O
estudo conduzido pela fisioterapeuta Grazielle Aurelina
Fraga de Sousa na área da cronobiologia observou as variações
do comportamento da memória de estudantes universitários,
em dois horários: início da manhã e final da tarde. De
acordo com a pesquisa, os voluntários de cronotipo intermediário,
que são aqueles indivíduos que não possuem preferências
rígidas quanto ao horário para desempenhar atividades,
apresentaram desempenho semelhante em ambos os horários,
sem que fossem registradas diferenças significativas entre
eles. A pesquisadora, que foi orientada pela professora
Elenice Aparecida de Moraes Ferrari, do Laboratório de
Sistemas Neurais e Comportamento (LabSNeC) do Instituto
de Biologia (IB) da Unicamp, contou com bolsa de estudo
financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico (CNPq).
De acordo com a autora da dissertação de mestrado, todas
as pessoas possuem um sistema temporizador endógeno (relógio
biológico), que é responsável por ditar o ritmo interno
de cada organismo. Assim, a população pode ser dividida
em três grupos. O primeiro é formado por indivíduos do
cronotipo matutino, que apresentam maior disposição pela
manhã. O segundo é constituído por homens e mulheres do
cronotipo vespertino, que têm performance superior à tarde
e início da noite. O terceiro congrega os chamados intermediários,
que não possuem preferências rígidas quanto ao horário
para desempenhar suas atividades.
Para verificar como a memória pode variar conforme o
horário e o intervalo de tempo entre a aplicação de testes
específicos, Grazielle recorreu a um grupo de aproximadamente
400 alunos do IB. A eles, a pesquisadora aplicou um questionário
para classificar o cronotipo de cada um. Os jovens, de
ambos os sexos, responderam a perguntas relacionadas a
preferências de período para a realização de atividades
físicas e intelectuais e acerca dos horários em que costumavam
dormir e acordar, entre outros. “Por meio dessa ferramenta,
observei que a distribuição dos cronotipos entre os estudantes
corresponde ao que é descrito pela literatura para a população
brasileira. Dessa forma, 59% dos participantes foram classificados
como intermediários, 35% como vespertinos e 6% como matutinos”,
relaciona a pesquisadora.
Por não ter tido condições de formar grupos de estudos
que pudessem ser proporcionalmente distribuídos entre
os três diferentes cronotipos, a pesquisadora optou por
trabalhar somente como o segmento que representava a população
geral, ou seja, os indivíduos classificados como intermediários.
Estes foram divididos em grupos que realizaram testes
em diferentes horários, com o objetivo de aferir a memória
operacional (mais imediata) e episódica. No primeiro caso,
os estudantes escutavam uma sequência de números e deviam
repetir cada uma, na ordem direta ou inversa, imediatamente
após a apresentação. “Também avaliei a memória visuo-espacial
dos voluntários num teste em que quadrados coloridos (blocos)
apareciam na tela do computador e eles tinham que memorizar
e indicar a sequência de apresentação”, explica Grazielle.
Além destes, também foram conduzidos testes com listas
de palavras e relato de histórias. Após ouvi-las, os participantes
da pesquisa tinham que reproduzi-las verbalmente, tanto
imediatamente quanto na sessão subsequente. “Tentei fazer
uma análise de componentes das memórias operacional e
declarativa”, diz a pesquisadora. Um cuidado especial
adotado por ela relacionou-se às estudantes. Conforme
a autora da dissertação, existe uma diferença entre homens
e mulheres no que toca à memória, principalmente quando
considerado o ciclo hormonal destas. A maioria dos trabalhos
científicos da área preconiza o uso somente de voluntários
do sexo masculino, para que sejam evitadas distorções
nos resultados. “Como eu não podia abrir mão da participação
das alunas, não foram aplicados testes imediatamente antes
ou durante o período menstrual, de modo a evitar uma interferência
das mudanças hormonais no desempenho”, esclarece.
Grazielle afirma que a análise dos resultados indicou
que os grupos apresentaram desempenho semelhante nos diferentes
horários, sem diferenças significativas entre eles. “Isso
poderia sugerir que o horário matutino ou vespertino para
a realização dos testes de memória não influenciaria o
desempenho de indivíduos de cronotipo intermediário. Entretanto,
seria muito interessante podermos comparar o desempenho
desses indivíduos com aqueles classificados como tendo
cronotipo matutino ou vespertino. Por hipótese, o resultado
poderia se repetir entre os indivíduos desses segmentos
também”, explica a fisioterapeuta.
Além disso, segundo ela, o estudo apontou uma correlação
positiva entre a duração do sono e o desempenho dos participantes
da pesquisa. Dito de maneira simplificada, quanto maior
a duração do sono, melhor a performance das pessoas. “Isso
é interessante, visto que os estudos sobre o sono normalmente
realizam testes em laboratório, de forma controlada. A
correlação apontada pela minha pesquisa indica a necessidade
de também avaliar essa questão em um ambiente comum, mais
próximo da realidade das pessoas”, considera. Na opinião
de Grazielle, seu trabalho foge um pouco das pesquisas
realizadas no LabSNeC. Até então, os trabalhos eram desenvolvidos
mais no nível comportamental e molecular, tendo como procedimento
a análise de experimentos feitos com animais de laboratório.
“A minha abordagem, voltada para a pesquisa com humanos,
tem uma relação mais direta com o cotidiano. Acredito
que a partir das questões levantadas outros trabalhos
semelhantes surgirão, o que poderá possibilitar a ampliação
dessa nova linha de pesquisa”, prevê.
Grazielle acredita, ainda, que os dados que emergiram
do seu estudo poderão ser somados a outras informações
sobre o sono de estudantes, na tentativa de despertar
o olhar da sociedade para a necessidade de se adequar
os horários escolares às características circadianas das
pessoas. “É preciso observar as características cronobiológicas,
no sentido de estabelecer horários que favoreçam o desempenho
eficiente das pessoas. Isso sem dúvida traria um impacto
positivo para o resultado das tarefas, bem como garantiria
maior qualidade de vida à população. Contrariar sistematicamente
aquilo que as pessoas conhecem como relógio interno pode
ser prejudicial. No campo do trabalho, por exemplo, há
uma relação estreita entre acidentes e os períodos em
que eles ocorrem. Os episódios são mais comuns durante
a madrugada, quando os níveis de atenção sofrem alterações,
pois o organismo está preparado para o repouso. O problema
é especialmente preocupante no que toca a trabalhadores
que executam atividades repetitivas e/ou cumprem turnos
de forma alternada”, analisa.
De acordo com Grazielle o organismo humano tem ritmos
próprios e é preciso respeitá-los. “Uma boa forma é tentar
conciliá-los com os ritmos externos. Por exemplo, o nosso
sistema temporizador endógeno determina o ritmo de secreção
de diferentes hormônios, entre eles o cortisol, conhecido
como hormônio do estresse. O cortisol tem seu pico de
secreção no início da manhã, preparando-nos para o período
de vigília. Quando falamos em contrariar o relógio biológico,
falamos em dessincronização entre o que o nosso relógio
endógeno determina e aquilo que fazemos. Essa dessincronização
pode determinar um quadro mais ou menos crítico de quebra
da homeostasia [referente o equilíbrio interno] do organismo”,
afirma. Alguns trabalhos científicos, prossegue a autora
da dissertação, relacionam o aumento do número de acidentes
de trânsito aos períodos próximos à mudança do horário
de verão. Isso acontece porque um contingente significativo
de pessoas sente dificuldade em se adaptar à alteração.
Muitas ficam irritadas ou têm o nível de atenção reduzido.
A cronobiologia, ramo da Biologia que estuda a organização
temporal da matéria viva, é uma ciência relativamente
nova. No Brasil, ela começou a ganhar corpo nos últimos
anos, graças à formação de grupos de pesquisas, principalmente
nos estados de São Paulo, Rio Grande do Norte, Paraná
e Rio Grande do Sul. Os resultados dos estudos já realizados
têm contribuído para a orientação de algumas medidas práticas.
No esporte, por exemplo, os dados cronobiológicos têm
servido para redimensionar os horários de treinamento
dos atletas, de modo a obter o máximo rendimento por parte
deles. Fora isso, a ciência também tem fornecido dados
valiosos para a medicina e farmacologia. Sabendo que o
organismo humano funciona de modo diferente conforme o
período do dia, os cientistas têm buscado informações
que indiquem o melhor momento para uma pessoa tomar um
medicamento ou ser submetida a uma cirurgia, cuidados
que podem contribuir para uma recuperação mais rápida
dos pacientes.
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Publicação
Tese: “Desempenho de estudantes universitários
em testes matutinos e vespertinos para avaliação da memória
episódica e operacional”
Autora: Grazielle Fraga Souza
Orientação: Elenice A. de Moraes Ferrari
Unidade: Instituto de Biologia (IB)
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