No Brasil, os chamados empreendimentos de Economia Solidária
não têm caráter socialista ou anticapitalista, como apontam
alguns autores. Antes, são iniciativas que mantêm ou não
se opõem às relações sociais capitalistas, ainda que nelas
não se encontre a forma explícita do assalariamento. A su-
bordinação ao capital se dá principalmente nas formas de
subcontratação e de subsistência, cuja materialidade depende
dos movimentos do mercado, que “cria, destrói e recria”
os espaços em que podem desenvolver suas atividades. “Assim,
longe de ameaçar o processo de produção capitalista, essas
iniciativas solidárias se ajustam a ele”, afirma Clara Marinho
Pereira, que investigou o tema em dissertação de mestrado
apresentada ao Instituto de Economia (IE) da Unicamp.
Em
seu trabalho, orientado pelos professores Marcio Pochmann
e José Dari Krein, Clara pesquisou os fatores que determinam
a baixa capacidade das iniciativas de Economia Solidária
em conferir bem-estar socioeconômico aos seus associados.
Nesse sentido, a pesquisadora optou por percorrer três caminhos.
O primeiro deles consistiu em analisar as transformações
mais gerais, no plano da economia e da sociedade, que propiciaram
o surgimento dessa forma de associativismo, nos idos dos
anos 80. O segundo transitou pela revisão da literatura
empírica sobre as iniciativas.
Por último, a autora procurou aprofundar o conhecimento
sobre elas, tendo como fonte os dados do Sistema Nacional
de Informações em Economia Solidária (SIES). “Os resultados
das análises quantiqualitativas encerram um quadro socioeconômico
bastante contraditório”, diz Clara, explicando que as iniciativas
reúnem características que ora as aproximam e ora as afastam
das formas típicas do modo de produção capitalista. A definição
mais aceita para a Economia Solidária, conforme a pesquisadora,
foi criada pela Secretaria Nacional de Economia Solidária,
vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), e pelo
Fórum Brasileiro de Economia Solidário (FBES).
Segundo essas entidades, Economia Solidária é o conjunto
de atividades econômicas – de produção, distribuição, consumo,
poupança e crédito – organizadas nos meios urbano e rural
sob a forma de associações, cooperativas, fábricas recuperadas,
bancos comunitários, clubes de trocas etc. Seus atributos
essenciais são a cooperação – reunião de interesses e esforços,
propriedade coletiva, partilha de resultados econômicos
e autogestão –, práticas participativas na gestão estratégica
e nos processos de trabalho e a solidariedade, além da preocupação
com a melhoria das condições de vida dos participantes,
com o meio ambiente, com a comunidade e os movimentos emancipatórios.
Mapeamento promovido pela Secretaria Nacional de Economia
Solidária aponta para a existência de aproximadamente 22
mil empreendimentos do gênero no Brasil, dos quais participam
cerca de 1,8 milhão de trabalhadores. Mas qual é a realidades
dessas iniciativas solidárias? De acordo com Clara, a maioria
delas assume as formas e princípios acima; se concentra
em segmentos de baixa densidade tecnológica, como a agropecuária,
a reciclagem e o artesanato; e possui diversas fragilidades
organizativas, de modo que tem uma baixa ou incerta capacidade
de produzir rendimentos monetários aos seus sócios. Esses,
por sua vez, não têm acesso a benefícios, garantias e direitos.
“Nesse sentido, é possível afirmar que essas iniciativas
não divergem do estímulo público à auto-ocupação desprovida
de proteção social em segmentos de baixa produtividade”,
explica a autora da dissertação.
Os poucos rendimentos gerados pelas iniciativas normalmente
têm origem em contratos firmados com empresas e na venda
direta ao consumidor, conforme Clara. “Por exemplo, uma
cooperativa de costureiras é contratada por uma indústria
de confecção para realizar determinadas tarefas, o que faz
com que a primeira fique submetida ao capital externo. Ou
ainda: uma associação fabrica um detergente. Mesmo sendo
produzido de forma coletiva, não é razoável que seu preço
ultrapasse o de um detergente comum. Do contrário, não terá
escoamento. O problema é que muitas iniciativas têm um custo
de produção maior que o preço, não perfazendo sobras”, completa.
A
despeito de não se constituírem como formas de produção
contrárias às relações capitalistas, essas organi- zações,
segundo Clara, possuem uma evidente proposta democrática.
Por intermédio de processos participativos, procuram promover
a humanização da vida coletiva e, a partir de articulações
com sujeitos e causas sociais e com outras organizações
econômicas mais ou menos estruturadas, compõem um cotidiano
sensivelmente mais democrático do que o observado nas empresas.
“Outro aspecto importante de ser destacado é que, mesmo
economicamente frágeis e com baixa capacidade de transformação
da realidade material de seus sócios, as iniciativas solidárias
têm impactos locais muitas vezes consideráveis”.
De maneira geral, informa Clara, as iniciativas solidárias
rurais têm melhor capacidade de geração de excedentes do
que as urbanas. Todavia, mesmo no meio urbano há disparidades.
As atividades ligadas à reciclagem de materiais alcançam,
por exemplo, melhores rendimentos do que as relacionadas
ao artesa- nato, por se conectarem a cadeias industriais.
“Alguns setores têm muita dificuldade em criar nexos que
levem a uma produção mais efetiva e que garantam, consequentemente,
maior grau de autossuficiência”.
Histórico
As iniciativas de Economia Solidária começaram a ser localizadas
no Brasil em meados dos anos 80. Elas surgiram em resposta
ao esgotamento do modelo em vigor, marcado pelos baixos
índices de crescimento econômico, que interromperam o esboço
de estruturação do mercado de trabalho no país. Com a elevação
do desemprego e da informalidade na década seguinte, que
veio a se somar à baixa capacidade do Estado em expandir
a proteção social à população brasileira, tais empreendimentos
ganharam corpo. Desse modo, essas organizações emergiram
com a proposta de geração de trabalho e renda dentro de
uma perspectiva democrática.
Esse modelo de associativismo, de acordo com a autora da
dissertação, é encontrado em outros países da América Latina,
embora a literatura indique antecedentes históricos em países
europeus, como a França. No Brasil, os estados do Nordeste
e do Sudeste são os que concentram o maior número de iniciativas
solidárias que produzem excedentes. Um aspecto que também
as caracteriza é a relação que têm com os movimentos so-
ciais de grande tradição, tais como os sem-terra, as pastorais
católicas e as organizações em defesa da educação.
Há também vínculos com o movimento sindical, notadamente
a Central Única dos Trabalhadores (CUT). Aliás, o mundo
sindical adotou a Economia Solidária em 1996 por intermédio
da Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM), entidade
filiada à CUT. Na oportunidade, a CNM lançou o Projeto Integrar,
cujo objetivo era requalificar desempregados e trabalhadores
em vias de perder o emprego. A discussão sobre cooperativismo
e autogestão, e mais tarde a elaboração de projetos de cooperativas
no interior de suas atividades, terminaram por aproximar
o segmento das iniciativas solidárias e permitir a criação
da Agência de Desenvolvimento Solidário (ADS/CUT).
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Publicação
Dissertação: “Economia Solidária: uma investigação
sobre suas iniciativas”
Autora: Clara Marinho Pereira
Orientadores: José Dari Krein e Marcio
Pochmann
Unidade: Instituto de Economia (IE)