Seria necessário fazer uma revisão profunda nos currículos
de formação dos professores, pois a mediação pedagógica
passa pela compreensão filosófica, ontológica e estética
do ser humano. Não se educa apenas com o conhecimento epistemológico
de diferentes áreas. O conhecimento científico é fundamental,
mas é preciso refletir sobre a visão de homem que o docente
possui, ao mesmo tempo que ensiná-lo a usar bem as tecnologias
de informação e comunicação (TICs) e suas linguagens como
instrumento de ação pedagógica. “A visão da educação na
perspectiva do homem integral ainda não aconteceu. O foco
está na ‘coisa’ – no conhecimento –, e não na pessoa”, concluiu
a jornalista científica Flavia Rezende em sua tese de doutorado,
defendida no Instituto de Artes (IA) e orientada pelo professor
José Armando Valente.
“E
as TICs têm muito a contribuir com esse contexto, já que,
ao aprender a fazer, alunos e professor se conscientizam
de si e dos outros ao se perguntarem: o que faço colabora
para tecer o homem integral?”, diz a jornalista. Outra conclusão
é que o professor deve mudar o seu olhar para seus alunos.
“Tem que formar um olhar contemplador sobre o fazer e os
produtos realizados pelos alunos, numa atitude estética.
Tem que agir como um artista pedagógico, porque sua obra
é o aluno; e neste novo ambiente educativo o aluno é um
artista, conforme o conceito de matética de Seymort Papert,
criador do construcionismo. E se sua obra é o aluno, enquanto
professor, ele tem a missão social de fazer uma obra bela:
o homem integral.”
Apesar da tese ter um ‘quê’ de teórico, coube à jornalista
‘fazer’, colocando em prática suas ideias. Ela executou
o projeto para incluir jovens no mundo do trabalho, batizado
como Acreditar Jovem, em Atibaia, onde reside há 17 anos.
O município tem 122 mil habitantes, sendo que 56 mil moram
numa comunidade ‘do outro lado da ponte’ da cidade, onde
22 mil jovens têm idade entre 18 e 25 anos.
Baseando-se na metodologia do seu mestrado, de 2004, a
autora conformou um ambiente construcionista híbrido: uma
parte on-line adotando o Teleduc 4.0, software produzido
na Unicamp pelo Núcleo de Informática Aplicada à Educação
e pelo Instituto de Computação (IC); e outra presencial,
com oficinas de arte e criatividade, usando – além de computadores
e internet – câmeras, filmadoras, gravadores digitais e
celulares.
A pesquisadora partiu do relatório Delors, escrito por
Jacques Delors para a Unesco, Comissão Internacional sobre
Educação para o século XXI, intitulada Educação, um Tesouro
a Descobrir (1996), que propõe quatro dimensões da aprendizagem:
o aprender a fazer, a compreender, a ser e conviver, como
os quatro pilares da educação.
Flavia Rezende decidiu rever sua metodologia de conformação
de ambiente virtual construcionista. Percebeu que em seu
mestrado tinha lidado apenas com o modelo do ‘fazer ao compreender’,
privilegiando aspectos cognitivos e epistemológicos. Faltavam
as dimensões do ser e do conviver para preparar o jovem
para a vida.
As pessoas, lembra, tomavam consciência apenas de como
aprendiam para aprender ao longo da vida, como sugerido
por Valente e Seymour Papert, mas não tomavam consciência
‘de quem eu sou, como eu vivo com as pessoas’. Buscou então
incluir estratégias pedagógicas integrando o ser e conviver
em meio a muito diálogo.
Nesse novo ambiente construcionista, com uma abordagem
da estética marxista, a pesquisadora conseguiu que os jovens
em pouco tempo se empoderassem para ‘vencer no mundo do
trabalho só sendo fera’, um dos slogans do projeto.
Iniciativa
Esse projeto iniciou com 30 jovens, caindo para 18 e estabilizando-se
em 15. É que eles não conseguiam se manter no Acreditar
Jovem sem trabalhar, já que a pesquisa não ofereceu bolsa.
Na verificação dos motivos da evasão, Flavia Rezende diagnosticou
a necessidade dos jovens ajudarem suas famílias; a imaturidade
de alguns que viam o projeto como uma lan house; e a mudança
de cidade. Outros descontinuaram sem que fosse detectada
uma causa.
Quinze
jovens permaneceram ali por dez meses (de agosto de 2009
a junho de 2010), para efeito da pesquisa. Porém o projeto
não teve e não terá um fim. Os jovens continuam se reunindo
na ONG Pró-Humana, onde as atividades acontecem, mantendo
o apoio da sociedade civil através da ONG Consciência Solidária
e das Faculdades Atibaia (Faat), instituição que cedeu os
laboratórios de informática para o estudo.
A ideia é fazer com que cada jovem reconheça na prática
e acredite em seu potencial para estar no mundo do trabalho.
O Acreditar Jovem fornece-lhes ferramental e autonomia,
“porque hoje o mundo do trabalho oferece emprego, com poucas
vagas, e inclui os empreendedores, cuja permanência depende
da sua proatividade”, pontua Flavia Rezende.
O projeto aconteceu em dois momentos. O primeiro foi com
as competências requeridas pelo mundo do trabalho (usar
as TICs, trabalhar em equipe, saber ler, pesquisar na Web,
desenvolver o letramento numérico, tomar consciência de
problemas ambientais e atuar em competências gerenciais).
O segundo envolveu ações na incubadora, quando o jovem realizou
seu sonho profissional.
No curso, os jovens têm um caminho com algumas atividades
livres a efetuar. Passam por um miniestágio na área de sua
predileção. “É quando praticam o sonho de profissionais”,
realça a pesquisadora. “Os jovens decidem o sonho de ser,
e eu tento viabilizá-lo na sociedade civil.”
Natália queria ser cabeleireira. Fez um miniestágio em
um salão para ver como isso acontecia na prática para perceber
e tomar consciência das competências que precisava desenvolver.
Como todos, ela fez sua reflexão mediante registros fotográficos
e anotações no computador.
Lucas queria ser jornalista. Durante uma semana saiu com
esse profissional para cobrir eventos, incluindo uma enchente.
Reconheceu os pré-requisitos. Teve que superar sua timidez,
pesquisar e ler muito, corrigir seus textos, ajustar o foco
da fotografia, entre outras tarefas.
Ana Paula, deficiente auditiva, teve dificuldade de encontrar
sua carreira. Queria ser secretária e, ao fazer o curso,
constatou que podia ser uma boa recepcionista, após reconhecer
seu problema estrutural com a escrita. Foi trabalhar numa
clínica médica.
Ser bailarina era o sonho de Mariana. A pesquisadora encontrou
uma academia de dança que a acolhesse. No decorrer do miniestágio,
ela reconheceu que não era bem aquilo o que esperava. Quis
ser street dancer.
Tácio sinalizava uma tendência à arquitetura. Seu desenho
em perspectiva era fantástico, conta a jornalista, começando
com um autorretrato e crescendo ao usar os diferentes softwares.
No estágio, escolheu a área de agronomia e paisagismo. Na
volta, ao produzir uma mídia condensando a experiência para
sua reflexão, decidiu-se pela arquitetura. “Pelo sim e pelo
não, ele descobriu a sua vocação, assim como os demais jovens.”
TIC na educação
Flavia Rezende afirma que uma das contribuições das tecnologias
da informação e comunicação para a educação é que o computador,
ou qualquer TIC, ajuda a explicitar o processo de aprendizagem.
Isso já foi demonstrado pelas teorias de Ciclo Conceito
de Aprendizagem e Redemoinhos de Aprendizagem, de Valente
e Prado respectivamente. “Ao agregar máquina fotográfica,
gravador e filmadora, as TICs operam de modo que o aluno
organiza o conhecimento sobre a realidade, não apenas constrói
o conhecimento prático e científico. Toma consciência das
operações mentais, de si mesmo e de seu potencial.”
Ao selecionar fotografias e ao montar um filme para construir
a narrativa livre e criativamente, as pessoas notavam o
que era relevante para sua obra. “Nessa medida eu, como
artista pedagógica, devo enxergar a obra desse aluno e significá-la.
Para isso, tenho de mudar o ambiente educativo o tempo todo,
sendo criativa também”, conta a jornalista.
Impacto social
Flavia Rezende relata que o projeto aconteceria em Sud Mennucci,
cidade-paradigma em inclusão digital, na qual todos moradores
podem ter, em casa ou em locais públicos, acesso grátis
e irrestrito à internet banda larga sem fio. Mas decidiu
realizar sua pesquisa em Atibaia. “O problema de inclusão
do jovem no mundo do trabalho estava ao meu lado”, justifica.
“E seus resultados podem ser aplicados em todos os contextos
e em outros países.”
O valor da pesquisa foi mostrar que é possível a formação
integral com as TICs e que elas, aplicadas em ambientes
construcionistas na abordagem estética, mais do que ‘cercear’
o processo educativo, ajudam nessa formação. Socialmente,
são ferramentas potentes para inclusão do jovem, opina a
jornalista.
Segundo ela, a experiência do projeto está aberta às prefeituras
e às ONGs interessadas não só em incluir o jovem no mundo
do trabalho. “Acredito que esta metodologia propicia o empoderamento
do idoso, das mulheres e das pessoas que atuam nas organizações
empresariais e que desejam ser learning organization (organizações
que aprendem).”
A filosofia, recorda, consiste em mudar o paradigma do
fazer e compreender para as aprendizagens do fazer ao ser
e conviver para compreender. Esta metodologia, diz a pesquisadora,
tem impacto em todos os âmbitos da aprendizagem. “Meu desejo
é que haja um telecentro do projeto em cada canto do país,
uma rede.”
Para a formação de novos grupos em Atibaia, a jornalista
aguarda a instalação de um polo, via o Programa Telecentro-BR,
com computadores fornecidos pelo Ministério do Planejamento,
e os participantes atuais serão os agentes digitais.
A autora da tese crê que, quanto mais próximo o telecentro
estiver da onde vive o aluno, melhor. Embora se considerando
a mãe do Acreditar Jovem, ressalta que “agora esse projeto
é filho de todos, pois os jovens já se apropriaram dele.
Inclusive criaram o Cine na Tenda. Como parte da incubadora
juvenil, ela tinha um prazo de seis meses para ocorrer,
mas ficará para sempre”, comemora.
Indagada por que Acreditar Jovem, a pesquisadora responde:
“por princípio. Se não acredito nas pessoas, como é que
poderei interagir com elas e, pior, ser a sua educadora?”
Flavia Rezende fez Jornalismo Científico no Laboratório
de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp, tendo mestrado
em Multimeios e doutorado em Artes pelo IA.
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Publicação
Tese de doutorado: “Desvelando a estética em ambientes
construcionistas de ensino e aprendizagem. Uma experiência
de inclusão de jovens no mundo do trabalho”
Autora: Flavia Amaral Rezende
Orientador: José Armando Valente
Unidade: Instituto de Artes (IA)
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