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O inglês sem humor
Tese mostra que efeitos
cômicos desaparecem
em quadrinhos presentes em livros didáticos
A
análise discursiva dos quadrinhos de humor que compõem
seis livros didáticos de inglês, adotados por
professores da rede de ensino do Estado e produzidos por autores
brasileiros, revelou que este tipo de abordagem tendeu a apagar
os seus efeitos cômicos. Predominou, nesses materiais,
uma concepção de língua enquanto código,
um sistema de sinais autônomos, sem relação
com o contexto linguístico e cultural em que os quadrinhos
são produzidos. "O conteúdo demasiadamente
estruturalista e gramaticalista não permite que a subjetividade
do aluno seja tocada. Para ele, a tendência é
encarar este texto como um a mais", mostrou a linguista
Ilka de Oliveira Mota em sua tese de doutorado, defendida
no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) sob orientação
da professora Maria José Coracini, do Departamento
de Linguística Aplicada.
Alguns fatos pontuais foram
observados pela pesquisadora durante a análise. Primeiramente,
ela acentuou uma importância capital na constituição
identitária de alunos e professores. "São
materiais importantes a serem analisados, uma vez que estão
fortemente presentes no contexto didáticopedagógico.
Daí a necessidade de analisar o seu modo de significação
no espaço escolar."
As contribuições
de Freud sobre o campo da comicidade foram fundamentais para
a pesquisa. Conforme o psicanalista, neste campo irrompem
aspectos existenciais e questões subjetivas, culturais,
históricas, sociais e políticas. Estes, pertencentes
ao campo da comicida-de, operam nos textos quadrinizados que,
para além dos quadrinhos, incluem as tirinhas e as
histórias. "Tal campo é muito importante
no processo ensinoaprendizagem de qualquer língua",
declara a linguista.
Pelo que observou Mota, os textos
quadrinizados foram, de certa forma, tratados nos livros como
mera brincadeira, "não como um exercício
intelectual". Ela explica, apoiada em Freud, que, no
campo da comicidade, jogam ainda questões relativas
ao intelecto, às forças libidinais, à
agressividade, ao inconsciente. Neste sentido, o campo da
comicidade é atravessado por técnicas e procedimentos
semelhantes ao inconsciente. "É um texto denso
do ponto de vista psicanalítico e discursivo. Todavia
tal densidade não é levada em conta na abordagem
dos quadrinhos, portanto da comicidade", comenta a linguista,
que é professora de inglês há pelo menos
dez anos.
Uma outra questão relevante
levantada pela pesquisa foi a constatação de
que houve, na abordagem dos quadrinhos, primazia do verbal
sobre o nãoverbal, "sendo que esta é tão
envolvente quanto a outra na produção dos sentidos,
embora não considerada nesses quadrinhos", expõe.
"O nãoverbal é totalmente ignorado e subsumido
pelo verbal, por conta, talvez, da cultura grafocêntrica
deveras pautada no signo verbal. Assim sendo, esta pesquisa
ajudou a problematizar o tratamento que se dá a este
plano."
Desse tipo de abordagem podem
resultar várias consequências. Além do
apagamento do humor, há também o apagamento
do prazer cômico. De acordo com a pesquisadora, é
preciso mudar essa abordagem e, com ela, a concepção
de língua adotada. "É preciso, pois, uma
abordagem que leve em conta os aspectos culturais, históricos,
políticos que constituem esse tipo de texto",
afirma Ilka. Além disso, continua a pesquisadora, é
necessária a consideração do jogo estabelecido
entre os planos verbal e o nãoverbal conjuntamente,
jogo este fundamental para a produção dos efeitos
cômicos. O tipo de abordagem vista nos livros em questão
impossibilita que aluno se inscreva como sujeito no processo
de leitura dos quadrinhos.
Além do mais, na tese
de doutorado sublinhouse o valor de se dar aos conteúdos
um tratamento mais cuidadoso. Freud dizia que o cômico,
mesmo produzindo o riso em algumas situações,
não deixava de ser sério. É uma outra
possibilidade de aprendizado, mesmo porque o aluno não
irá aprender apenas língua, no sentido em que
a escola comumente vem concebendo. "Pensamos a língua
na sua relação constitutiva com a cultura, a
história, o social, o inconsciente. Sem considerar
essa relação na abordagem da língua,
a comicidade que caracteriza os quadrinhos tende a ser apagada."
O campo da comicidade também
é atravessado por processos estéticos, semelhantes
ao funcionamento do inconsciente. "Tratase de um campo
que traz em seu bojo uma relação muito peculiar
com os sentidos; é uma elaboração especial
em que jogam o deslocamento e a condensação",
destaca Mota. Mas esta é uma perspectiva discursiva.
"Falo de uma perspectiva teórica que me permite
pensar o humor desta forma, via Análise do Discurso
na interface com a teoria freudiana". Ilka acredita que
a inovação está justamente em retomar
Freud a fim de compreender a densidade que permeia o campo
da comicidade.
Especificidades
As atividades pedagógicas
com base nos quadrinhos geralmente giram em torno de perguntas
conteudistas, como: "o quê?", "por quê?",
"quando?", "quem?". Com isso, o aluno
não precisa pensar muito para responder. "Essas
práticas didáticopedagógicas, aliás,
não levam em consideração o aluno como
sujeito constituído histórica e culturalmente.
É como se ele não fosse capaz de inferir sentidos,
estabelecer relações." Muitas práticas
encontradas nos livros didáticos pesquisados fazem
com que o aluno vá ao quadrinho apenas para localizar
informações pontuais, sem compreender os efeitos
cômicos.
Em um dos livros analisados,
todas as unidades iniciamse com um quadrinho. Acima dos quadrinhos,
há o nome do conteúdo gramatical a ser estudado.
Para exemplificar, a pesquisadora mostrou uma dessas unidades:
reflexive pronouns (pronomes reflexivos). O modo como o quadrinho
está disposto na página impressa - justaposto
ao enunciado reflexive pronouns - direciona o aluno a ir em
busca do conteúdo a ser ensinado.
Na sequência, há
itens gramaticais e algumas frases que não têm
nenhuma relação com o quadrinho. Ao contrário,
acentuam os pronomes reflexivos. O mesmo funcionamento se
dá com as demais unidades. "É possível
observar que a língua nos contextos dos livros didáticos
de inglês pesquisados é concebida como uma estrutura
fechada nela mesma", atesta a linguista. "A ideia
era que o aluno reconhecesse os aspectos gramaticais sim.
Afinal não defendemos que não deva aprendêlos.
Ocorre que, discursivamente, a gramática não
deve ser trabalhada como um fim como se fosse "a"
língua. Se assim for, o texto quadrinizado não
faz sentido no ensino de línguas."
A presença de quadrinho
de humor em livros didáticos de inglês parece
servir apenas como um chamariz. Produzse a falsa ilusão
de que somente a presença de quadrinhos é capaz
de motivar o aluno. Conforme a pesquisadora, isso não
basta. É preciso uma abordagem que toque a subjetividade
do aluno. "O tipo de abordagem encontrada resulta em
uma inversão: o texto de humor transformase em um verdadeiro
texto de horror, porque o olhar do aluno é conduzido
apenas para determinados conteúdos gramaticais. A brincadeira
com a língua(gem), a duplicidade de sentidos, a linguagem
chistosa, etc., são desconsideradas pela abordagem",
reconhece. "Como resultado, há um duplo apagamento:
o apagamento do humor e do prazer cômico, já
que do campo da comicidade é de se esperar a produção
do prazer, segundo Freud."
Freud e o campo da comicidade
Freud reconheceu a comicidade
como um campo complexo, propondo três subdivisões:
o cômico, o chiste e o humor. A despeito delas, os quadrinhos
são um tipo de texto em que essas subclasses se mesclam.
Desse modo, tais quadrinhos vêm mostrar que não
há uma linha rígida separando o cômico,
o chiste e o humor, assegura Mota.
Segundo a distinção
estabelecida por Freud, o cômico é caracterizado
pelo excesso de gasto. "Ele atua semelhante a um defeito
sobre o qual se coloca uma lente de aumento. Um exemplo típico
é a caricatura", conta a linguista. "Nos
textos quadrinizados, o cômico é um dos elementos
do campo da comicidade mais recorrentes em quadrinhos, manifestandose
inclusive no próprio traçado". A pesquisadora
sinaliza que este tipo de texto também apresenta aspectos
chistosos, que envolvem brincadeiras com a língua.
De outra ponta, expõe
ela, o humor é caracterizado pelos afetos ou pelo que
é dolorido ao ser humano. O prazer é produzido
a partir de afetos que normalmente seriam penosos. É
o caso de um homem que vai para a forca. No caminho, ele faz
uma piada: "começamos bem a semana". Por
meio do humor, o sujeito confronta a morte, a desafia, relata.
A diferença entre o cômico, o chiste e o humor
é indelével. Um ponto em comum os une - o prazer.
Nos livros pesquisados, o tipo de abordagem observada não
dá vazão para o prazer. Há o apagamento
dos aspectos cômicos e, por conseguinte, do prazer cômico,
garante Mota.
Um fato curioso, investigado
pela linguista, foi compreender que alguns livros trazem tanto
textos quadrinizados que circulam socialmente, como o Pato
Donald, de Walt Disney, como também textos produzidos
por profissionais contratados para fazerem criações
exclusivas. "E tudo o que figura ali acaba sendo pedagógico."
Num dos quadrinhos, Mota percebeu
um tipo de comicidade forçada. Foi o caso do Paradise
Coffee (Paraíso do Café). Uma frase presente
em um cartaz deste local teria sido o motivador da comicidade:
the most gooder coffee who you have ever had, ou seja, "o
melhor café que você já teve". Há
um erro do ponto de vista gramatical no enunciado the most
gooder. O correto seria the best coffee. "Dificilmente
um falante nativo escreveria the most gooder."
A seguir, na mesma cena, o
que se vê é um leitor irritado que escreve no
próprio cartaz, ao circundar the most: "so good
that it passes over the tongue", ou seja, "é
tão bom que atropela a língua". Segundo
a linguista, o personagem principal da cena parece vestir
a máscara de um verdadeiro professor ortodoxo de língua.
"É a imagem que o cartunista faz de língua
ou do que é ser um bom falante." O interessante
foi que o objetivo da atividade pedagógica era ensinar
o pronome Who (quem).
A etapa de seleção
demandou um bom tempo de Mota. Contudo, já o fato de
ser quadrinho foi um dos critérios que ela empregou
para a sua escolha, procedendo a análises da materialidade
linguística e imagética.
A análise se deu em três
momentos. O primeiro analisou os quadrinhos justapostos a
questões de interpretação de texto. Observando
o seu funcionamento, a pesquisadora notou que as questões
eram constituídas dentro de um universo lógico
pragmático, com perguntas como: o quê?, qual
dos dois? onde? quem? Como acentua a pesquisadora, os quadrinhos
jogam com as duplicidades de sentidos, enquanto nas questões
produzidas pelos autores dos livros didáticos não
existia oposição. Contudo, o livro didático
fez a sua disjunção. "As questões
didáticopedagógicas tendem a desambiguizar aquilo
que é ambíguo por excelência", diz
Mota.
A segunda parte pôs vista
nos livros cujas unidades iniciavam com quadrinhos, justamente
para dar aquele efeito de que o livro é "descolado",
inovador e divertido. Só que a abordagem foi totalmente
pautada na língua enquanto código. O que se
teve, mais uma vez, foi o apagamento do humor e do prazer
cômico.
A última parte aborda
aqueles livros que usam os quadrinhos no final da unidade,
os quais produzem um efeito de intervalo. "Agora é
hora da gente se divertir". Mota, ao tomar contato com
o livro do professor, para verificar se o autor do livro didático
falava alguma coisa sobre este tipo de texto, observou que
os aspectos linguageiros que tecem o quadrinho de humor não
foram levados em conta, tanto que nem foi inserido nada relacionado
a esse tipo de texto nas instruções para o professor.
"Depreendese que esse é um espaço do aluno.
É como se o texto quadrinizado marcasse a hora do recreio,
não do aprendizado."
Publicação
Tese "A comicidade no contexto
linguístico escolar: quadrinhos de humor em livros
didáticos (LDs) de inglês como Língua
Estrangeira (LE)"
Autora: Ilka de Oliveira Mota
Orientadora: Maria José Coracini
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)
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