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A ‘fábrica do antigo’ e as fontes do moderno

ÁLVARO KASSAB

No transcorrer da produção das fotos para esta matéria, o professor e historiador Luiz Marques dirigiu-se ao setor de Coleções Especiais e Obras Raras da Biblioteca Central da Unicamp (BC), onde um grupo de estudantes conversava com Tereza Cristina Nonatto de Carvalho, diretora da seção. Mirota Mori, Debora Mariane Fantinato e Rafaela Mendes de Oliveira, todos segundanistas de Arquitetura, procuravam informações sobre o Trattato della Pittura, de Leonardo da Vinci, para fundamentar seus respectivos projetos de iniciação científica.

Para além de casual, a cena foi emblemática. A obra requisitada pelos jovens, seminal, integra o acervo de microfichas que reproduzem cerca de cinco mil títulos da Biblioteca Cicognara, cuja aquisição ficou sob responsabilidade de Marques no âmbito de projeto temático da Fapesp. Ali, naquele breve encontro, do qual o docente também participou com rápidas intervenções, materializava-se a ponte entre o antigo e o novo. O professor, com visível satisfação, testemunhou alguns dos frutos de seu empenho em difundir obras – e ideias – da tradição clássica que até a primeira metade da década eram de difícil acesso.

Essa massa bibliográfica, que um dia pertenceu ao Conde Leopoldo Cicognara (1767-1834), vem abastecendo pesquisas que geraram dissertacões e teses, a maioria das quais oriundas do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), onde o docente, um dos maiores especialistas em história da arte do país, está lotado. Marques, que já ocupou o cargo de curador-chefe do Masp, coordena atualmente a linha de pesquisa Estudos sobre a Tradição Clássica e a coleção Palavra da Arte (Editora da Unicamp), cujo foco, segundo o especialista, são as fontes textuais da tradição clássica.

Na entrevista que segue, o intelectual revela as iniciativas que deverão ser implementadas em sua área de pesquisa na Unicamp, entre as quais a criação do Centro de Documentação sobre a Tradição Clássica, e analisa, com argúcia, entre outros temas, o legado da Antiguidade no mundo contemporâneo.

Da esq. para a dir., Tereza Cristina Nonatto de Carvalho, diretora da área de Coleções Especiais da BC, os alunos Mirota Mori, Debora Mariane Fantinato e Rafaela Mendes de Oliveira, e o professor Luiz Marques: difusão de obras e ideias da tradição clássica (Fotos: Antoninho Perri)JU – Qual é o objetivo da coleção Palavra da Arte?

Luiz Marques – Seu objetivo é pôr o leitor de língua portuguesa em contato com as fontes textuais mais importantes da história da arte. Fonte é um termo técnico em história que adquiriu desde finais do século XIX muitos significados. Antigamente, significava apenas documentos cartoriais, mas aos poucos  passou a abranger toda manifestação ou testemunho de uma época graças ao qual podemos tentar entender sua lógica  ou sensibilidade. A fonte é a matéria-prima do historiador. Ela pode ser um tratado, um poema, um panfleto, uma teoria científica ou filosófica, um grafite ou um texto de teologia. Ela pode obviamente também ser um testemunho não-textual: uma música, uma praça, um monumento, um quadro...

Isto posto, o foco da coleção  Palavra da Arte são as fontes textuais do que se chama a tradição clássica, isto é, da memória da Antiguidade greco-romana. Até a Primeira Guerra mundial, a Antiguidade clássica era  o denominador comum, o pano de fundo, a premissa tácita, quase a condição de possibilidade de todas as manifestações artísticas e literárias do Ocidente. O que há em comum entre, por exemplo, São Jerônimo, Carlos Magno, o papa Inocêncio III (1199-1216), Dante, Camões, Michelangelo, Shakespeare, a Reforma Católica, o teatro jesuíta, a oratória brasileira do século XVIII, Aleijadinho e Olavo Bilac? A resposta é simples: tais personagens, artistas e processos históricos não seriam inteligíveis se desligados de suas referências à Antiguidade, a partir da qual se movem.

A tradição clássica é esse tecido de referências comemoradas que possibilitou à história da arte e das letras constituir-se como um tenso diálogo entre passado e presente. Por isso, o primeiro volume da coleção – A Fábrica do Antigo – foi uma demonstração dessa tese da transversalidade da tradição clássica. O segundo volume, As Cartas de Michelangelo (1475-1564), oferece um testemunho do maior artista da Idade Moderna, e maior justamente porque é por meio dele que os tempos modernos se articulam com a Antiguidade. O terceiro volume será dedicado aos textos de Rafael (1483-1520) sobre Roma antiga, porque Rafael era considerado em seu tempo a grande autoridade sobre a Antiguidade.  É nessa linha dos grandes testemunhos da força da Antiguidade clássica ao longo da história que pretendemos trabalhar.

JU – Podemos afirmar então que a coleção preenche uma lacuna bibliográfica?

Luiz Marques – Certamente, a lacuna é imensa. Com exceção do tratado sobre pintura de Leon Battista Alberti (morto em 1472), editado há quase 20 anos pela Editora da Unicamp em uma excelente tradução do professor Antonio Mendonça (IEL), nenhuma fonte importante da historiografia artística dos séculos XV a XVIII foi publicada em português. Para ficar apenas na Itália dos séculos XV e XVI, podemos lembrar alguns autores de importância excepcional que permanecem inéditos entre nós: outros tratados de L.B. Alberti sobre escultura e arquitetura, Lorenzo Ghiberti, Pomponio Gaurico, Leonardo da Vinci, Benvenuto Cellini, as cartas de Pietro Aretino, Ludovico Dolce, Gian Paolo Lomazzo e, acima de todos, Giorgio Vasari (1511-1574), cujas Vidas dos Mais Insignes Pintores, Escultores e Arquitetos, publicadas em 1550 e 1568, serão publicadas na coleção Palavra da Arte. Nossa coleção publicará em breve também o diálogo Aretino de Ludovico Dolce. 

Mas há mais em jogo, além da Itália do Renascimento. Podemos e devemos traduzir em edições comentadas títulos mais recentes, até o século XX. Por exemplo, os Cahiers e os ensaios de Paul Valéry sobre  artes plásticas, que são uma mina de reflexões sobre a arte de finais do século XIX e inícios do XX. No que se refere à arte no Brasil, a coleção Palavra da Arte lançará em 2010 um tratado inédito de Felix-Émile Taunay, um pintor de crucial importância para a história da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro, em uma edição preparada pela Dra. Elaine Dias, que foi co-curadora (junto com a professora Lilia Schwarcz, da USP) da bela exposição dedicada a Nicolas-Antoine Taunay, na Pinacoteca do Estado. Em suma, há um vasto horizonte de fontes da tradição clássica a ser revelado ao nosso público.

JU – Posto que são raras as publicações sobre a tradição clássica, é de se imaginar que essa condição lacunar se reflita no ensino. Que análise o senhor faz dos estudos clássicos no país?

Luiz Marques – Dá-se, de fato, pouca atenção, no Brasil, à história não-brasileira e à tradição clássica, da qual a história intelectual e artística do Brasil é, entretanto, tão tributária quanto a de outros países. Viceja ainda entre nós, muitas vezes,  o equívoco de se tentar pensar a história do Brasil como um capítulo à parte da história geral e como uma realidade referida apenas à história moderna e contemporânea. Este equívoco explica-se por razões bem conhecidas. As dimensões continentais do país, o sentimento de isolamento geográfico, histórico e linguístico, o iletrismo e o desprezo pela cultura por parte das elites econômicas e políticas, o nacionalismo  que marcou tão profundamente, e ainda marca, o ambiente intelectual brasileiro, fixado na questão fantasmática da  “identidade brasileira”, são algumas dos fatores que desempenham  papel relevante na relativa atrofia dos estudos clássicos e sobre a tradição clássica na universidade brasileira. Mas o Brasil, mais uma vez, não está só. Há uma atrofia geral desses estudos mesmo em países onde essa tradição foi, até há pouco, muito forte. No Brasil, ao contrário, malgrado tudo, cresce a olhos vistos o interesse por essas áreas.

JU – O senhor foi o responsável pela aquisição, pela Unicamp, da versão digital da Biblioteca Cicognara, cujo acervo era praticamente inacessível no país. Em que medida a aquisição refletiu-se na produção científica e impulsionou as pesquisas no campo da história da arte? Como a Unicamp situa-se hoje nessa área?

Luiz Marques – As microfichas reproduzindo quase 5 mil títulos da Biblioteca do historiador da arte e bibliógrafo italiano, Conde Leopoldo Cicognara (1767-1834), pertencente desde 1821 à Biblioteca Apostólica Vaticana, foram adquiridas no âmbito de um Projeto Temático da Fapesp (2001-2004). Estas microfichas encontram-se  na Biblioteca Central, que fornece aos interessados cópias digitais ou impressas de todo e qualquer volume solicitado. Seus benefícios fizeram-se sentir de imediato e hoje, por exemplo, um pesquisador de nosso programa de doutorado, Alexandre Ragazzi, está oferecendo um curso para a Graduação de História justamente sobre a literatura artística do século XVI ali existente. Sem essa biblioteca, esse curso seria inconcebível.

Há, ademais, diversas dissertações de mestrado e doutorado, já defendidas ou em curso, que se valeram e vêm se valendo intensamente da Cicognara. Mas seu potencial ainda não está devidamente explorado. Outro projeto temático da Fapesp, coordenado pelo professor Luciano Migliaccio, está tratando de dar continuidade ao trabalho iniciado pelo Temático anterior. Na realidade, a idéia é transformar a Biblioteca Cicognara em um dos núcleos de um Centro de Documentação sobre a Tradição Clássica. Cinco outras iniciativas comporão este Centro: 1) a partir de junho de 2010, estará em rede um banco de dados de obras de arte, organizado segundo um Index Iconográfico, intitulado MARE (Museu de Arte para a Educação); 2) um arquivo de crítica de arte dos séculos XIX e XX também está em preparação; 3) uma revista eletrônica (Figura. Estudos sobre a Imagem na Tradição Clássica); 4) uma Sociedade de Estudos sobre o Renascimento; e 5) nossa coleção Palavra da Arte, consagrada, como dito, às fontes da tradição clássica.

JU – Há previsão para a implantação desses projetos?

Luiz Marques – Sim. Em 2010 a coleção Palavra da Arte terá completado pelo menos seu quinto volume. O banco de dados de obras de arte organizadas por um Index Iconográfico, o MARE, será plenamente operacional, como dito, em junho de 2010. Também em meados do ano que vem devemos lançar o primeiro número da revista Figura. Estudos sobre a Imagem na Tradição Clássica. A Sociedade de Estudos do Renascimento é ainda apenas um projeto, mas, pessoalmente, acredito ser possível promover um primeiro encontro de pesquisadores do Renascimento no ano que vem. Quanto ao banco de dados sobre crítica de arte nos séculos XIX e XX não posso avançar uma previsão, pois é um projeto que está a cargo dos professores Luciano Migliaccio (da FAU/USP) e Claudia Valladão do IA/Unicamp.

(Continua nas páginas 6 e 7)

 

 
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