Sambar com fé
                    MANUEL ALVES FILHO
                      
                     O  samba, quem diria, constitui um importante eixo simbólico  que promove a conexão entre dois espaços aparentemente opostos e contraditórios:  as escolas de samba e as igrejas evangélicas. A constatação foi feita pela antropóloga  Kelly Adriano de Oliveira, que acaba de defender a tese de doutorado “Deslocamentos  entre o samba e a fé – Um olhar para gênero, raça, cor, corpo e religiosidade  na produção de diferenças”. O trabalho, apresentado no Instituto de Filosofia e  Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, investigou a maneira como rainhas, musas,  madrinhas e princesas de bateria de escolas de samba percebem e discutem as  questões relativas ao estereótipo da mulata, normalmente associado à  sexualidade, sensualidade e sedução. “A questão da religiosidade, que não  estava prevista num primeiro momento, acabou surgindo como um elemento que  permeia de alguma forma todos esses temas”, afirma a pesquisadora, que foi  orientada pela professora Mariza Corrêa.
O  samba, quem diria, constitui um importante eixo simbólico  que promove a conexão entre dois espaços aparentemente opostos e contraditórios:  as escolas de samba e as igrejas evangélicas. A constatação foi feita pela antropóloga  Kelly Adriano de Oliveira, que acaba de defender a tese de doutorado “Deslocamentos  entre o samba e a fé – Um olhar para gênero, raça, cor, corpo e religiosidade  na produção de diferenças”. O trabalho, apresentado no Instituto de Filosofia e  Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, investigou a maneira como rainhas, musas,  madrinhas e princesas de bateria de escolas de samba percebem e discutem as  questões relativas ao estereótipo da mulata, normalmente associado à  sexualidade, sensualidade e sedução. “A questão da religiosidade, que não  estava prevista num primeiro momento, acabou surgindo como um elemento que  permeia de alguma forma todos esses temas”, afirma a pesquisadora, que foi  orientada pela professora Mariza Corrêa.
                     A associação entre samba e fé não é algo exatamente novo no  cenário brasileiro, como lembra Kelly. Ritmo historicamente relacionado às tradições  negras, o samba frequentemente faz referências e tem conexões históricas com manifestações  e símbolos religiosos, notadamente os relacionados aos cultos de matriz  africana. Ao entrevistar mulheres que desfilam em escolas de samba de São  Paulo, para saber como elas trabalham com a constituição de suas  subjetividades, identidades e diferenças, a antropóloga apurou que parte delas frequenta  igrejas evangélicas, principalmente as de vertente neopentecostal. As mais  citadas foram Renascer em Cristo, Bola de Neve e da Graça Mundial “Foi uma  surpresa estimulante para mim, uma vez que esses dois ‘mundos’ são, pelo senso  comum, excludentes entre si”, revela.
A associação entre samba e fé não é algo exatamente novo no  cenário brasileiro, como lembra Kelly. Ritmo historicamente relacionado às tradições  negras, o samba frequentemente faz referências e tem conexões históricas com manifestações  e símbolos religiosos, notadamente os relacionados aos cultos de matriz  africana. Ao entrevistar mulheres que desfilam em escolas de samba de São  Paulo, para saber como elas trabalham com a constituição de suas  subjetividades, identidades e diferenças, a antropóloga apurou que parte delas frequenta  igrejas evangélicas, principalmente as de vertente neopentecostal. As mais  citadas foram Renascer em Cristo, Bola de Neve e da Graça Mundial “Foi uma  surpresa estimulante para mim, uma vez que esses dois ‘mundos’ são, pelo senso  comum, excludentes entre si”, revela.
                    Ao transitarem por esses espaços, diz a pesquisadora, as  sambistas conseguem superar duas aparentes incoerências. A primeira diz  respeito ao discurso comumente usado por igrejas neopentecostais no sentido de  deslegitimar as manifestações religiosas afro-brasileiras. A segunda reside no  fato de essas mesmas igrejas terem uma visão de corpo e corporeidade  extremamente conservadora. “Para elas, o sexo e, principalmente o corpo  feminino, está relacionado exclusivamente à reprodução, o que acaba por  estabelecer uma ruptura com o prazer”, explica. Mas como, afinal, essas  mulheres conseguem promover a conciliação de aspectos tão díspares? Conforme  Kelly, a combinação é possível porque essas igrejas neopentecostais se  apropriam de alguns elementos da cultura popular, para reelaborá-la com o objetivo  de atrair e manter novos fiéis.
                     Desse modo, a ida às escolas de samba é, por assim dizer, permitida  e purificada. “De acordo com o depoimento dessas mulheres, ao frequentarem a  igreja elas passam a ter o corpo e a alma blindados. Dito de outra maneira, é  como se os corpos ficassem protegidos do olhar vulgarizante normalmente  destinado a elas, por conta dos estereótipos associados à mulata”.  Tal expurgo, acrescenta a autora da tese,  também faz referência ao ambiente das quadras ou dos desfiles, onde normalmente  há referências simbólicas aos santos das igrejas católicas e aos orixás do  candomblé. “Por acreditarem que têm o corpo e a alma protegidos, portanto entregues  a Cristo, as sambistas dizem não se importar com o local onde estão, visto que  sua fé não pode ser abalada. Elas fazem uma clara separação entre religião e  cultura, assim como há quem faça entre religião e ciência”.
Desse modo, a ida às escolas de samba é, por assim dizer, permitida  e purificada. “De acordo com o depoimento dessas mulheres, ao frequentarem a  igreja elas passam a ter o corpo e a alma blindados. Dito de outra maneira, é  como se os corpos ficassem protegidos do olhar vulgarizante normalmente  destinado a elas, por conta dos estereótipos associados à mulata”.  Tal expurgo, acrescenta a autora da tese,  também faz referência ao ambiente das quadras ou dos desfiles, onde normalmente  há referências simbólicas aos santos das igrejas católicas e aos orixás do  candomblé. “Por acreditarem que têm o corpo e a alma protegidos, portanto entregues  a Cristo, as sambistas dizem não se importar com o local onde estão, visto que  sua fé não pode ser abalada. Elas fazem uma clara separação entre religião e  cultura, assim como há quem faça entre religião e ciência”.
                     Nas entrevistas que realizou com as madrinhas, musas,  rainhas e princesas de bateria, Kelly constatou que elas não manifestam  publicamente, no espaço do samba, a sua religiosidade. Nem por isso, porém,  deixam de tentar converter outros frequentadores. Nesse caso, a abordagem é  feita de forma individualizada e sutil. Segundo a antropóloga, as sambistas não  negam a sua sensualidade, mas optam por usar roupas mais comportadas que as das  colegas que não são evangélicas. Também preferem os tênis às sandálias de salto  alto, durante os ensaios, tudo em nome da não-vulgarização da própria imagem. Um  aspecto interessante levantado pela pesquisa é que, no mundo da religião, as  “sambistas de Cristo” também procuram se diferenciar daquelas que são “apenas  evangélicas”.
Nas entrevistas que realizou com as madrinhas, musas,  rainhas e princesas de bateria, Kelly constatou que elas não manifestam  publicamente, no espaço do samba, a sua religiosidade. Nem por isso, porém,  deixam de tentar converter outros frequentadores. Nesse caso, a abordagem é  feita de forma individualizada e sutil. Segundo a antropóloga, as sambistas não  negam a sua sensualidade, mas optam por usar roupas mais comportadas que as das  colegas que não são evangélicas. Também preferem os tênis às sandálias de salto  alto, durante os ensaios, tudo em nome da não-vulgarização da própria imagem. Um  aspecto interessante levantado pela pesquisa é que, no mundo da religião, as  “sambistas de Cristo” também procuram se diferenciar daquelas que são “apenas  evangélicas”.
                    Para marcar essa distinção, elas se apropriam e reelaboram  elementos dos espaços de samba e das culturas afro. “Um aspecto que chama a  atenção é o penteado. Normalmente, essas mulheres usam tranças ou cabelo ao  estilo black power, enquanto as que  não vivenciam as mesmas experiências religiosas delas optam por cabelos  alongados, por técnicas de relaxamento, ou por cabelos lisos, obtidos com o  recurso do alisamento”.  Nesse sentido,  prossegue Kelly, as “sambistas de Cristo” se posicionam como protagonistas de  suas próprias histórias. “Elas mostram um manejo na forma de lidar com as  situações de diferença. Não se posicionam como vítimas dessas situações em  nenhum ambiente que frequentam”, afirma a pesquisadora.
                    Salmo 150
                    Mais do que permitir que seus fiéis frequentem o espaço do  samba, as igrejas evangélicas neopentecostais lançam mão do gênero musical em  suas estratégias evangelizadoras. Um exemplo disso é a Igreja Renascer em  Cristo, que promove anualmente pelas ruas de São Paulo, no dia de Corpus  Christi, a Marcha para Jesus. No ano passado, conforme os organizadores, cerca  de 5 milhões de pessoas teriam participado do evento. Nessas ocasiões, a  Renascer vale-se da música e da dança para louvar a Cristo. 
                    Além  de trios elétricos que apresentam diversos ritmos bastante populares, como  rock, axé e funk, a igreja apresenta, durante a marcha, uma ala formada, não  por acaso, por ritmistas que tocam os mesmos instrumentos utilizados pelas  escolas de samba. Batizada com o sugestivo nome de Bateria Salmo 150, sua função  é animar os jovens durante a caminhada. O referido salmo, o último da bíblia, exorta  aqueles que crêem a enaltecer o Senhor por meio de manifestações que remetem à alegria.  Um dos versículos expressa o seguinte: “Louvai-O com adufe e com danças;  louvai-O com instrumentos de cordas e com flauta”. 
                    Preconceito 
                    De acordo com a antropóloga, as musas, madrinhas, rainhas e  princesas de bateria dizem sentir maior preconceito em relação ao estereótipo  da mulata nos ambientes social e profissional. Algumas delas relevaram que preferem  omitir em seus locais de trabalho que são ligadas ao samba. O objetivo é evitar  insinuações e situações de assédio. “Infelizmente, muita gente ainda associa a  imagem da mulata à da mulher disponível, por isso mesmo elas mostraram rejeição  ao termo mulata. As garotas que entrevistei revelaram, ainda, que são alvos de apelidos  como ‘mulata globeleza’, cunhados por pessoas que sequer sabem que elas  pertencem ao mundo do samba, só por uma associação quase que imediata com suas  aparências”.
                    Tal comportamento, reconhece a pesquisadora, está de algum  modo ligado a permanência dos fenótipos e as relações com o mito da democracia  racial ainda presentes no país. Segundo Kelly, as discussões sobre a mestiçagem  da sociedade brasileira frequentemente deixam de refletir sobre o conflito presente  nesse processo, um conflito marcado por raça, gênero e classe. “Um ponto que  deve ser entendido é que essa mestiçagem não foi e não é tranquila como muitos  querem fazer crer. Gilberto Freyre, por exemplo, descreveu a questão como se  fosse um romance, como se não tivesse sido resultado de uma relação de poder  entre senhores e escravos. Teóricas feministas, porém, classificam essa relação  como um verdadeiro estupro colonial. Ou seja, foi fruto de uma violência que  trazia subjacente o estereótipo da mulher negra, como dona de uma sexualidade e  sensualidade natural, disponível, provocativa e irresistível. Muitas dessas percepções  se refletem até hoje”, assinala a autora da tese.