JU
– Qual é o objetivo da coleção Palavra da Arte?
Luiz Marques
– Seu objetivo é pôr o leitor de língua portuguesa
em contato com as fontes textuais mais importantes da história
da arte. Fonte é um termo técnico em história que adquiriu
desde finais do século XIX muitos significados. Antigamente,
significava apenas documentos cartoriais, mas aos poucos
passou a abranger toda manifestação ou testemunho de uma
época graças ao qual podemos tentar entender sua lógica
ou sensibilidade. A fonte é a matéria-prima do historiador.
Ela pode ser um tratado, um poema, um panfleto, uma teoria
científica ou filosófica, um grafite ou um texto de teologia.
Ela pode obviamente também ser um testemunho não-textual:
uma música, uma praça, um monumento, um quadro...
Isto posto, o foco da coleção
Palavra da Arte são as fontes textuais do que se
chama a tradição clássica, isto é, da memória da Antiguidade
greco-romana. Até a Primeira Guerra mundial, a Antiguidade
clássica era o denominador comum, o pano de fundo, a
premissa tácita, quase a condição de possibilidade de
todas as manifestações artísticas e literárias do Ocidente. O
que há em comum entre, por exemplo, São Jerônimo, Carlos
Magno, o papa Inocêncio III (1199-1216), Dante, Camões,
Michelangelo, Shakespeare, a Reforma Católica, o teatro
jesuíta, a oratória brasileira do século XVIII, Aleijadinho e
Olavo Bilac? A resposta é simples: tais personagens, artistas
e processos históricos não seriam inteligíveis se desligados
de suas referências à Antiguidade, a partir da qual se
movem.
A tradição clássica é esse
tecido de referências comemoradas que possibilitou à história
da arte e das letras constituir-se como um tenso diálogo
entre passado e presente. Por isso, o primeiro volume da
coleção – A Fábrica do Antigo – foi uma demonstração dessa
tese da transversalidade da tradição clássica. O segundo
volume, As Cartas de Michelangelo (1475-1564), oferece um
testemunho do maior artista da Idade Moderna, e maior justamente
porque é por meio dele que os tempos modernos se articulam
com a Antiguidade. O terceiro volume será dedicado aos textos
de Rafael (1483-1520) sobre Roma antiga, porque Rafael era
considerado em seu tempo a grande autoridade sobre a Antiguidade.
É nessa linha dos grandes testemunhos da força da Antiguidade
clássica ao longo da história que pretendemos trabalhar.
JU – Podemos
afirmar então que a coleção preenche uma lacuna bibliográfica?
Luiz Marques –
Certamente, a lacuna é imensa. Com exceção do tratado
sobre pintura de Leon Battista Alberti (morto em 1472),
editado há quase 20 anos pela Editora da Unicamp em uma
excelente tradução do professor Antonio Mendonça (IEL), nenhuma
fonte importante da historiografia artística dos séculos
XV a XVIII foi publicada em português. Para ficar apenas
na Itália dos séculos XV e XVI, podemos lembrar alguns
autores de importância excepcional que permanecem inéditos
entre nós: outros tratados de L.B. Alberti sobre escultura
e arquitetura, Lorenzo Ghiberti, Pomponio Gaurico, Leonardo
da Vinci, Benvenuto Cellini, as cartas de Pietro Aretino, Ludovico
Dolce, Gian Paolo Lomazzo e, acima de todos, Giorgio Vasari
(1511-1574), cujas Vidas dos Mais Insignes Pintores, Escultores
e Arquitetos, publicadas em 1550 e 1568, serão publicadas na
coleção Palavra da Arte. Nossa coleção publicará
em breve também o diálogo Aretino de Ludovico Dolce.
Mas há mais em jogo, além
da Itália do Renascimento. Podemos e devemos traduzir
em edições comentadas títulos mais recentes, até o
século XX. Por exemplo, os Cahiers e os ensaios de Paul
Valéry sobre artes plásticas, que são uma mina de reflexões
sobre a arte de finais do século XIX e inícios do XX.
No que se refere à arte no Brasil, a coleção Palavra
da Arte lançará em 2010 um tratado inédito de Felix-Émile
Taunay, um pintor de crucial importância para a história
da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro, em
uma edição preparada pela Dra. Elaine Dias, que foi co-curadora
(junto com a professora Lilia Schwarcz, da USP) da bela
exposição dedicada a Nicolas-Antoine Taunay, na Pinacoteca
do Estado. Em suma, há um vasto horizonte de fontes da
tradição clássica a ser revelado ao nosso público.
JU – Posto que
são raras as publicações sobre a tradição clássica, é de
se imaginar que essa condição lacunar se reflita no ensino.
Que análise o senhor faz dos estudos clássicos no país?
Luiz Marques – Dá-se,
de fato, pouca atenção, no Brasil, à história não-brasileira
e à tradição clássica, da qual a história intelectual e
artística do Brasil é, entretanto, tão tributária quanto
a de outros países. Viceja ainda entre nós, muitas vezes,
o equívoco de se tentar pensar a história do Brasil como
um capítulo à parte da história geral e como uma realidade
referida apenas à história moderna e contemporânea. Este
equívoco explica-se por razões bem conhecidas. As dimensões
continentais do país, o sentimento de isolamento geográfico,
histórico e linguístico, o iletrismo e o desprezo pela cultura
por parte das elites econômicas e políticas, o nacionalismo
que marcou tão profundamente, e ainda marca, o ambiente
intelectual brasileiro, fixado na questão fantasmática da
“identidade brasileira”, são algumas dos fatores que desempenham
papel relevante na relativa atrofia dos estudos clássicos
e sobre a tradição clássica na universidade brasileira.
Mas o Brasil, mais uma vez, não está só. Há uma atrofia
geral desses estudos mesmo em países onde essa tradição
foi, até há pouco, muito forte. No Brasil, ao contrário,
malgrado tudo, cresce a olhos vistos o interesse por essas
áreas.
JU – O senhor foi o responsável pela aquisição,
pela Unicamp, da versão digital da Biblioteca Cicognara,
cujo acervo era praticamente inacessível no país. Em que
medida a aquisição refletiu-se na produção científica e
impulsionou as pesquisas no campo da história da arte? Como
a Unicamp situa-se hoje nessa área?
Luiz Marques – As
microfichas reproduzindo quase 5 mil títulos da Biblioteca
do historiador da arte e bibliógrafo italiano, Conde Leopoldo
Cicognara (1767-1834), pertencente desde 1821 à Biblioteca
Apostólica Vaticana, foram adquiridas no âmbito de um Projeto
Temático da Fapesp (2001-2004). Estas microfichas encontram-se
na Biblioteca Central, que fornece aos interessados cópias
digitais ou impressas de todo e qualquer volume solicitado.
Seus benefícios fizeram-se sentir de imediato e hoje, por
exemplo, um pesquisador de nosso programa de doutorado,
Alexandre Ragazzi, está oferecendo um curso para a Graduação
de História justamente sobre a literatura artística do século
XVI ali existente. Sem essa biblioteca, esse curso seria
inconcebível.
Há, ademais, diversas dissertações
de mestrado e doutorado, já defendidas ou em curso, que
se valeram e vêm se valendo intensamente da Cicognara.
Mas seu potencial ainda não está devidamente explorado.
Outro projeto temático da Fapesp, coordenado pelo professor
Luciano Migliaccio, está tratando de dar continuidade ao
trabalho iniciado pelo Temático anterior. Na realidade,
a idéia é transformar a Biblioteca Cicognara em um dos
núcleos de um Centro de Documentação sobre a Tradição
Clássica. Cinco outras iniciativas comporão este Centro: 1)
a partir de junho de 2010, estará em rede um banco de dados de
obras de arte, organizado segundo um Index Iconográfico,
intitulado MARE (Museu de Arte para a Educação); 2) um
arquivo de crítica de arte dos séculos XIX e XX também
está em preparação; 3) uma revista eletrônica (Figura.
Estudos sobre a Imagem na Tradição Clássica); 4)
uma Sociedade de Estudos sobre o Renascimento; e 5) nossa
coleção Palavra da Arte, consagrada, como dito, às fontes
da tradição clássica.
JU – Há previsão
para a implantação desses projetos?
Luiz Marques –
Sim. Em 2010 a coleção Palavra da Arte terá completado
pelo menos seu quinto volume. O banco de dados de obras
de arte organizadas por um Index Iconográfico, o MARE,
será plenamente operacional, como dito, em junho de 2010. Também
em meados do ano que vem devemos lançar o primeiro número
da revista Figura. Estudos sobre a Imagem na Tradição
Clássica. A Sociedade de Estudos do Renascimento é
ainda apenas um projeto, mas, pessoalmente, acredito ser
possível promover um primeiro encontro de pesquisadores
do Renascimento no ano que vem. Quanto ao banco de dados
sobre crítica de arte nos séculos XIX e XX não posso
avançar uma previsão, pois é um projeto que está a cargo
dos professores Luciano Migliaccio (da FAU/USP) e Claudia
Valladão do IA/Unicamp.
(Continua
nas páginas 6 e 7)