JU
– O senhor afirmou que a tradição clássica funcionava como
substrato teórico de praticamente todas as manifestações
artísticas até a Primeira Guerra. O que ocorreu depois?
Ela foi relegada a um plano secundário?
Luiz Marques – Essa
é uma questão para a qual não há uma resposta simples. A
I Grande Guerra produz uma fratura civilizacional. Na Europa,
palavra grega, a ideia do legado da Antiguidade tinha valor
de código genético. Ora, a Primeira Guerra e as revoluções
sociais que ela suscita na Rússia, na Alemanha, na Hungria,
etc, exterminam, antes de mais nada, fisicamente uma parte
ponderável das elites juvenis. Mais importante que o colapso
físico, era a súbita percepção de que a civilização ocidental
era mortal, como bem o disse Paul Valéry em 1919 em um ensaio
de imenso e duradouro impacto. O enorme saber histórico
acumulado no século XIX havia-se revelado incapaz de prever
e ainda menos de evitar a catástrofe. A lição do passado
surge cada vez mais a tantos intelectuais e artistas como
um fardo inútil e opressivo.
Essa civilização parecia
agora mortal também, e talvez sobretudo, porque a Primeira
Guerra trazia para o primeiro plano do cenário internacional
uma nova personagem, doravante incontornável: os Estados
Unidos, já então em vias de se tornar a primeira potência
industrial do planeta. A influência dessa cultura industrial
não tardaria a se fazer sentir na cultura europeia, e não
apenas através da indústria cinematográfica. Pela primeira
vez, a Europa se deixava influenciar decisivamente por um
paradigma cultural exógeno, que nada tinha a ver, malgrado
as ilhas de classicismo de Harvard, Yale, etc., com a tradição
clássica.
A velha civilização, emanada
do Mediterrâneo, era irreversivelmente deslocada e a hegemonia
passava agora para outro eixo: o Atlântico Norte.
A cultura mediterrânica, baseada na eloquência e na indissociável
unidade entre forma e conteúdo era, assim, substituída
pela tecnologia. A argumentação qualitativa, própria
do aparato retórico da persuasão e da formação de consenso,
era substituída pela tabula rasa da argumentação quantitativa:
a estatística. O discurso político dava lugar ao econômico
e, em seguida, à econometria. O próprio ideal de equilíbrio
entre vida ativa e vida contemplativa pelo qual se pautara
a paidéia europeia desde Platão dava lugar a um novo ideal
de cultura, baseado na velocidade e na produtividade. Nesse
novo paradigma, a tradição clássica tendia rapidamente
a deixar a circulação sanguínea da cultura europeia e
a refugiar-se na Universidade. Foi o que ocorreu ao longo
do século XX.
JU – E quais foram, na sua opinião, os efeitos desse
“confinamento” para a produção artística subsequente?
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“A velha
civilização
emanada do Mediterrâneo
era irreversivelmente
deslocada e a hegemonia
passava agora
para outro eixo:
o Atlântico Norte” |
Luiz Marques –
O mais conhecido deles parece-me ser o fato de que a arte
cinde-se em “erudita” e “popular”, categorias separadas,
doravante, por um abismo. Da Grécia ao século XIX, tal
compartimentação era inconcebível. A produção artística,
visual ou lítero-musical, dividia-se em gêneros diversos,
que, com o tempo, tendem a se hierarquizar. Mas nem os gêneros
elevados eram “eruditos”, nem os inferiores eram “populares”.
As tragédias de Sófocles não eram “eruditas”, nem
as comédias de Aristófanes, “populares”. Ambos os
gêneros eram escritos para o povo de Atenas, não para
uma elite de connaisseurs e de críticos.
Dante e Goethe eram poetas
“populares”, educadores de seu povo, comparáveis neste
sentido a Homero. Shakespeare era um dramaturgo de multidões.
Nem as esculturas das fachadas das catedrais góticas, nem
o Davi de Michelangelo, nem a Fonte de Piazza Navona de
Bernini, hoje objeto de análises eruditas, eram arte “erudita”.
Eram arte “de praça”. A Paixão segundo Mateus de
Bach destinava-se à congregação dos fiéis e suas
três centenas de Cantatas terminam via de regra com a harmonização
de uma melodia popular luterana. O Lied não é nem
“popular”, nem “erudito”. Brahms, por vezes, apenas
harmoniza cantigas folclóricas.
A rivalidade entre os apreciadores
de Ariosto e de Tasso no século XVI nada tinha de universitária;
tinha algo de um enfrentamento entre duas torcidas. A Ópera
napolitana e veneziana do século XVIII, a Ópera italiana
do século XIX são fenômenos dotados de uma força social
inigualável. Rossini e Verdi são, na Itália, como Offenbach,
Liszt e Chopin em Paris, compositores verdadeiramente “populares”,
embora sua arte nada tenha de “popular” no sentido em que
entendemos a música industrial de hoje. A prosa de Antonio
Vieira, talvez a mais sofisticada de nossa língua, pode
ser considerada “erudita”? Ela nasce, em todo o caso, de
Sermões destinados a públicos não necessariamente “refinados”.
Dostoievski, Camillo Castelo Branco, Victor Hugo, Alexandre
Dumas, Jules Verne, romancistas geniais, publicaram algumas
das obras-primas da literatura do século XIX na forma de
folhetins.
Os exemplos poderiam se
multiplicar, mas o mistério continuaria irresolvido: a cultura
de massas das sociedades industriais desagregou definitivamente
essa universalidade da obra de arte, essa sua misteriosa
capacidade de fazer sentido pleno para todos os públicos,
capacidade decorrente, entre outras coisas, da existência
de códigos civilizacionais comuns à elite e ao povo, justamente
o que chamamos a tradição clássica. Na Europa da segunda
metade do século XIX, este fenômeno de desagregação será
vivido com grande inquietude, mas serão os Estados Unidos,
após a I Grande Guerra, que fornecerão à Europa e ao mundo
um “tipo ideal”, um modelo verdadeiramente alternativo de
cultura, destinada ao consumo de massas e no qual a tradição
clássica torna-se, como tudo o mais, apenas uma mercadoria
entre outras.
Isto não significa, obviamente,
que Walt Disney, Chaplin, John Ford e John Huston não sejam
imensos artistas. Eles o são e trabalham como verdadeiros
artistas, mas em uma cultura que não os vê como tais,
que não espera deles que sejam artistas. Apenas que forneçam
enlatados de ótima aceitação pelo grande público. Não
por acaso foi necessário que André Bazin e os Cahiers
du Cinéma ensinassem, desde os anos ’50, aos norte-americanos,
e a nós todos, que nas linhas de montagem ocultavam-se
singularidades, estilos.
JU – E as vanguardas – ou o esgotamento delas
– não tiveram um peso nesse quadro?
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“Gerações
de
críticos
nos revelaram
quanto
os grandes
artistas do passado
imitaram e
foram imitados” |
Luiz Marques –
Embora tenha havido interações entre as assim chamadas
“vanguardas” e a indústria cultural – por exemplo,
um média-metragem a quatro mãos de Disney e Dali, uma
intervenção deste em Spellbound de Alfred Hitchcock
em 1945 –, é claro que experimentalismo e consumo de
massa deviam por força permanecer atividades estanques.
As vanguardas viriam a preencher o lugar, doravante exclusivo,
da arte “erudita”, voltada para a elaboração de códigos
substitutivos aos da tradição, e destinada, como não
poderia deixar de ser, a um público marginal, composto
pelos próprios artistas, por “seus” críticos e alguns
iniciados.
As vanguardas herdam e tentam
heroicamente resolver um problema aberto, e não resolvido,
pela arte da segunda metade do século XIX. Música, literatura
e artes visuais vivem esse problema segundo histórias e
problemáticas próprias, e não podem ser objeto de um discurso
único. Mas se poderia dizer que, no limite, o problema em
questão envolve todas as artes e se deixa formular, em sua
mais ampla acepção, da seguinte maneira: o “sujeito” da
narração, seja ela literária, musical ou visual, vale dizer,
a personagem, a melodia e seu desenvolvimento harmônico,
o sintagma narrativo ou o ritmo do verso, a figura e “seu”
espaço tridimensional, eram ao mesmo tempo uma convenção
e uma imitação da natureza. Obviamente, eles eram convenção:
a perspectiva, a figura naturalista, a personagem, etc.
não são clones da natureza, são sistemas que possuem um
alto grau de arbitrariedade.
Mas
esses sistemas, doravante em colapso, tinham duas características
fundamentais. Em primeiro lugar, eles reivindicavam a mimese,
a vontade de iludir e de ser “como se fossem a natureza”.
Assim, em harmonia, o eixo tônica/dominante pretendia emanar
– e em certa medida emanava mesmo – das próprias leis da
acústica; a perspectiva pretendia emanar das leis da percepção
psico-fisiológica do espaço, a personagem emanaria da ideia
elementar do “sujeito”, de sua interioridade, do espaço
interior e da lógica de nossa psicologia etc. Em segundo
lugar, esses sistemas transmitidos pela tradição clássica
haviam-se sedimentado ao longo de milênios, convertendo-se
aos poucos numa espécie de “segunda natureza”.
Essas características conferiam
à tradição clássica uma pretensão de universalidade
e, portanto, uma autoridade “natural”, referendada,
de resto, pelas instituições fundamentais da sociedade:
a norma gramatical, o “gosto”, o Estado, vale dizer,
as Academias de Letras e Artes. Essa legitimidade era tal,
que as artes são talvez a única atividade social relevante
na qual o uso da repressão policial foi excepcionalmente
rara. Não estou esquecendo da Inquisição. Apenas lembro
que ela se exerce apenas sobre a arte sacra e não visa
a forma: os nus do Juízo Final de Michelangelo são
recobertos, não porque a Igreja fosse contra a imitação
da cultura pagã, centrada no nu, mas porque esses nus se
encontravam sobre a parede do altar da Capela Sistina. Fora
dali, o nu nunca a inquietou.
Se mantivermos isso em mente,
entendemos o abismo em que se lançam as vanguardas ao substituir
a axiomática antiga por um “é proibido proibir”, centrado
na recusa da mimese da natureza e na individualidade do
artista. Abismo, de novo, por duas razões. Em primeiro lugar
porque a individualidade libertária em nome da qual o artista
se insurgia só tinha sentido em presença da instituição,
da norma, etc.. Uma vez derrotado o dragão, o “bom combate”
das vanguardas tenderá rapidamente a se esvaziar e a se
transformar em um discurso autista e propagandístico. Em
segundo lugar, porque essa ideia de independência individual,
santuário da criação artística, deverá, para se firmar como
princípio universal, converter-se em nova positividade,
isto é, em um novo sistema das artes, com sua inevitável
dose de instituição e de prescritividade.
JU – E no caso
brasileiro? O Modernismo, por exemplo, assim como os movimentos
predecessores europeus, rompeu com escolas anteriores –
inclusive com ataques sistemáticos aos parnasianos – e buscou,
à esquerda ou à direita, matizes fortemente nacionalistas.
Qual foi, para o senhor, o efeito desse ideário?
Luiz Marques –
Nos anos 1920-1930, em seu A Study of History, Arnold
Toynbee, um historiador inglês hoje menos lido, advertia
que a própria sobrevivência das sociedades modernas dependia
de sua capacidade de superar o nacionalismo, as “guerras
de nacionalidade, que começaram no século XVIII e são
ainda o flagelo do século XX”. Sem dúvida, o nacionalismo
estigmatizou a história dos séculos XIX e XX e as artes
não foram poupadas da insânia. Ao contrário, no século
XX colocaram-se na linha de frente dos programas nacionalistas.
Não falo apenas dos regimes ditatoriais, nos quais a arte
foi reduzida à força a uma seção do Departamento de
Propaganda. Falo dos países “periféricos” em geral,
da Europa Central ao México e à América do Sul, onde
o nacionalismo continua a ser um tópico de predileção
de muitos intelectuais. Representativo dessa vertente de
pensamento é, por exemplo, Ferreira Gullar que, em um livro
recente, reitera a atualidade da questão da “identidade
brasileira”.
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“O nacionalismo
estigmatizou a
história dos
séculos XIX e XX
e as artes
não foram
poupadas da
insânia” |
Sou de outra opinião. Penso
que, para além obviamente de seu tema ou de seu material,
não há, nem precisa haver, uma arte brasileira. Se houvesse,
de resto, não teria sido preciso reivindicá-la, proclamá-la,
instituí-la através de um programa. O adjetivo “brasileiro”
é uma categoria ideológica, pertencente à história do nacionalismo,
do qual o modernismo é um capítulo. Não é uma categoria
crítica, capaz de agregar inteligibilidade a uma obra de
arte realizada em nosso país. É correto, consagrado e de
simples bom senso classificar um quadro de Fragonard ou
de Manet, como pintura francesa, ou um quadro de Zurbarán,
como pintura espanhola, muito embora tais pinturas estejam
profundamente imbricadas em um sistema europeu de referências
liderado, ao menos até inícios do século XVIII, pela arte
italiana. Dado que pintura francesa, espanhola ou italiana
são categorias capazes de, bem situadas historicamente,
trazer informação estética relevante e específica a uma
obra de arte, ninguém em sã consciência pensaria em descartar
o predicado nacional na avaliação de tais obras.
Ora, por uma série de razões
que não posso desenvolver aqui, não é o caso da pintura
no Brasil, malgrado o esforço da historiografia e da crítica
de matriz modernista em nosso país – de Mário de Andrade
a hoje – para fazer de uma metafísica brasilidade a referência
maior de suas análises. Esta dificuldade de prescindir de
referências nacionais para pensar a cultura visual passada
e presente, típico subproduto do ideário nacional-modernista
dos anos 1920, trouxe uma triste inapetência de nossa crítica
e de nossa historiografia em relação à arte internacional.
Gostaria de chamar a atenção para a hipótese de estarmos
diante da rigorosa impossibilidade de definirmos esteticamente
o que faz de uma obra de arte ser “brasileira”. A se verificar
tal impossibilidade, será então o caso de, enfim, nos liberarmos
dessa miragem, dessa “fata Morgana”, em favor de coordenadas
críticas mais abertas e fecundas.
JU – Nuno Ramos afirmou recentemente [Folha
de S.Paulo, caderno Mais, 20/9/09] que, no fundo, toda a
arte é contemporânea. O senhor concorda com esse ponto de
vista?
Luiz Marques – Concordo,
se por essa condição de ser sempre contemporânea entendermos
a capacidade de certas obras de arte de ser uma inesgotável
fonte de emoção, de prazer e de inteligência do mundo. Em
um poema famoso, John Keats (1795-1821) escreve: “A thing
of beauty is a joy for ever / Its loveliness increases;
it will never / Pass into nothingness”. Augusto de Campos
traduziu lindamente esses versos serenos: “O que é belo
há de ser eternamente / Uma alegria, e há de seguir presente.
/ Não morre...”. Sim, neste sentido, Homero, o Pintor de
Aquiles e Bach são e serão sempre contemporâneos, enquanto
formos capazes de viver com eles.
Isto não significa, evidentemente,
fazer tabula rasa da história. O tempo nos tira
e nos dá algo. Em primeiro lugar nos tira: sempre imagino
quanto nos escapa, a nós, espectadores do século XXI,
do Juízo Final da Capela Scrovegni, pintado por Giotto
em 1304 ou 1405. Antes de mais nada porque a maioria de
nós não acredita mais no Juízo Final. Os diabos
tornaram-se, hoje, aqueles monstrinhos simpáticos que tendemos
a analisar no âmbito da psicanálise das pulsões ou do
surrealismo. Nada a ver com o diabo dos contemporâneos
de Giotto, que era real e infundia-lhes terror. O famoso
azul de Giotto era então sentido como céu, como eterna
bem-aventurança, não apenas como valor cromático. O afresco
do Juízo Final ou da Crucificação do Cristo suscitava
uma experiência emocional muito complexa, uma experiência
do sagrado que perdemos para sempre.
Isto é importante. A obra
de arte não é apenas uma experiência estética e sensorial,
como o esteticismo do século XIX e o formalismo do século
XX nos fizeram acreditar. É uma experiência total, onde
está em jogo um conjunto de valores compartilhados entre
o artista e seu público (ou em conflito, o que dá no mesmo),
entre os quais se contam os valores formais. O mesmo
vale para uma obra profana. Imagine o quanto perdemos de
Camões, hoje. Falta-nos o imenso substrato de experiências
e premissas comuns entre o poeta e seu público, o sentimento
comum de ser parte da epopéia portuguesa e de um estado
da língua, a sonoridade daquele português, as referências
tácitas, porque óbvias para o leitor da época. Imagine
quanta coisa escapará do universo de Guimarães Rosa, tão
próximo de nós (mesmo em seu sertão inventado), ao leitor
do ano 2500!
Mas, ao mesmo tempo, temos
algo a mais que o espectador de Giotto no século XIV ou
do leitor contemporâneo de Camões. De alguma forma, compreendemos
algo da pintura e do poema que escapava a seus próximos.
A história nos deu o recuo a partir do qual situá-los na
topografia de suas respectivas culturas. Gerações de críticos
nos revelaram quanto imitaram e quanto foram imitados. Vemos
melhor a posição que ocupam em nossa história e quanto nossa
sensibilidade foi moldada por eles. O tempo os tornou venerandos
e esse sentimento não é simples fetiche, é um sentimento
genuinamente estético. Porque o que o tempo infunde em uma
obra torna-se uma dimensão da própria obra.