Pesquisa revela que espécies
encontradas hoje no país
tiveram origem na Cordilheira há 18 milhões
de anos
CARMO
GALLO NETTO
Borboletas
de asas transparentes, com manchas vermelhas, amarelas e
desenhos pretos, cuja coloração típica
anuncia sua toxidade a potenciais predadores, são
encontradas no Brasil. E também nos Andes. Elas pertencem
à subfamília dos itomiíneos, da qual
eram desconhecidos a origem, o tempo de existência
e as causas da grande diversificação. Trabalho
inédito publicado em abril na mais prestigiada revista
especializada em ecologia molecular, a Molecular Ecology,
mostra os resultados das buscas que objetivavam entender
a origem e a história da diversificação
dessas borboletas. O estudo revela o local e a idade de
origem, explica como essas espécies se diversificaram
e qual o parentesco entre elas.
Os resultados mostram que as borboletas dos gêneros
Ithomia e Napeogenes surgiram nos Andes há cerca
de 18 milhões de anos e começaram a se diversificar
em torno de 15 milhões de anos, quando a Cordilheira
já tinha passado dos mil metros e atingira 30% a
50% da elevação atual. À medida que
as montanhas se ergueram, surgiram novos ambientes ecológicos
e populações de borboletas ficaram isoladas
umas das outras. Era um cenário propício para
a diversificação, que não parou aí.
Nos últimos sete milhões de anos, as borboletas
transparentes chegaram à Mata Atlântica. Hoje,
mais de 360 espécies delas povoam boa parte dos trópicos
sul-americanos.
O estudo foi desenvolvido pelo professor André Victor
Lucci Freitas, do Departamento de Biologia Animal do Instituto
de Biologia (IB) da Unicamp, e pela pesquisadora Karina
Lucas da Silva-Brandão, pós-doutoranda no
Setor de Entomologia da Esalq - USP de Piracicaba, em parceria
com a pesquisadora francesa Marianne Elias, do Imperial
College de Londres.
Linha de pesquisa
O trabalho faz parte de linha de pesquisa iniciada há
cerca de oito anos no IB. O objetivo do projeto é
estudar as borboletas da América do Sul, utilizando
conceitos da biologia molecular e da evolução.
André Freitas considera que "se trata de uma
linha muito promissora porque trabalha com elementos que
permitem associar a história evolutiva dos organismos
conjuntamente com a historia geológica do continente",
o que pode ser estendido para outras espécies. No
caso estudado, o desenvolvimento da Cordilheira dos Andes
permite entender porque se deu a formação
das espécies que depois migraram para outras regiões.
No Brasil, a diversificação ocorreu em grau
maior ainda por causa das variações geológicas
e climáticas locais, que influenciam a evolução
das espécies.
Essa linha de pesquisa muito ampla, que reúne elementos
de biogeografia, evolução e leva em conta
a diversificação na América do Sul,
oferece parâmetros para o estudo de praticamente tudo,
como aves, mamíferos, plantas e não apenas
borboletas. Seu objetivo maior, diz André, é
compreender os processos que levaram à grande riqueza
de espécies no continente que apresenta maior biodiversidade
da Terra.
Colaboração
Os pesquisadores estabeleceram a relação
de parentesco entre as espécies e contribuíram
para determinar quais delas ocorrem somente no Brasil, na
Colômbia, no Equador e em outras regiões sul-americanas.
Nesse tipo de trabalho há necessidade de colaboração
entre vários grupos, como o de Edimburgo, na Grã-Bretanha.
Karina esclarece: "Estudamos as nossas espécies
e eles, as dos Andes. Isto nos permitiu juntar informações,
estabelecer graus de parentesco e explicar a origem da diversificação
desses grupos de borboletas".
O estudo envolveu a extração do DNA das borboletas
e a amplificação do número dessas moléculas
de forma a obtê-las aos milhares. Esta parte do trabalho
foi realizada no CBMEG-Unicamp, no Laboratório de
Genética Animal I, da professora Ana Maria Lima de
Azeredo Espin. Para estabelecer a relação
de parentesco entre borboletas, são analisados genes
nucleares e mitocondriais das células. Cada um desses
genes evolui em uma taxa diferente e fornece uma informação
diferente.
Comparando as informações dos vários
indivíduos, estabelece-se o grau de parentesco, o
que permite chegar a uma figura que mostra graficamente
as relações entre as espécies, chamada
de árvore filogenética. Karina explica que
com base nessa árvore é possível saber
que espécies estão mais próximas uma
da outra até chegar à espécie ancestral
e conhecer sua história evolutiva. Ela enfatiza:
"O que fizemos de mais importante foi calcular a idade
do ancestral - que permite chegar à idade da espécie
atual - o que ninguém tinha feito para esse grupo,
porque não havia dados moleculares disponíveis".
A pesquisadora lembra que hoje existem condições
de desenvolver todas as técnicas necessárias
ao estudo no Brasil, o que não era possível
antigamente. Este fato permitiu que os grupos brasileiro
e o do Reino Unido pudessem estudar independentemente as
borboletas do Brasil e dos Andes. Ela conta: "Depois
juntamos os dados obtidos por Marianne com os nossos, no
campo e no laboratório, e cada uma fez parte das
análises filogenéticas. Foram elas que permitiram
determinar a genealogia das espécies e construir
uma árvore evolutiva extrapolada para milhões
de anos, o que constituía o objetivo fundamental
do nosso estudo". Essa pesquisa teve como consequência
importante determinar o que aconteceu ao longo da história
com esse grupo de borboletas, e que permitiu que se chegasse
à riqueza de espécies hoje existentes.
O trabalho possibilitou estimar que os dois gêneros
de borboletas estudados tiveram origem há cerca de
18 milhões de anos. Os dados geológicos revelam
que nesse tempo os Andes ainda estavam subindo e tinham
chegado a 50% do que são hoje. Através da
árvore filogenética foi possível relacionar
a história desses grupos com o que estava acontecendo
nos Andes nessa época. Com a utilização
da filogenia, se consegue estimar como era nessa época
o ancestral das borboletas estudadas.
Explicações
O
professor André Freitas explica que os Andes continuaram
a subir e com isso foram surgindo novas espécies,
tanto pelo isolamento promovido pelos altos picos, como
pela criação de novas condições
ambientais como temperatura e vegetação. Isso
acontece porque, com as mudanças na altitude, uma
série de características biológicas
e físicas dos ambientes também mudam, o que
permitem que as borboletas também possam mudar dando
origem a novas espécies. Estes fatores, associados
ao isolamento geográfico das populações
originais, possibilitaram que as novas espécies criadas
pudessem se dividir ainda mais, e o resultado foi um processo
de especiação muito maior, jamais visto no
continente.
Este processo, potencializado pelo surgimento dos Andes,
explica a grande diversidade encontrada hoje. O inédito
foi mostrar que o grupo estudado se originou em maiores
altitudes, e só depois desceu e se espalhou pelo
continente, pois diversos trabalhos relacionados a outros
grupos de borboletas mostram o caminho inverso. Outro grupo
de borboletas estudado por André e Karina confirma
suas conclusões anteriores, de dispersão "do
alto para baixo".
O pesquisador lembra que as informações geológicas
são importantes para confirmar que as transformações
nas espécies se deram acompanhando as transformações
físicas no solo: "Embora nos Andes os picos
continuassem gelados e os vales quentes, à medida
que estes surgiam e aumentavam em número, as condições
de cada um deles eram diferentes, o que levou à transformação
das espécies. Sem esquecer que a Cordilheira criou
duas macro-regiões, a que olha para o Pacifico e
a que olha para o Atlântico".
Karina enfatiza que ninguém tinha mostrado antes
que as espécies nasceram nos Andes e depois desceram
e se espalharam pelo Brasil: "Isso que é bonito.
Em cima de toda aquela história filogenética
das espécies, eu consigo me situar no tempo geológico
e finalmente entender porque existem tantas espécies
nos trópicos".
André Freitas conclui que a linha de pesquisa por
ele coordenada trabalha também com a evolução
utilizando dados tradicionais da morfologia, da forma, além
da biologia molecular. Com base nas características
morfológicas, já existem dois trabalhos em
andamento, um em fase final, com borboletas da América
do Sul. Ele afirma que "esta é uma vertente
de estudo que vai continuar, e que promete muita informação
nova que possibilitará entender cada vez melhor o
que a América do Sul tem de tão diferente
que a faz o continente com a maior biodiversidade do planeta".