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O grande voo das borboletas,
dos picos andinos às matas brasileiras

Pesquisa revela que espécies encontradas hoje no país
tiveram origem na Cordilheira há 18 milhões de anos

CARMO GALLO NETTO

Foto: Antoninho PerriBorboletas de asas transparentes, com manchas vermelhas, amarelas e desenhos pretos, cuja coloração típica anuncia sua toxidade a potenciais predadores, são encontradas no Brasil. E também nos Andes. Elas pertencem à subfamília dos itomiíneos, da qual eram desconhecidos a origem, o tempo de existência e as causas da grande diversificação. Trabalho inédito publicado em abril na mais prestigiada revista especializada em ecologia molecular, a Molecular Ecology, mostra os resultados das buscas que objetivavam entender a origem e a história da diversificação dessas borboletas. O estudo revela o local e a idade de origem, explica como essas espécies se diversificaram e qual o parentesco entre elas.

Os resultados mostram que as borboletas dos gêneros Ithomia e Napeogenes surgiram nos Andes há cerca de 18 milhões de anos e começaram a se diversificar em torno de 15 milhões de anos, quando a Cordilheira já tinha passado dos mil metros e atingira 30% a 50% da elevação atual. À medida que as montanhas se ergueram, surgiram novos ambientes ecológicos e populações de borboletas ficaram isoladas umas das outras. Era um cenário propício para a diversificação, que não parou aí. Nos últimos sete milhões de anos, as borboletas transparentes chegaram à Mata Atlântica. Hoje, mais de 360 espécies delas povoam boa parte dos trópicos sul-americanos.

O estudo foi desenvolvido pelo professor André Victor Lucci Freitas, do Departamento de Biologia Animal do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, e pela pesquisadora Karina Lucas da Silva-Brandão, pós-doutoranda no Setor de Entomologia da Esalq - USP de Piracicaba, em parceria com a pesquisadora francesa Marianne Elias, do Imperial College de Londres.

Linha de pesquisa
O trabalho faz parte de linha de pesquisa iniciada há cerca de oito anos no IB. O objetivo do projeto é estudar as borboletas da América do Sul, utilizando conceitos da biologia molecular e da evolução. André Freitas considera que "se trata de uma linha muito promissora porque trabalha com elementos que permitem associar a história evolutiva dos organismos conjuntamente com a historia geológica do continente", o que pode ser estendido para outras espécies. No caso estudado, o desenvolvimento da Cordilheira dos Andes permite entender porque se deu a formação das espécies que depois migraram para outras regiões. No Brasil, a diversificação ocorreu em grau maior ainda por causa das variações geológicas e climáticas locais, que influenciam a evolução das espécies.

Essa linha de pesquisa muito ampla, que reúne elementos de biogeografia, evolução e leva em conta a diversificação na América do Sul, oferece parâmetros para o estudo de praticamente tudo, como aves, mamíferos, plantas e não apenas borboletas. Seu objetivo maior, diz André, é compreender os processos que levaram à grande riqueza de espécies no continente que apresenta maior biodiversidade da Terra.

Colaboração
Os pesquisadores estabeleceram a relação de parentesco entre as espécies e contribuíram para determinar quais delas ocorrem somente no Brasil, na Colômbia, no Equador e em outras regiões sul-americanas. Nesse tipo de trabalho há necessidade de colaboração entre vários grupos, como o de Edimburgo, na Grã-Bretanha. Karina esclarece: "Estudamos as nossas espécies e eles, as dos Andes. Isto nos permitiu juntar informações, estabelecer graus de parentesco e explicar a origem da diversificação desses grupos de borboletas".

O estudo envolveu a extração do DNA das borboletas e a amplificação do número dessas moléculas de forma a obtê-las aos milhares. Esta parte do trabalho foi realizada no CBMEG-Unicamp, no Laboratório de Genética Animal I, da professora Ana Maria Lima de Azeredo Espin. Para estabelecer a relação de parentesco entre borboletas, são analisados genes nucleares e mitocondriais das células. Cada um desses genes evolui em uma taxa diferente e fornece uma informação diferente.

Comparando as informações dos vários indivíduos, estabelece-se o grau de parentesco, o que permite chegar a uma figura que mostra graficamente as relações entre as espécies, chamada de árvore filogenética. Karina explica que com base nessa árvore é possível saber que espécies estão mais próximas uma da outra até chegar à espécie ancestral e conhecer sua história evolutiva. Ela enfatiza: "O que fizemos de mais importante foi calcular a idade do ancestral - que permite chegar à idade da espécie atual - o que ninguém tinha feito para esse grupo, porque não havia dados moleculares disponíveis".

A pesquisadora lembra que hoje existem condições de desenvolver todas as técnicas necessárias ao estudo no Brasil, o que não era possível antigamente. Este fato permitiu que os grupos brasileiro e o do Reino Unido pudessem estudar independentemente as borboletas do Brasil e dos Andes. Ela conta: "Depois juntamos os dados obtidos por Marianne com os nossos, no campo e no laboratório, e cada uma fez parte das análises filogenéticas. Foram elas que permitiram determinar a genealogia das espécies e construir uma árvore evolutiva extrapolada para milhões de anos, o que constituía o objetivo fundamental do nosso estudo". Essa pesquisa teve como consequência importante determinar o que aconteceu ao longo da história com esse grupo de borboletas, e que permitiu que se chegasse à riqueza de espécies hoje existentes.

O trabalho possibilitou estimar que os dois gêneros de borboletas estudados tiveram origem há cerca de 18 milhões de anos. Os dados geológicos revelam que nesse tempo os Andes ainda estavam subindo e tinham chegado a 50% do que são hoje. Através da árvore filogenética foi possível relacionar a história desses grupos com o que estava acontecendo nos Andes nessa época. Com a utilização da filogenia, se consegue estimar como era nessa época o ancestral das borboletas estudadas.

Explicações
 O professor André Victor Lucci Freitas, do IB, e a pesquisadora Karina Lucas da Silva-Brandão: inédito, trabalho foi publicado na revista Molecular Ecology. (Foto: Antoninho Perri)O professor André Freitas explica que os Andes continuaram a subir e com isso foram surgindo novas espécies, tanto pelo isolamento promovido pelos altos picos, como pela criação de novas condições ambientais como temperatura e vegetação. Isso acontece porque, com as mudanças na altitude, uma série de características biológicas e físicas dos ambientes também mudam, o que permitem que as borboletas também possam mudar dando origem a novas espécies. Estes fatores, associados ao isolamento geográfico das populações originais, possibilitaram que as novas espécies criadas pudessem se dividir ainda mais, e o resultado foi um processo de especiação muito maior, jamais visto no continente.

Este processo, potencializado pelo surgimento dos Andes, explica a grande diversidade encontrada hoje. O inédito foi mostrar que o grupo estudado se originou em maiores altitudes, e só depois desceu e se espalhou pelo continente, pois diversos trabalhos relacionados a outros grupos de borboletas mostram o caminho inverso. Outro grupo de borboletas estudado por André e Karina confirma suas conclusões anteriores, de dispersão "do alto para baixo".

O pesquisador lembra que as informações geológicas são importantes para confirmar que as transformações nas espécies se deram acompanhando as transformações físicas no solo: "Embora nos Andes os picos continuassem gelados e os vales quentes, à medida que estes surgiam e aumentavam em número, as condições de cada um deles eram diferentes, o que levou à transformação das espécies. Sem esquecer que a Cordilheira criou duas macro-regiões, a que olha para o Pacifico e a que olha para o Atlântico".

Karina enfatiza que ninguém tinha mostrado antes que as espécies nasceram nos Andes e depois desceram e se espalharam pelo Brasil: "Isso que é bonito. Em cima de toda aquela história filogenética das espécies, eu consigo me situar no tempo geológico e finalmente entender porque existem tantas espécies nos trópicos".

André Freitas conclui que a linha de pesquisa por ele coordenada trabalha também com a evolução utilizando dados tradicionais da morfologia, da forma, além da biologia molecular. Com base nas características morfológicas, já existem dois trabalhos em andamento, um em fase final, com borboletas da América do Sul. Ele afirma que "esta é uma vertente de estudo que vai continuar, e que promete muita informação nova que possibilitará entender cada vez melhor o que a América do Sul tem de tão diferente que a faz o continente com a maior biodiversidade do planeta".


 
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