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Os cantos de Patativa

"Ao mesmo tempo em que alimentava a terra com sementes, ele a alimentava com poesia”. O pesquisador Jorge Henrique da Silva Romero não poderia encontrar outra forma senão a lírica para falar de Patativa do Assaré (1909-2002), poeta nascido no agreste do Ceará. Na opinião do pesquisador, que dedicou sua dissertação de mestrado à análise do livro Inspiração Nordestina, o primeiro do poeta cearense, Patativa cuidava da terra enquanto compunha suas cantigas e seus poemas. Nessa atividade diária, produziu muitos sonetos, apesar de ser classificado por muitas pessoas como cordelista, sendo que os cordéis compõem a menor parte de sua produção. “Sempre falam dele como cordelista, cantador, mas ele produziu muitos sonetos. Na verdade, ele compôs pouquíssimos cordéis, em torno de 16”, explica Romero. No mapeamento de Inspiração Nordestina, primeiro livro do poeta, Romero descobriu muitos sonetos e quartetos, formas da tradição poética e evidências da erudição do homem popular do campo.

Para Romero, o poeta cearense transformava a natureza em matéria de poesia. Mas era, segundo o pesquisador, um caminho de mão dupla porque poesia e natureza ficavam relacionadas, e o trabalho era um ponto de mediação entre a poesia e o sertão. “E esse espaço era constantemente visto por uma poesia que poderia ser expressa numa linguagem matuta, de acordo com o léxico do sertanejo”, acrescenta Romero.

A leitura assídua de grandes escritores e poetas, entre eles Castro Alves e Luís de Camões, ampliava a bagagem cultural de Patativa, apesar de sua pouca escolaridade, fazendo-o ultrapassar a barreira entre o popular e o erudito. Serra de Santana, pequeno sítio deixado pelo pai, era o lugar da inspiração, segundo Romero. A orientadora da dissertação, Suzi Frankl Sperber, acrescenta que não apenas a inspiração ia para o papel, mas também a consciência do ato da escrita. Segundo a docente, ele tinha clareza de que a inspiração lhe era sugerida pelo mundo que o cercava, mas na verdade era elaborada em sua busca de uma harmonia entre imagens, palavras, consciência da pobreza e da diferença social. “Uma coisa que achei extremamente interessante é que Patativa tem uma característica que é muito própria dos poetas em geral, mas fundamentalmente do século 20, que é a consciência do ato de escrever”, explica Suzi.

Para Romero, que lê e ouve Patativa desde a infância no Ceará, seja em livros ou emissoras de rádio, trazer sua obra para discussão na academia é quase uma missão. Ele acredita que, ao mesmo tempo em que as sementes eram plantadas, a memória do poeta ia florescendo. E até os 93 anos, em 2002, a memória era uma das grandes aliadas, pois, quando convidado a declamar seus textos, ele o fazia de cor. “E algumas composições tinham em torno de 50 estrofes com dez versos cada”, acrescenta.

Inspiração Nordestina, segundo Romero, é a história da memória prodigiosa de Patativa. A obra nasceu da admiração do filólogo José Arraes de Alencar que, maravilhado com o que ouviu em uma das emissoras em que Patativa declamava,o procurou e lhe fez a proposta de publicação. O poeta da terra, apesar de estar inserido no padrão da norma culta, relutou, mas o livro acabou se tornando um marco em sua trajetória poética, segundo o pesquisador.

Com ele, se inaugura um novo momento na poética sertaneja e abrem-se novas possibilidades formais. “Inspiração Nordestina aponta para um novo movimento de criação poética, reinventando tradições e dando voz aos excluídos, emigrantes e camponeses”, pontua Romero. Conforme as observações do pesquisador sobre o livro, Patativa, ao afirmar o valor do mundo rural, reúne léxico, rima, figuras de linguagem e sua metáfora desvela um mundo extenso que vai além do sertão e da realidade local. Para Romero, Patativa sempre se orgulhou da origem de ser um agricultor. “Há poemas em que ele trata claramente da terra e do agricultor”, acrescenta Romero.

Em seu livro As razões da emoção: capítulos de uma poética sertaneja, Cláudio Andrade afirma que Patativa do Assaré talvez seja o poeta “que tratou com maior afinco, inspiração e conhecimento de causa dos problemas referentes à classe camponesa no Brasil”, de acordo com citação de Romero. Ele observa que Patativa tem sensibilidade para compor sobre temas relacionados à desigualdade de condições, à exploração de trabalhadores rurais, à necessidade de reforma agrária, à emigração, à pobreza e à miséria.

A voz tem espaço privilegiado na criação poética de Patativa. A oralidade é um componente revelador de sua obra. O livro mostra a união da letra e da voz. A mesma voz que encantou o escritor e fez com que organizasse um livro. A voz também arrebatou, por meio de ondas médias do rádio, ouvintes como o cantor e compositor Luiz Gonzaga (1912-1989), que rapidamente quis saber quem era o cantador de A Triste Partida. Ao encontrar Patativa, propôs a compra do poema, mas o poeta cearense disse que não vendia obras, mas autorizaria a gravação. Outros poemas do cantador cearense foram musicados, segundo o pesquisador, ratificando uma história bem-sucedida que teve início na composição e na improvisação.

Depois de analisar a obra, Romero constatou que Inspiração Nordestina demonstra que todas as composições percorrem uma marcante versatilidade. A publicação oferece uma rica variedade de formas e temas e revela não só o matuto e caboclo, como o próprio Patativa se classificava, mas um poeta rigorosos capaz de transitar entre os códigos linguísticos e as tradições poéticas. Para Romero, não há uma classificação exata para o repertório de Patativa, pois ele pode ser um pouco de poeta popular e outro pouco de erudito, mas o que Romero descobriu em Inspiração Nordestina foi sua maneira de falar da terra e de outros valores que são caros ao sertanejo, de forma completamente adequada aos padrões.

Patativa gostava de compor dentro dos limites da métrica e da rima. Por isso estranhava alguns poetas urbanos que fugiam desse rigor e questionava se não estariam fazendo prosa em vez de poesia, dizendo: “Aquilo é poesia? Aquilo é prosa. Não tem medida, sílaba predominante, não tem tônica e não tem rima! A beleza da poesia é a rima.” Camoniano, ele também dizia que a perda da visão de um olho, na infância, o deixava mais próximo de Camões; quando lia o poeta luso, brincava: “Hoje li Camões. Sou atrevido”. Também enaltecia a obra de Castro Alves e outros escritores com frases assim: “Castro Alves não morrerá nunca, é um monumento da poesia. 24 anos. Se vivesse 50, o que não teria deixado neste mundo?” Graciliano Ramos também estava entre os escritores preferidos de Patativa.

A professora Suzi esclarece que a rima faz com que a poesia seja mais facilmente lembrada e, como ele criava à medida que trabalhava, tinha de usar recursos presentes também na antiguidade e que serviam como auxiliares da memória, pois esta precisaria estar viva e ágil para que ele guardasse poemas inteiros.

Antônio-Patativa

O nome Patativa foi imortalizado nos vários livros, nos créditos de discos e na voz de um intérprete qualquer. O Antônio Gonçalves da Silva ficou eternizado no coração dos familiares e dos amigos de infância e também de moradores antigos de Assaré, antiga vila do Ceará, e hoje um município localizado a 623 quilômetros de Fortaleza. O apelido Patativa foi dado em 1928, durante uma viagem a Belém do Pará, pelo jornalista e advogado do Crato José Carvalho de Brito depois que ele ouviu o poeta cantar. A atribuição está associada à ave que imita muitos cantos para “roubar” o ninho de outros pássaros. Romero, que já teve oportunidade de ouvir a ave ao vivo, garante que o canto é muito bonito.

Na vila, estava localizado o pequeno sítio de Pedro Gonçalves da Silva, pai de Patativa e de mais quatro crianças. O pequeno pedaço de terra chamado Serra de Santana produziu o mais ilustre morador de Assaré, que até hoje é motivo de orgulho, segundo Romero. Depois de perder a visão de um olho, na infância, Patativa perdeu o pai e teve de brincar menos e trabalhar muito, de acordo com sua biografia. A lida interrompeu a infância, mas fez parceria com as letras, com a métrica, com a rima e com o cantador. A pedra de atiradeira deu lugar a outro tipo de imaginação que agora dava ênfase às palavras e à leitura. A infância foi relatada por outros autores, entre eles Cláudio Andrade e Luiz Feitosa.

Agora, pelas mãos de Romero, vêm à tona ainda mais as informações de que sua trajetória literária foi conduzida pela mão na terra e pela cabeça no cheiro de mato, no canto dos pássaros, na verdade nordestina, na lírica, na erudição, mas tudo vivido lá – apesar de uma fugidinha e outra para outros lugares –, nas terras do Serra de Santana, em Assaré, até 2002, ano em que Romero quis conhecê-lo. “Como ele não se fazia mais presente, decidi revivê-lo na dissertação”.

Em determinado trecho do trabalho, Romero enfatiza o que Patativa representa para si e o que deveria representar para o ensino de literatura, que carece de visita a nomes que não figuram na lista dos cânones: “O instrumento do poeta não é a caneta, mas a memória que, assim como a terra, cultiva cada estrofe, alimenta cada verso à medida que a enxada vai abrindo caminho para as sementes. O trabalho, nesse caso, é uma espécie de ‘semente da poesia’, não interrompe a atividade poética. Pelo contrário, o trabalho faz parte das instâncias da criação poética de Patativa, que, através de uma memória prodigiosa, armazena os frutos dessa criação”.

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Publicações
Artigo
“Patativa do Assaré e a experiência das tradições”. Revista Alpha.Volume 11. 2010.
Dissertação: “As formas da inspiração: linguagem e criação poética em Inspiração Nordestina de Patativa do Assaré”
Autor: Jorge Henrique da Silva Romero
Orientadora: Suzi Frankl Sperber.
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)




 
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