JU
– O que aborda o livro?
Funari – Ele está dividido em duas partes. A primeira
é sobre Arqueologia Forense, que cuida dos aspectos legais
e jurídicos, em particular da identificação dos ossos humanos.
Este instrumento é importante para estudar por exemplo cemitérios
clandestinos, em que a população é morta, assassinada ou
executada ilegalmente. As pessoas não identificadas são
jogadas ou enterradas em fossas comuns, também não identificadas.
A Arqueologia
Forense estabelece a identificação do contexto em que a
pessoa foi morta e enterrada. Há casos em que se consegue
identificar pessoas por arcada dentária, eventualmente até
pelo DNA e por outras características físicas comparadas
às desaparecidas. Outro caso consiste em saber como a pessoa
foi morta. Se levou um tiro, como este tiro foi dado? Dependendo
da posição, é possível saber se estava lutando, se foi assassinada
a sangue frio ou se foi executada. Se foi torturada, teve
os ossos quebrados; como eles foram quebrados? A Arqueologia
Forense trata então desses aspectos que são jurídicos, por
terem implicações legais; tem ainda um lado biológico e
médico, como a identificação de ossos, DNA; e tem um lado
propriamente arqueológico, que é o contexto em que foram
encontrados.
A perspectiva
jurídica do patrimônio arqueológico implica os aspectos
dos vestígios materiais para o ordenamento jurídico brasileiro.
Os temas aqui tratados referem-se a esta questão: como a
Arqueologia foi tratada na legislação, por que as leis tratam
da Arqueologia, como a tratam e qual a relação dos vestígios
materiais com o ordenamento jurídico, em particular num
ponto – a passagem da ditadura militar para a democracia.
A justiça de transição é isso.
No
caso das pessoas que foram mortas e tiveram seus corpos
encontrados, quais as suas implicações jurídicas? São diversas.
Identificou-se uma pessoa, a responsabilidade é jurídica.
Alguém foi responsável pela morte, algum órgão? Isso pode
ter consequências para o Estado, ter que pagar indenização
à família. A pessoa foi torturada antes de morrer? Quem
a torturou e por quê? Outro assunto abordado está nas audiências
públicas como defesa do patrimônio. O que é audiência pública?
É quando se faz qualquer tipo de trabalho com impacto ambiental.
É preciso que este trabalho envolva Biologia, Antropologia,
Arqueologia e outras áreas. Inclui ouvir a população local
sobre o projeto. Já a segunda parte do livro enfoca mais
o aspecto do patrimônio.
JU
– Em que medida Direito e Democracia devem caminhar com
a Arqueologia?
Funari
– Não há necessariamente uma relação. No livro, estabelecemos
a passagem da ditadura para a democracia, que se deu a partir
dos anos 80 e que teve consequências legais. O ordenamento
jurídico do país mudou. As pessoas foram responsabilizadas
por outras que morreram e instituições por pessoas que foram
torturadas. Logo, direito e democracia estão associados:
a passagem de um Estado autoritário para um Estado de Direito,
que é a democracia. O que é novidade neste livro é juntar
estas discussões jurídicas com a Arqueologia, fornecendo
informações específicas sobre ditadura e democracia que
não existem em outros documentos.
A participação
da Arqueologia é muito importante para os direitos humanos.
Quando se pensa na identificação de pessoas, não se sabe
se há documentos relatando sobre os que desapareceram. Quando
mortas ilegalmente, elas desapareciam e não havia interesse
em registrar isso. Mesmo que existissem documentos, eles
poderiam ter sido destruídos. E, mesmo que ainda existam,
são inacessíveis porque o governo, o anterior e o atual,
não os liberam. A Arqueologia permite ter informações de
primeira mão e que atestam não existir qualquer tipo de
documento escrito.
JU – Nesse contexto,
o que representou a guerrilha do Araguaia?
Funari – A guerrilha
do Araguaia aconteceu entre o final dos anos 60 e começo
dos 70, quando o regime militar endureceu, o que fez com
que alguns grupos tomassem as armas. Travou-se então uma
luta. A reação do regime foi enérgica e, da parte do Araguaia,
montaram uma operação na selva e mataram a maior parte das
pessoas. Foram mortas em combate –literalmente ou não –,
sendo presas e mortas, o que é muito comum para evitar um
processo. Estados de força, ao invés de prenderem pessoas,
matam. Mesmo matando a pessoa, ainda se pensa o que fazer
com ela. O corpo era enterrado na época da ditadura. Poucas
pessoas assistiam. A localização no meio do mato é dificílima.
Passados 30 anos, quando instalou-se o regime democrático,
os parentes dos desaparecidos queriam descobrir onde eles
estavam. Era praticamente impossível. Não havia documentação.
As pessoas vivas não tinham, muitas vezes, interesse em
divulgar. Agora o Exército ficava envolvido. Uma ideia era
que ele, por ter estado na guerrilha, tivesse essas informações.
Se tivesse, não sabemos se estaria interessado em revelá-las.
JU – No caso
específico da guerrilha do Araguaia, fala-se de busca de
corpos pelo Exército. Que outro setor poderia ter feito
isso?
Funari – Na Argentina,
formava-se um grupo de arqueólogos, antropólogos e sociólogos
para entrevistar pessoas, como atividade independente, não
controlada. Teriam que começar pesquisas arqueológicas para
descobrir onde estariam estas pessoas e fazer escavações
em locais prováveis. O processo poderia ser feito por cientistas.
Muitas vezes pessoas ou instituições não colaboravam por
temerem represálias e processar as pessoas que estavam vivas,
mas existiam mecanismos, como na África do Sul, de uma comissão
de justiça e verdade.
O entrevistado que dá informações
está automaticamente isento de ser processado, sem contar
que grande parte destes crimes estão prescritos, exceto
se forem crimes contra a humanidade, que são imprescritíveis.
Este é um problema pois, à medida que se considera o crime
imprescritível, as pessoas não querem falar. Se é feito
como na África do Sul, um mecanismo jurídico com critérios
para dar informações, com isso se isenta e, como uma espécie
de confissão, confessa e, portanto, está absolvido da pena.
JU – Quais os
casos emblemáticos de desaparecidos políticos da América
Latina?
Funari – Um caso
famoso é o do Che Guevara, que foi enterrado e encontrado
na Bolívia graças à pesquisa arqueológica. No Brasil, há
um caso do qual fiz parte. Foi no Rio de Janeiro, numa fossa
comum. Tentamos identificar, com o Laboratório de Antropologia
Biológica da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, comandados
pela doutora Nanci Vieira de Oliveira, os possíveis assassinados,
como dissidentes políticos. Não conseguimos porque neste
local de “desova de cadáveres” foram achados corpos misturados,
já que as pessoas são jogadas ali em pouca profundidade.
Foram encontrados fragmentos de ossos. E as pessoas não
eram todas seguramente desaparecidas políticas, mas ainda
vítimas de tráfico e gangues.
O que temos no país é que,
além de descobrir corpos, um outro aspecto da Arqueologia
e do Direito nas ditaduras é analisar os campos de detenção
e a vida dos prisioneiros. Descobrir, através dos vestígios
materiais, como as pessoas eram mantidas presas, torturadas.
Isso também é feito pela Arqueologia. Neste caso, a Argentina
está à frente do Brasil, pois possui estudos de prisões
clandestinas. Lá existiram estas prisões.
JU – E no Brasil?
Funari – Bem, aqui
elas normalmente não eram clandestinas, como era o caso
do Dops, que ficava num prédio em São Paulo em que funciona
hoje o Memorial da Resistência, na Estação da Luz. Neste
local ocorriam torturas. Realizou-se uma reforma no prédio
antes de se fazer pesquisa. A parede foi toda refeita. As
antigas celas foram transformadas em museu. Perdemos informações
sobre o que acontecia lá. Como o prédio teve muitos anos
de atividades administrativas, já teria sido tão alterado
que não teríamos informações. Não é verdade. Sempre há informações
perdidas. O fato é que não foram contatados arqueólogos
e demorou para se reconhecer o valor de envolver a Arqueologia
em edifícios que foram antigas prisões.
JU – O que representaram
30 anos de apagamento da história da repressão militar na
América Latina?
Funari – Isso é importantíssimo.
A população mais jovem não sabe o que foi a ditadura, pois
nasceu e viveu outro contexto. Se não temos uma apresentação
do que foram os conflitos, por que e como ocorreram, falta-nos
crítica sobre nossa própria sociedade. As pessoas não têm
noção da democracia por desconhecerem a ditadura. Isso tem
um pouco a ver com o caso da Alemanha nazista. Lá se fala
do Hitler e se tenta realizar uma crítica a ele. Mesmo na
Alemanha, assim como no Brasil, critica-se o Hitler-personagem,
grande personagem. Entretanto, a questão é como essa ditadura
pôde se instalar. Porque não existe um ditador apenas. Existe
todo um sistema. Como é que as coisas funcionavam para evitar
a sua ocorrência de novo? O racismo na Alemanha, e no Brasil,
tinha outras características. Como tomar cuidado? No caso
dos direitos humanos, quando falei do assassinato de pessoas
na época da ditadura, ele acontecia por este motivo e mais.
Outro motivo era que, se fosse contra e fizesse resistência
à ditadura, era morto. Naquela época, as pessoas continuavam
sendo mortas na periferia. Esses cemitérios, de “desova
de corpos”, existem até hoje em cidades como Rio de Janeiro
e São Paulo. As pessoas estão sendo mortas pela polícia
e também pelas gangues. Vivemos um desrespeito aos direitos
humanos sem nos apercebermos.
JU – A democracia
está longe de ser alcançada?
Funari – A democracia
está sempre em evolução e em negociação. Aqui foi tomada
como Estado de Direito, que diz respeito à lei e que não
haja um arbítrio do poder. Neste sentido, desde 1985, o
país já tem um ordenamento com o Estado de Direito. Tem
que ser valorizado. Muitos não valorizam. Você não pode
ser preso. Pode recorrer a um advogado, ao habeas-corpus
e ser julgado, se tiver evidências. Não pode ser preso imediatamente.
Acho que esta democracia, no sentido formal e jurídico,
avançou muito. Falta, porém, uma substância social a esses
direitos humanos. Pessoas estão sujeitas a serem assassinadas
na rua e a terem seus corpos jogados. A família não conhece
os mecanismos para reivindicar. Este é o ponto. Assistimos
à guerra civil no Rio e vemos pessoas sendo assassinadas.
Então, o Estado abdica o Estado de Direito, mas como se
ali ele nem chega? A democracia também não. Se há facções
lutando, e a população? Está submetida e não está sendo
protegida pelo Estado. Outro dia mesmo na favela do Morro
dos Macacos, com a briga dos traficantes, a população se
retirou do local à noite. Só que as pessoas tiveram que
sair do morro. Isso não é tranquilidade. É algo fora das
regras da democracia, pois o Estado não consegue impor a
estes bandos criminosos o direito das pessoas que vivem
ali. Neste ponto, falta muito para transformar o Estado
de Direito em algo para todos.