Em
uma transcrição livre, na epígrafe da publicação de doutorado
lê-se: “Olho adiante, em dias não muito longínquos, para
a maior mudança jamais ocorrida na vida material da humanidade.
Vejo-nos livres para voltarmos aos princípios mais claros
e corretos da religião e da virtude tradicional – em que
a avareza é um vicio, a usura um delito e o amor ao dinheiro
detestável e que aqueles que trilham o caminho da virtude
e da sabedoria conferem menos atenção ao amanhã. Valorizaremos
mais os fins do que os meios e preferiremos o bom ao útil.
Reverenciaremos aqueles que conseguem nos ensinar como aproveitar
as horas e os dias virtuosamente e bem, as encantadoras
pessoas capazes de gozar diretamente com as coisas, os lírios
do campo que não fiam nem tecem”.
Um leitor menos avisado julgará tratar-se
de um texto sagrado ou de uma pregação religiosa. Mas a
citação que abre a tese de Davi José Nardy Antunes, apresentada
ao Instituto de Economia (IE) da Unicamp, é de um dos mais
reverenciados economistas dos tempos modernos, que vislumbrava
as possibilidades do emergente capitalismo face às novas
conquistas advindas do progresso da ciência e da tecnologia:
John Maynard Keynes (1883-1946). Além de revelar admiração
por Keynes, o autor faz elogiosas referências ao seu orientador,
professor Waldir José de Quadros, e ao professor João Manuel
Cardoso de Mello, de quem se revela credor pelas orientações
recebidas durante a vida acadêmica.
Ao abordar o tema “Capitalismo e Desigualdade”, o pesquisador
defende quanto o desenvolvimento capitalista, que considera
contraditório em sua essência, elevou a produtividade do
trabalho a níveis tais que reduziram enormemente as necessidades
da ação humana. Para ele, o desenvolvimento capitalista
foi bastante importante para o futuro do homem em consequência
da geração de progresso técnico, poupador de mão de obra.
Este fato se revela na colossal ampliação da capacidade
de produção agrícola e industrial das sociedades capitalistas
mais desenvolvidas nos últimos 200 anos. “Se antes, a baixa
produtividade e a lentidão do trabalho mantinham qualquer
tipo de bem escasso, a produção industrial permitiu a superação
da escassez e a substituição do trabalhador por máquinas”,
afirma.
Em vista disso ele considera, concordando
com previsões de Keynes sobre as possibilidades sociais
e econômicas das futuras gerações, que “o desenvolvimento
tecnológico criou verdadeiras possibilidades de emancipação,
de ampliação da liberdade e de uma vida mais plena e rica
de sentido”. Entende que, com o avanço da mecanização dos
trabalhos socialmente necessários, ocorrem condições para
a progressiva supressão da divisão social do trabalho, para
a conquista da verdadeira igualdade social e para a liberdade
individual. Antunes constata que um lampejo destas possibilidades
pode ser visto ao longo do pós-guerra, em que foi criado
um arcabouço institucional que permitiu o desenvolvimento
por algumas décadas de um mundo mais livre em que se verificaram
maior igualdade das rendas, redução de carga de trabalho
e grande progresso material.
Entretanto, considera ele, que após décadas de grande ascensão
das condições de vida nos países desenvolvidos, a volta
do liberalismo recolocou a liberdade do capital acima das
conquistas sociais e liberou as tendências mais destrutivas
do capitalismo, mantidas sob controle durante o pós-guerra
até os anos 70. Para o estudioso, disto resultou grande
regressão social no mundo altamente desenvolvido nas últimas
décadas graças principalmente à evolução tecnológica. Assim,
afirma, “sob a ótica neoliberal, o progresso social fica
bloqueado pela busca desenfreada e irracional por cada vez
mais lucro”.
Para Antunes, esta é uma das maiores contradições do nosso
tempo, uma vez que o monumental avanço da produtividade
poderia liberar o homem do trabalho pesado e de longas jornadas,
de forma a ampliar o tempo livre. Para ele, essa contradição
se revela e acentua-se na criação de um excedente cada vez
maior de pessoas não mais necessárias à produção. Este efeito
se torna cada vez mais drástico quando se leva em conta
que boa parte dos empregos, embora ligados à produção material,
atendem ao consumismo vazio e desnecessário que acelera
a devastação do meio ambiente.
Segundo o autor da tese, este modelo de desenvolvimento
é ainda permeado por uma desigualdade de rendimentos que
acomoda em ocupações precárias a massa crescente de excluídos,
que passam a compor e ampliar de forma desmesurada um questionável
setor de serviços. Para ele, “os trabalhadores foram deslocados
para a provisão de serviços pessoais, o que foi facilitado
pela expansão da renda urbana e pela desigualdade social,
em grande expansão nas últimas décadas”.
O
pesquisador conclui que a grande força ideológica da economia
tornou-se um imperativo do qual ninguém pode escapar nas
sociedades contemporâneas, assim como aos seus valores de
competição, de trabalho e de poupança. E enfatiza: “Se o
trabalho socialmente necessário fosse redistribuído, o desemprego,
a enorme desigualdade, a pobreza, as péssimas condições
de vida e a ausência de sentido da vida poderiam ser radicalmente
amainados”. No estudo, Antunes empenhou-se em demonstrar
que os homens estão presos às necessidades materiais não
apenas por elas mesmas, mas principalmente devido à forma
de organização social.
Motivações
A motivação fundamental de Davi Antunes resultou da observação
da brutal desigualdade que permeia a sociedade brasileira.
Inicialmente, pretendia restringir a pesquisa à desigualdade
no Brasil. Mas as discussões que vivenciou como colaborador
no Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho
(Cesit) da Unicamp e na Facamp, onde atua como professor,
o conduziram a abordar as relações entre o desenvolvimento
do capitalismo e a desigualdade social no mundo, tomando
como base a Inglaterra do século XIX e os EUA desde o início
do século XX.
O economista analisa o desenvolvimento do capitalismo, do
emprego e do mundo dos serviços no período de 1800 a 1970.
Defende a tese de que, nestes quase dois séculos, o desenvolvimento
capitalista liquidou progressivamente as ocupações e os
trabalhos necessários à produção e à circulação de bens,
dado que a lógica do capital implica a poupança de custos
em geral e de trabalho em particular. Isto levou à queda
maciça das atividades mais penosas, sujas e extenuantes
fisicamente, mas até então fundamentais para a sobrevivência
do homem.
Paralelamente, desenvolveu-se um mundo cada vez mais urbano,
complexo, menos manual e concentrado nos serviços. Por sua
vez, a Revolução Industrial acelerou a mecanização das atividades
agrícolas que reduziram drasticamente a necessidade do trabalho
manual no campo e possibilitou a alimentação dos contingentes
concentrados nas cidades. A sempre crescente mecanização
provocou ainda a diminuição do trabalho do chão de fábrica,
embora a produção de bens se expandisse vertiginosamente.
Antunes lembra também que a industrialização provocou uma
revolução de âmbito familiar ao disponibilizar bens de consumo
duráveis que permitiram grande presteza na execução de diversos
serviços domiciliares geralmente atribuídos à mulher, o
que criou condições para sua entrada no mercado de trabalho.
Face ao desenvolvimento das cidades e à criação de novas
necessidades, o mundo criado pelo capitalismo se alicerçou
em serviços urbanos mais bem pagos e no desenvolvimento
de uma classe média que expressa o avanço da divisão social
do trabalho e da produtividade. No início, as fábricas e
os serviços delas decorrentes demandaram grande quantidade
de trabalhadores concentrados em um mesmo local, gerando
novas necessidades como segurança pública, assistência médica,
destinação de dejetos, limpeza urbana, iluminação pública,
acesso à água potável, transporte, planejamento urbano,
entre outros.
Essa nova realidade, diz o autor, abriu espaço para que
uma parcela enorme da população se dirigisse para a crescente
demanda de serviços pessoais, assim chamados por atenderem
diretamente às pessoas. E diferentemente do que muitas vezes
se acredita, o contingente que abandonava o campo se dividia
entre os serviços ligados diretamente à produção e os pessoais.
Os gráficos apresentados no trabalho mostram que nos EUA
o emprego industrial cresce significativamente até os anos
20, mas daí em diante é sistematicamente superado pelo setor
de serviços.
A tese destaca ainda que não ocorreu uma migração direta
da agricultura para a indústria e desta para os serviços.
Essa mobilidade se deu concomitantemente para a indústria
e para os serviços, que com o tempo superam as oportunidades
criadas na indústria.
Antunes
explica que a produção do aço, do automóvel, dos bens domésticos
duráveis – geladeiras, fogões, liquidificadores, lavadeiras,
aspiradores, bicicletas, rádios – ampliaram inicialmente
a produção industrial, mas a crescente produtividade reduziu
significativamente a necessidade de mão de obra. A propósito,
ele lembra que em 1920 nos EUA já se produziam dois milhões
de carros/ano – hoje no Brasil se fabricam cerca de três
milhões. Antes da crise de 1929 lá se produziam 4,5 milhões
de veículos/ano, sem que se verificasse aumento significativo
da oferta de emprego industrial. A empresa tem cada vez
menos operários e mais colarinhos brancos, assim genericamente
denominados os que não trabalham diretamente na produção.
O pesquisador destaca que, a partir dos anos 30, nos EUA,
esse desenvolvimento se apoiou na intensa ação estatal e
na participação de sindicatos e movimentos sociais ativos,
socialapenas possíveis em uma sociedade urbana e industrial
baseada em grandes empresas, grandes fábricas e grandes
aglomerações de pessoas.
Dos anos 30 a 70 o estado americano teve importante papel
no desenvolvimento da sociedade capitalista. A Grande Depressão
levou o governo a restringir a liberdade do mercado e impedir
que os cidadãos ficassem à sua mercê. O Estado passou a
controlar fundamentalmente os mercados financeiros e a incentivar
o crescimento da economia e a geração de emprego público,
que se tornou uma questão central. Em 1910, o estado americano
dispunha de um milhão de funcionários. Entre 1940 e 1950,
já tinha dez milhões empregados principalmente na educação,
que além de permitir instrução possibilitava ascensão social.
O Estado passou também a garantir empréstimos bancários
para a aquisição de moradia.
Depois do grande progresso social observado entre os anos
40 a 70 por causa das políticas públicas e do violento progresso
econômico, enfatiza Antunes, vem o contraste. Surgiram as
crises econômicas provocadas pelo rompimento da ordem internacional,
sob a argumentação de que a intervenção do Estado atrapalhava
o desenvolvimento. Era o liberalismo que se irradiava novamente
por todo o mundo. Para agravar o problema do emprego, surge
com a informática a Terceira Revolução Industrial, em que
as máquinas computadorizadas substituem os operários. Como
piada, diz ele, “a indústria de hoje tem um trabalhador
e um cachorro. O cachorro para não deixar ninguém chegar
perto e o trabalhador para alimentar o animal”.
Antunes dedica um dos capítulos da tese às explicações e
interpretações conservadoras do desenvolvimento do capitalismo
no século XX e em outro faz a crítica a essas interpretações
e à concorrência individual.
Diante do panorama delineado, o autor da tese considera
que o progresso econômico associado à ação do Estado tem
um peso enorme na diminuição da desigualdade, como “provam
os panoramas observados nas décadas subsequentes ao pós-guerra.
Depois dessa fase, os indicadores de renda nos EUA pioraram
significativamente. No topo estão os que ganham muito e
na base a maioria com baixa remuneração, a que se destinam
os serviços duríssimos e penosos”.
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■ Publicação
Tese: “Capitalismo e desigualdade”
Autor: Davi José Nardy de Antunes
Orientador: Waldir José de Quadros
Unidade: Instituto de Economia (IE)