
envolvendo 982 pacientes que necessitavam de cirurgias de
reconstrução craniofacial aponta para uma
disseminação do uso de modelos anatômicos
obtidos por processos de prototipagem rápida (PR).
"Esta técnica tem se revelado uma ferramenta
excepcional para planejamento cirúrgico, confecção
de próteses personalizadas e execução
da cirurgia, levando a melhores resultados funcionais e
estéticos, bem como à diminuição
de riscos para os pacientes e de custos do processo",
afirma a engenheira química Maria de Fátima
de Gouveia, que defendeu tese de doutorado na Faculdade
de Engenharia Mecânica (FEM) da Unicamp. O estudo
foi orientado pela professora Cecília Amélia
de Carvalho Zavaglia.
A autora da pesquisa explica que os modelos médicos
- ou biomodelos - são confeccionados por processos
de prototipagem rápida a partir de imagens de tomografia
computadorizada, podendo ser réplicas anatômicas
tridimensionais tanto da parte óssea quanto de tecidos
moles, como pele e sistema vascular. "O surgimento
da PR pode ser considerado um marco em termos de manufatura,
por causa da economia de tempo e da possibilidade de fabricar
peças com geometrias complexas, impossíveis
de serem obtidas por outros processos".
O estudo de Fátima Gouveia foi desenvolvido no Centro
de Tecnologia da Informação Renato Archer
(CTI), no âmbito do Projeto Promed - Prototipagem
Rápida na Medicina, criado em 2001. "A primeira
máquina de PR do CTI entrou em operação
em 1999, com o objetivo principal de divulgar esta tecnologia
no Brasil e produzir protótipos para a indústria
em geral, tendo atendido desde então cerca de 500
pequenas e médias empresas. Mas na época já
realizamos ensaios com modelos anatômicos".
Os contatos iniciais com os cirurgiões, visando
selecionar casos de reconstruções complexas
que pudessem ser auxiliados por biomodelos, se deram em
2000 e, até o final da pesquisa, foram envolvidos
cerca de 270 profissionais. "Cada cirurgião
possui sua própria técnica e alguns, já
habituados a realizar as cirurgias apenas com o auxílio
de imagens tomográficas bidimensionais, foram mais
resistentes à mudança de abordagem. Mas a
maioria ficou impressionada com os biomodelos, antevendo
uma revolução inclusive quanto ao diagnóstico
- por vezes, o modelo tridimensional revela detalhes não
percebidos na imagem 2D".
Desde o primeiro paciente atendido em 2000, houve um aumento
contínuo de casos até alcançar 270
somente em 2008. Neste período, o CTI confeccionou
biomodelos para 982 pacientes, sendo que 98% deles apresentavam
lesões craniofaciais. "Os resultados indicaram
que 86% dos casos referem-se a reconstruções
em um ou mais terços da face (superior, médio
e inferior). Isto era esperado, pois a face abriga estruturas
complexas, responsáveis por funções
essenciais como visão, respiração,
mastigação e fala, havendo ainda a questão
estética, que representa um fator determinante na
integração social e na autoestima do paciente".
Demanda
Ao todo, o CTI atendeu 146 instituições do
país - 79 hospitais, 41 clínicas particulares
e 26 instituições de ensino. A maior demanda
esteve associada à reabilitação bucomaxilar
(32%), que em geral pode ser traduzida como planejamento
de implante dentário. Não por acaso, 71% desses
pacientes tinham entre 40 e 70 anos, faixa etária
em que perdas dentárias são mais comuns. "Além
da importância funcional dos dentes, falhas na dentição
geram vários outros problemas, inclusive exclusão
social. A implantodontia ainda é vista como privilégio
de poucos, mas o governo já trabalha para incluí-la
nos serviços públicos de assistência
odontológica".
O segundo maior grupo, com 18% dos casos, reuniu as neoplasias
e displasias, com predominância das neoplasias de
mandíbula. "Mesmo quando benignas, há
neoplasias que precisam ser removidas devido ao seu crescimento
exagerado. Atendemos o caso de uma paciente de 68 anos que
exigiu a remoção total da mandíbula.
Adaptamos o modelo virtual da mandíbula de outro
paciente, a fim de projetar no CAD uma, que foi confeccionada
em polimetilmetacrilato com reforço interno de fibra
de carbono. A confecção da prótese
e a cirurgia foram realizadas com sucesso".
No terceiro grupo, representando 13% dos casos, estavam
os pacientes com fraturas por trauma, relacionadas a acidentes
de trânsito, trabalho e domésticos, e vítimas
de violência. Outros grupos se seguiram: desarmonias
faciais (9%), como assimetria facial e má oclusão;
patologias de ATM (5%); causas congênitas (5%), como
a fissura palatina; falhas ósseas cranianas (5%)
provocadas principalmente por acidentes de trânsito;
falhas ósseas faciais (4%); e outras causas (2%)
como osteomielite e aneurisma cerebral.
Segundo a autora, registrou-se na amostra um equilíbrio
entre homens (511) e mulheres (471), mas a associação
das causas das cirurgias com gênero e faixa etária
possibilitou constatações interessantes. "Em
relação à reabilitação
bucomaxilar, o grupo feminino é uma vez e meia maior
que o masculino. Há indícios de que o homem
teria mais receio de ir ao dentista e de que as mulheres
se preocupariam mais com a aparência. Já as
fraturas por trauma e as falhas ósseas cranianas
atingem 2,5 vezes mais os homens, sobretudo jovens, certamente
por um maior envolvimento em acidentes e situações
de violência".
Divulgação
Fátima Gouveia afirma que seu trabalho, através
da divulgação dos resultados do Projeto Promed,
procura contribuir para a implantação da técnica
de biomodelos obtidos por prototipagem rápida no
planejamento cirúrgico. "A caracterização
de uma amostra de quase mil pacientes pode auxiliar na orientação
de pesquisas, políticas públicas e futuros
investimentos nesta área. A tendência de crescimento
nos atendimentos e o surgimento e desempenho de empresas
nacionais que produzem estes biomodelos são sinais
da expansão da técnica", diz a engenheira
(veja texto nesta página).
A pesquisadora reitera que existe demanda tanto para o
projeto como para a confecção de próteses
personalizadas, mas aponta a necessidade de divulgar melhor
a técnica no Brasil, como no Norte e Nordeste. Em
seu levantamento, ela constatou que 60% dos 982 pacientes
eram do Estado de São Paulo - o Sudeste concentrou
75% dos atendimentos. A cidade de Campinas responde pelo
maior número de casos na amostragem, graças
à interação com hospitais locais como
o Mário Gatti e principalmente a Sobrapar (Sociedade
Brasileira de Pesquisa e Assistência para Reabilitação
Craniofacial).
Acessibilidade
Do total de pacientes, 75% contaram com biomodelos fornecidos
gratuitamente via SUS e 25% por meio de clínicas
particulares. A autora do estudo acredita que a disseminação
da técnica levará a uma maior oferta do serviço
dentro do próprio sistema de saúde e também
pelos convênios médicos, como já acontece
em alguns países da Europa. "A possibilidade
de um planejamento mais detalhado, com o auxílio
dos biomodelos, permite um melhor resultado cirúrgico,
diminuindo o tempo, os riscos de infecção,
a necessidade de novas cirurgias e, com isso, dos custos
envolvidos".
Um problema relatado pelos cirurgiões a Fátima
Gouveia são os preços das próteses
utilizadas nas reconstruções, muitas vezes
incompatíveis com a realidade dos hospitais públicos.
"Citamos o caso de uma paciente com anquilose (fixação)
bilateral da articulação da mandíbula,
que necessitou de próteses que custaram 70 mil reais.
Por isso, os cirurgiões buscam soluções
alternativas para a confecção destas próteses.
A prototipagem rápida já possui equipamentos
que processam biomateriais, principalmente ligas biocompatíveis
de titânio, produzindo próteses sob medida.
Acredita-se que o uso da técnica permita, em médio
prazo, a redução de custos de próteses
e implantes".
Técnica foi usada em separação
de siamesas
Os primeiros modelos anatômicos confeccionados por
prototipagem rápida foram descritos na literatura
em 1990, por Mankovich, da Universidade da Califórnia,
dois anos depois do lançamento da primeira destas
máquinas, pela 3D Systems - também nos EUA.
Um dos pioneiros na sua utilização na área
médica foi o australiano Paul D´Urso, atribuindo-se
a ele a denominação "biomodelo"
para as réplicas anatômicas obtidas com tais
equipamentos.
O emprego da técnica para planejamento cirúrgico
ganhou destaque na mídia internacional em 2002, com
a cirurgia de separação das "Pequenas
Marias" da Guatemala, como eram chamadas as gêmeas
siamesas que nasceram unidas pelo crânio. "A
bem-sucedida cirurgia foi realizada no hospital da Universidade
da Califórnia, por uma equipe de mais de 50 profissionais
liderada por Henry Kawamoto e Jorge Lazareff, e durou cerca
de 23 horas", recorda a engenheira Fátima Gouveia.
A pesquisadora conta que, apesar de as gêmeas possuírem
cérebros e artérias independentes, as veias
estavam interligadas. "De acordo com a equipe, muitos
detalhes que não estavam visíveis nos exames
radiográficos, tomográficos e de ressonância
só puderam ser verificados no estudo dos biomodelos,
o que representou um aspecto determinante para o sucesso
da cirurgia".
Segundo Fátima Gouveia, o professor Kawamoto trabalha
em colaboração com a Sobrapar, tendo visitado
o CTI recentemente. Entretanto, a pesquisa também
apresenta o primeiro caso de cirurgia de separação
de gêmeos conjugados realizada no Brasil, com o auxílio
de biomodelos para o planejamento cirúrgico. "Esta
cirurgia foi realizada no Hospital Materno Infantil de Goiânia,
no ano de 2004, pelo doutor Zacharias Calil".
Evolução
O estudo aponta um crescimento acentuado na venda de equipamentos
de prototipagem rápida nos últimos seis anos,
com previsões que eram de 5.920 máquinas para
2008 e de 7.330 para 2009. Calcula-se que até o final
de 2007 tenham sido vendidos quase 27 mil sistemas de prototipagem
rápida em todo o mundo. "Os equipamentos atendem
basicamente à indústria. No entanto, analisando
por setores de aplicação, vemos uma utilização
de 20,8% pela indústria de bens de consumo e eletrônicos,
de 16,8% pela indústria automotiva e, já em
terceiro lugar, de 15,2% em aplicações médicas
e dentárias".
A pesquisa também revela o surgimento de pelo menos
dez empresas nacionais que estão confeccionando biomodelos
por prototipagem rápida atualmente. "Uma das
pioneiras e maior fabricante do Brasil é a Bioparts,
que já produziu mais de sete mil biomodelos. Foi
criada por um cirurgião entusiasta da técnica,
que realizou no CTI seus primeiros casos, em cooperação
com o Hospital de Base de Brasília. A LaserTao e
a BCS Tecnologia são empresas de Campinas que estão
incubadas na Unicamp".