O renegado dos pampas
ISABEL
GARDENAL
Inodoro Pereyra, o renegado,
é a personagem principal de uma história em quadrinhos (HQ)
pouco conhecida no Brasil, mas que já começa a despertar
interesse aqui. Criada pelo humorista gráfico argentino
Roberto Fontanarrosa (1944-2007) em 1972, esta HQ é uma
paródia do gaucho argentino (em espanhol não tem acento)
– tipo humano característico das regiões pampianas e que
teria se desenvolvido nos territórios fronteiriços do que
hoje seriam Brasil, Argentina e Uruguai. Marcado pela geografia
– o pampa – e pela sua condição fronteiriça, o fato é que
o gaucho se tornou símbolo dos conflitos e tensões na Argentina
moderna. A conclusão é da historiadora Priscila Pereira
em sua dissertação de mestrado, apresentada ao Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH).
Na sua pesquisa, Priscila
estudou as imagens e estereótipos do gaucho vinculados por
esta HQ, que rediscute questões cruciais que marcaram a
história da República Argentina. Através do humor e da burla,
o quadrinho permite repensar, por exemplo, a imagem de civilização
e barbárie cunhada por Domingo Faustino Sarmiento, em 1845,
no seu livro Facundo: Civilización y Barbarie, e que acabou
se tornando uma das metáforas mais emblemáticas da história
nacional.
Escrito como uma crítica
ao governo federalista de Juan Manuel de Rosas (1793-1877),
Facundo é considerado um dos textos mais importantes do
ensaísmo argentino, pelo fato de oferecer uma chave explicativa
para a história deste país. Para Sarmiento, a Argentina
seria uma nação dividida em duas partes opostas, representadas
pela fórmula de civilização e barbárie que, por sua vez,
encerraria outras dicotomias: campo e cidade, unitários
e federais, nacionalismo e cosmopolitismo, etc.
Assim, o livro acabou dando
ênfase à imagem do gaucho malo [gaúcho mau], sem governo,
sem cultura, que vivia em cima de um cavalo percorrendo
os pampas, desprovido de senso de sociabilidade. “Facundo
é uma crítica ao caudilhismo de homens como Facundo Quiroga
e Rosas. Tais caudilhos – líderes político-militares no
comando de uma força autoritária – se sustentariam no poder
graças ao apoio de gauchos e de outros homens do campo,
segundo a abordagem de Sarmiento”, situa a pesquisadora.
É exatamente esta imagem
de uma nação polarizada e dividida em civilização – a cidade,
os intelectuais unitários – e barbárie – o pampa, o gaucho,
os caudilhos federais, que o quadrinho pretende desconstruir.
Contudo, Priscila constatou que, embora Inodoro Pereyra
seja uma crítica aos discursos essencialistas sobre a identidade
argentina, ao ser recepcionada pelo público, a paródia se
transformou em paráfrase – que seria o mesmo que dizer alguma
coisa de outro modo, sem alterar substancialmente o conteúdo
de um texto. Para a pesquisadora, a forma como esta HQ foi
lida pelo público argentino pode indicar que “o discurso
sobre ‘as duas argentinas’ esteja tão arraigado no imaginário
político da nação que qualquer esforço por questioná-lo
gera seu efeito oposto, sua reiteração”.
A pesquisadora conta que
Inodoro foi seu objeto de estudo, inédito tanto no Brasil
como na Argentina. Isso, avalia, tem um peso significativo,
ainda mais se pensando que se trata de um trabalho na área
de História em que ainda são incipientes estudos que utilizem
histórias em quadrinhos como fonte documental, talvez por
causa da persistência de uma imagem pejorativa ligada às
HQs ou das dificuldades de se lidar com esse tipo de documentação.
Ocorre que esta situação já vem mudando, a seu ver, já que
há tempos a História vem discutindo a necessidade da ampliação
de seus domínios teóricos e metodológicos.
De qualquer forma, seu trabalho
vem suprir uma lacuna no que se refere aos estudos sobre
quadrinhos latino-americanos, praticamente desconhecidos
no Brasil. Segundo a pesquisadora, “aqui, no máximo, as
pessoas se lembram da Mafalda do Quino, das Mulheres Alteradas
da Maitena e do Macanudo do Liniers.”
Na verdade, Priscila conheceu
Inodoro Pereyra – que, traduzido para o português, quer
dizer “Privada Pereyra” – através do livro Culturas Híbridas,
do antropólogo argentino Néstor García Canclini e achou
que o estudo valeria a pena. O seu orientador José Alves
de Freitas Neto, docente do IFCH, conseguiu um álbum sobre
a personagem, e assim ela iniciou a pesquisa. Esteve na
Argentina e lá consultou as revistas nas quais o quadrinho
foi originalmente publicado. Conheceu também os amigos e
a viúva de Roberto Fontanarrosa, falecido em 2007.
Para a estudiosa chegar
a Inodoro Pereyra, um quadrinho sem tradução para o português,
foi muito difícil pois seria o mesmo que imaginar um argentino
lendo o Chico Bento do Mauricio de Sousa. “Fontanarrosa
trabalhou com o jargão do interior, não com o espanhol formal.
Logo, o mais complicado foi me familiarizar com a linguagem.”
Priscila
esclarece que o quadrinho foi publicado durante mais de
30 anos na Argentina e que, por causa dessa longa duração,
não seria possível trabalhar no mestrado com três décadas
de história deste país – já que toda HQ é uma fonte que
revela o seu período. A historiadora escolheu, assim, trabalhar
os primeiros episódios da série, publicados nas revistas
Hortensia, Mengano e Siete Días no quadriênio 1972-1976.
Após 1976, Inodoro deixou
tais publicações humorísticas e se integrou à página de
humor do jornal Clarín, momento no qual as histórias da
personagem foram difundidas para toda a Argentina. Essa
“etapa Clarín” – que coincide com o último período ditatorial
vivido pela nação vizinha (1976-1983) – não foi contemplada
pelo mestrado, ficando para um segundo momento da pesquisa.
A pesquisadora chama a atenção
que Inodoro surgiu 100 anos após a publicação do Martín
Fierro, um poema realista de José Hernández relacionado
à cultura gauchesca e que exalta o homem do pampa. A obra
é considerada um dos principais livros da história nacional,
comparável em importância ao El Cid para os espanhóis ou
La Chanson de Roland para os franceses. Pelo menos assim,
o livro foi lido pelos nacionalistas argentinos. Um paradoxo:
essa exaltação se deu num momento em que o gaucho desaparecia,
vergastado pelas campanhas militares e pelas modificações
introduzidas no campo argentino. O poema foi publicado em
1872, com o título El gaucho Martín Fierro e sua continuação,
La vuelta de Martín Fierro, em 1879.
Na primeira parte, Fierro
foi recrutado para trabalhar na fronteira, onde sofreu maus-tratos.
Além de perder a mulher e a família, perdeu também o seu
rancho. “Aconteceram só desgraças na vida dele, por isso
decidiu adentrar as terras indígenas”, descreve a historiadora.
Na volta, o gaucho Martín
Fierro decidiu reintegrar-se à sociedade criolla, após concluir
que a vida entre os indígenas teria sido pior do que a que
vivia em meio à sociedade branca. “A reincorporação da personagem
ao mundo da civilização resultará na redenção de Fierro,
que se transformará em um gaucho plenamente inserido na
nova ordem sociopolítica vivida pela Argentina de então:
a de um país liberal, oligárquico e moderno”, aponta a pesquisadora.
É preciso observar, acentua
ela, que o poema escrito por José Hernández foi uma resposta
ao Facundo de Sarmiento, que consagrou a associação entre
a figura do gaucho e a barbárie. Pelo contrário, no Martín
Fierro reivindicou-se o gaucho como sujeito da civilização
e combateu-se a ideia de que ele seria a priori mau, tendo
em vista que é a sociedade que o torna um delinquente, um
fora da lei. “No seu livro, Hernández denuncia as injustiças
sofridas pelos moradores do campo, decorrentes da chegada
dos liberais ao poder, a exemplo dos recrutamentos forçados
e da participação compulsória na guerra contra o indígena.”
Não é por acaso portanto
que, 100 anos após a publicação do Martín Fierro, tenha
aparecido o gaucho Inodoro Pereyra como uma paródia deste
universo gauchesco consagrado pelo poema de Hernández. Todavia,
o gaucho de Fontanarrosa surge para ser muito mais do que
um espelho da personagem hernandiana, propondo para tanto
um caminho ainda não transitado.
Paródia
No episódio inicial da série criada por Fontanarrosa, parodia-se
claramente uma das cenas do Martín Fierro. Inodoro entra
num bar de secos e molhados (pulpería), local onde os gauchos
costumavam ir para se divertir. Um grupo de soldados inicia
uma perseguição contra o gaucho, deflagrando um duelo que
resulta em algumas mortes. Um dos soldados que havia passado
para o lado de Pereyra lhe diz: “E agora, amigão, vamos
fugir para as terras indígenas?”. A resposta do gaucho é:
“Sabe o que acontece? É que isso eu já li em outra parte
e eu quero ser original”. A paródia é, em última instância,
uma intertextualidade permanente, admite a mestranda, tanto
que o episódio em questão retoma claramente a cena do final
da Ida do Martín Fierro: o momento em que o gaucho decide
fazer a travessia da fronteira, internando-se em territórios
indígenas e abandonando o mundo “civilizado”.
Fontanarrosa, quando dá
à luz Inodoro Pereyra, convoca o leitor para ser seu cúmplice
nesta paródia, porque pressupõe que o leitor já conhece
a história original. “A paródia então volta ao modelo com
o fim de subvertê-lo”, afirma Priscila. De qualquer forma,
a personagem criada por Fontanarrosa tornou-se um grande
sucesso editorial na Argentina, comparável à personagem
Mafalda em termos de reconhecimento de público. “Agora,
indo a Buenos Aires, Córdoba ou Rosário, a HQ Inodoro Pereyra
é um dos ícones da cultura argentina”, relata a historiadora.
Segundo o professor José
Alves, o trabalho de Priscila é ousado e foi avaliado dessa
forma pela banca examinadora. Sua ousadia está em despertar
o olhar do historiador para um tipo de fonte pouco frequente
nos estudos históricos – as histórias em quadrinhos. Outro
aspecto é a releitura que essa linguagem faz de um tema
clássico da historiografia argentina – a gauchesca e seu
espaço nos discursos identitários. Ainda de acordo com ele,
“num período de processos acelerados de integração política
e econômica com nossos vizinhos, a história argentina e
seus produtos culturais são pouco conhecidos pelos brasileiros,
tornando-se difícil pensar qualquer forma de integração
pautada no desconhecimento”.
Imitando a vida
Fontanarrosa, o El Negro, integrou a equipe do jornal Clarin,
desde 1973. Até a sua morte, que ocorreu aos 63 anos, ele
permaneceu nesse veículo. Por estranho destino, foi vítima
de uma esclerose lateral amiotrófica, doença degenerativa
que atinge os músculos. Aos poucos, perdeu a capacidade
motora e de fazer o que lhe era mais prazeroso: desenhar.
Mesmo assim, durante um ano ele continuou fazendo seus roteiros,
cujo desenho foi confiado aos amigos Crist (Cristóbal Reinoso)
e Oscar Salas. Inodoro Pereyra, por exemplo, ficou a cargo
deste último, enquanto que sua obra gráfica publicada diariamente
no Clarín foi continuada por Crist.
Em 2006, Fontanarrosa ganhou
do Senado argentino o prêmio “Domingo Faustino Sarmiento”,
deferência a pessoas que contribuíram com a cultura do país.
Inodoro Pereyra, o renegado, e Boogie, o seboso, foram suas
maiores criações para o humor gráfico. Com engenhosidade,
fez até a personagem de Inodoro envelhecer com o tempo.
Com o passar dos anos, ele foi se tornando mais cartunizado
e mais cômico ainda.
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Publicação
Dissertação de mestrado: “Entre a épica e a paródia:
a (des) mistificação do gaucho nos quadrinhos de Inodoro
Pereyra, el renegau”
Autora: Priscila Pereyra
Orientador: José Alves Freitas Neto
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas (IFCH)
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